sexta-feira, dezembro 31, 2004

Mini de Ano Novo

Fogos, luzes, vozerio, gargalhadas.
Hoje o mundo todo está barulhento e iluminado, com exceção daquele apartamento no quinto andar: luzes apagadas, silêncio, quietude.
Samuel é um homem discreto, monossilábico. Do seu apartamento emana mornidão: as luzes, a música, o som da televisão. Tudo é abafado e opaco.
Hoje, em especial, enquanto todos estão febris e velozes, Samuel medita na escuridão do seu apartamento, protegido pelo seu silêncio interno e pelas cortinas cerradas.
O estado é de catatonia.
A única coisa que vive e pulsa é a sua memória. Lá dentro, a construção tempo/espaço/imagens é elaboradíssima. Tudo está intacto – pessoas, lugares, sabores, texturas, odores.
A memória de Samuel resiste à poeira e às ranhuras. Ela é uma marca indelével que lhe resgata uma parte da vida. A outra é um cotidiano aborto.
Meia noite! Samuel ergue sua taça e balbucia: “Feliz Ano Velho”.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Mini de Natal

Todo ano era a mesma coisa.
Ela chegava com aqueles imensos olhos negros, fundos. Colava o rosto sujo no vidro, embaçando, com seu hálito, a vitrine.
De todos os brinquedos da loja, ela cismou com aquela boneca: rosto de porcelana, roupas finas, estilo século XVIII, cabelos louros e muito cacheados.
Entrava ano, saía ano, surgiam novos brinquedos, mas seus olhos pidões só enxergavam a boneca de porcelana.
Do lado de dentro, eu observava aquele romance sem palavras. Ela jamais ousou cruzar a soleira da porta, nunca ensaiou um pedido sequer. Chegava, olhava a boneca por um longo tempo.
Algumas vezes, eu trazia-lhe um lanche; ela recebia sem dizer nada, mas a expressão do seu rosto era de agradecimento. Comia, grudava de novo o rosto na vitrine e quando me dava conta, já tinha desaparecido.

***

Por um ano economizei dinheiro para comprar-lhe a tal boneca.
O Natal chegou e com ele, a garotinha.
Fiquei atenta aos seus movimentos, não podia perdê-la de vista, se não quisesse entregar-lhe o presente no próximo ano.
Pedi a uma colega para me substituir por uns instantes.
Saí e convidei a garotinha para lanchar. Ela balançou a cabeça em negativa.
Perguntei - por que não?
Pela primeira vez em quatro anos, ouvi sua voz.
- Não vão me deixar entrar.
- Vão, sim. Você entrará comigo.
Balançou novamente a cabeça:
- Todos vão ficar me olhando.
Não insisti. Notei que vestia mulambos. Eu não a constrangeria ainda mais.
Então sentamos na calçada e comemos cachorro-quente com refrigerantes.
Ela devorou o lanche como quem tem pressa, como quem tem medo de acordar de um sonho bom antes dele chegar ao fim.
Conversando, descobri que ela se chamava Dorothy. Ironia ou não, era esse o seu nome.
Levantamos. Não podia me dar ao luxo de demorar a voltar ao trabalho num período tão movimentado do ano.
Ela agradeceu muito e muitas vezes e foi se despedindo.
Pedi que esperasse um pouco.
Voltei com a caixa nas mãos embrulhada com um lindo papel de presente enfeitado com fitas vermelhas. Entreguei-lhe.
Ela ficou paralisada por uns minutos. Depois abriu o embrulho cheia de cuidados para não danificar o papel. Ela não queria rasgá-lo, queria conservar os sonhos em cada dobra que ia desfazendo.
Nunca vi alguém se iluminar tanto diante de um presente. De repente ela cresceu, suas roupas nem pareciam rotas, seu rosto ficou corado e seus olhos que eram fundos, ficaram rasos d'água.
Ela me abraçou forte, chorou aos soluços e depois me beijou.
Entrei na loja, mas fiquei observando ela indo embora, chispando, atravessando a rua feito raio ou trovão.
Vi o carro esporte se aproximando. Mal pude gritar seu nome.

Dorothy jazia no cruzamento da Alameda das Flores com Cristo Rei.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Sophia de Mello

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita

Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rastro
Que o não-vivido deixa
António Henriques

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Fuligem

O cansaço sobre mim se abate com sua mão pesada, seu sono profundo, com sua impiedosa apatia.
Os dias são de pouquíssimas palavras até mesmo porque tudo o que falo é incompreendido, ou pior, mal compreendido.
O tempo é de fragilidade e retaliação.
Busco refúgio em mim e isso é perigoso, sedutoramente perigoso.
Gosto da minha escuridão, dos meus escombros, eles não me horrorizam, não sinto sua fealdade. Como um cego, eu gosto do que conforta e não do que deslumbra.

terça-feira, dezembro 14, 2004

A gente já se acostumou (mas não devia) com a violência em todas as suas formas e graus.A gente constata, se entristece, mas não tanto a ponto de rodar a baiana.A violência circula pelos ambientes sem o menor constrangimento, até ganhou lugar na sala de estar.A gente se acostumou a acordar, dormir, trabalhar, conviver com a violência em todos os níveis: criança que sofre maus tratos dos pais, que é explorada sexualmente, mulher que toma porrada de marido, menino de rua que é espancado pela polícia, político metendo a mão na grana do povo, lesando a pátria. Sem contar a violência indireta à qual somos submetidos constantemente: somos obrigados a trabalhar com gente vil, mesquinha e burra, gente que usa a hierarquia para humilhar seus subalternos, gente incompetente para as suas atividades, mas bastante competente para criar desarmonia, enfim, a lista é grande.

Fico observando a época da barbárie e vejo que as coisas não mudaram muito. A gente saiu do domínio do confronto violento direto e se sofisticou.

Ontem tive um dia sofrível, a violência mais uma vez me esbofeteou.É a contra-gosto que escrevo o post de hoje, mas não fazê-lo me tornaria um ser humano pior.

Fiz meu segundo grau no Colégio Marista de Brasília. Foram anos ótimos, cheios de descobertas, transformações, inquietações.Alguns professores foram cruciais na minha vida, estimularam minhas habilidades, foram referência para minhas escolhas e posicionamento no mundo.Eu era um fiasco nas matérias exatas. Detestava os números e as equações. Sempre desconfiei dos resultados absolutos: dois mais dois igual a quatro, pau é pau, pedra é pedra, x = a 11, etc.Apesar dessa briga com os números, eu sempre fui fascinada por Física e Química. Como aquilo tudo era belo, filosófico e “viajante”, meu Deus!

Lembro com muito carinho de um professor de Química. Ele dava aulas práticas no laboratório – espaço tão mágico, repleto de misturas e poções.Posteriormente, ele “deixou de lecionar” para assumir o cargo de diretor do Colégio. Foi/ainda é um ótimo diretor. Diferente dos padres, que tinham aquela cara meio sisuda, ele era compreensivo, e sua experiência como professor facilitou o contato com os alunos, aproximando-nos, permitindo uma relação mais direta.Lembro de tê-lo visto com sua família, em duas ou três ocasiões – provavelmente nas festas do Colégio. E isso já tem uns 15 anos.

Pois bem, ontem, depois de tanto tempo, voltei a ter notícias deste professor.Na primeira página do jornal, li que sua filha foi brutalmente assassinada em sua casa no Lago Sul por um empregado. O caseiro não satisfeito em violentá-la, ainda a espancou, desfigurou seu rosto, estrangulou, esfaqueou e a enterrou no jardim de inverno de sua casa. Depois continuou trabalhando como se nada tivesse acontecido.Isso tudo aconteceu na sexta-feira e apenas no domingo ela foi descoberta porque seu corpo exalava mau cheiro.O crime foi premeditado. A história é muito mais cruel, cheia de requintes de maldade, envolve uma cúmplice... não vou me exceder nisto. Não é esta a minha intenção.

Desde ontem estou mal, imaginando a dor desses pais, o desespero de rever a filha desaparecida em condições tão aviltantes.Instantaneamente, reativei os vínculos afetivos de 15 anos atrás e senti muita dor, uma dor profunda e incomunicável.O rosto do meu professor não me sai da cabeça, os flahes falhos surgem a todo momento na minha memória: sua família nas festas do Colégio, uma garotinha de 3 anos de contornos indefinidos.Que porra de mundo é esse que a gente vive? Quais são os nossos valores? Existem valores? Que garantias tenho que vou voltar pra casa e encontrar tudo no lugar?

Tô passada.Eu tinha que usar o blog para denunciar isso, pra desabafar, pra prestar minha homenagem e solidariedade a essa pessoa que foi tão presente durante um período da minha vida.
Não sei se adianta, provavelmente não, mas aqui dentro de mim, eu precisava.
Não tem poema, conto, palavra que dê conta do amor.
Não tem fonema, pontuação que expresse sua inteireza, até porque o amor não quer pausas, lapsos ou intervalos. O amor, este que me habita, é coisa corridinha, encadeada, anda de mãos dadas, não suporta exílios.
O amor quer ser incluído nas mãos, coxas, braços, boca; quer obter formas tantas e outras; ser variado como o verbo.
Mas quando o amor pede pausa, (e a pausa no nosso amor é um terrível não estar em ti e em mim), apresso-me para preencher os espaços.
É quando nascem os poemas - quando vejo a cama vazia.
Uma cama vazia é como o papel frio, em branco, sem palavras. Não aquece, não transforma, não têm forma.
Descansado, o amor retorna e então as palavras cessam, se calam, vão fazer ecos em outra morada

terça-feira, dezembro 07, 2004

CONFRONTO

A palavra me toma,
Semitona.
Mastiga minhas parcas letras,
Engole outras que a alimentam
E cospe meu bolo apoético.

Ela corta tudo que sobra,
Eu soçobro...
Ela amalgama,
Eu despedaço...
Ela enovela,
Eu resvalo...
Ela finaliza,
Eu? Arre! Mato!

sexta-feira, dezembro 03, 2004

UMA ARTE

(Elizabeth Bishop - Tradução de Horácio Costa)

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.
Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.
Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.
Perdi o relógio de minha mãe. A última,
ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.
Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.
- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.

terça-feira, novembro 30, 2004

Todos os dias preparava a mesa com requinte e esmero. Cuidava da louça fina, da prataria. Escolhia com apuro a toalha de linho, o vinho, os cristais. Vestia-se impecavelmente, sem excessos. Esperava invariavelmente o relógio anunciar a hora do jantar. Sentava-se à mesa fingindo alegria. Servia a refeição, distribuindo sorrisos e mesuras.
Até que numa certa noite, cansou de tanta rotina, de tanto tédio, da elegância fria e incolor dos gestos, da conversa superficial e desinteressante. Levantou-se sem pedir licença, saiu e perdeu-se na neblina, confundindo-se à multidão inquieta e agitada.
A palavra perfeita?
Não ouso sequer pronunciar.
Ela deixa a garganta estreita
E esgarça as cordas ao vibrar.
As vozes?
Estão sempre à espreita,
Esperando o tempo certo de falar.

quinta-feira, novembro 25, 2004

Vocês conhecem o Jayme?
Eu o conheci quando vasculhava os blogs da vida. Deparei-me com esse cara articulado e de pena afiada.
Gosto do que ele escreve: artigos, opiniões, confissões... mas gosto ainda mais quando ele ficciona e produz histórias sensíveis como essa que trago para vocês.

Mini 49

Primeiro, ela me disse não. 1949, eu acho. Depois, ela me disse "quem é você?", duas ou três vezes, na metade dos anos 50. "Quem mesmo?" quando eu comemorava a copa de 62. "Ah, você. Eu não imaginava".

Me disse "talvez" em 64, ambos com 30 anos, em um jantarzinho no Le Coin. Casamos em 66, quando finalmente ela me disse "sim". Falamos pouco, daí em diante. Quando perdemos a copa de 82, ela veio me dizer que teria sido diferente se tivéssemos tido filhos. Mas que assim, compensação, era mais fácil ir embora. Não consegui lhe dizer "não".

De vez em quando ela liga.

quarta-feira, novembro 24, 2004

Aos poucos, ele se afasta.
Caminha por uma faixa estreita
Em direção às dunas
A procura de algo que não sabe o nome.
Eu não posso ajudá-lo.


Durante a espera
Ponho-me a escrever.
Escrevo muito.
Todo poema meu
É o mesmo e outro.
Repito-me, refaço-me.

Quando ele voltar,
Se voltar,
Oferecerei minhas mãos em concha
E meus braços em arcos simétricos.
Revestirei sua pele com a minha
E guardarei seu corpo no meu.

Assim como as palavras
Seremos os mesmos
Com novos sentidos.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Não sei quem é
(Mario Benedetti)

É provável que venha de muito longe
não sei quem é nem aonde vai
é só uma mulher que morre de amor
nota-se em suas pétalas de lua
em sua paciência de algodão
em seus lábios sem beijos ou outras cicatrizes
nos olhos de oliva e penitência
esta mulher que morre de amor
e chora protegida pela chuva
sabe que não é amada nem nos sonhos
leva nas mãos suas carícias virgens
que não encontraram pele onde pousar e
com o passar do tempo
sua luxúria derrama-se em um pote de cinzas.

quinta-feira, novembro 18, 2004

Num impulso, ela resolve telefonar.
Ele atende e os quase 2.500 km que os separam dissolvem-se no tempo.
Sua voz clara deixa transparecer a felicidade que sente ao ouvi-la. Felicidade compartilhada por ela.
Ele pede um minuto para fechar a porta do quarto. Ao fazê-lo um mundo paralelo se apresenta, transportando-os para um lugar secreto onde não podem ser alcançados.
Há algo de clandestino nesse encontro. Há também uma intenção velada que nenhum dos dois ousa mencionar para não correr o risco de ter a sintonia quebrada, a mágica desfeita, o amor revelado.
Algumas verdades não precisam ser ditas. Se proferidas, conspurcariam o espaço sagrado do encantamento.

quarta-feira, novembro 17, 2004

Tempo

SAUDADE

Não sinto dor nem saudade
apenas escuto os ponteiros do coração
batendo descompassado:
tic tac tic tac
Luís Duarte, Era uma vez...

quinta-feira, novembro 11, 2004

DESEJO

Eu queria o movimento das horas
Fazer parte do mundo como se fôssemos um.
E não como mera contempladora,
Aquela que assiste ao desfile do tempo.
Eu queria a dureza dos punhais.
Fincar forte no solo dos sonhos,
Sangrar na alma o cansaço e as desilusões
Para que eles não me dominem jamais.

Eu queria a delicadeza dos cristais.
Fruir rarefeita pelo espaço,
Preencher os pensamentos, poros, buracos,
Completar as lacunas da solidão.

quarta-feira, novembro 10, 2004

Silêncio – voz de todas as coisas.
Estou imune aos barulhos
Dos apitos, das ruas, buzinas.
Vago nas noites ermas,
Nas cinzas das horas vazias.

terça-feira, novembro 09, 2004

isto, aquilo e tudo o mais

Queria amar de modo comedido, falar só o necessário, não sentir os estremecimentos de sua ausência, não perceber a inquietação dos seus pensamentos.
Amar o bastante, amar apenas o suficiente.
Não, não sei responder se amor-bastante, amor-suficiente é amor, afinal, eu não conheço um conceito que tenha a capacidade de definir com precisão este sentimento, mas eu gostaria de poder experimentar esse outro lado.
Gostaria de não me sentir perdida, de não ser tomada de agonia e angústia quando detecto na pele as reticências e indefinições represadas no íntimo de quem amo, gostaria de poder passar placidamente por suas águas revoltas, não me turvar diante de sua imagem distante. Queria poder esperar sem limites...
Qual a medida, qual o ponto de equilíbrio?
Quando saber se " o respeito pelo silêncio do outro" virou abandono?; se "a não invasão ao espaço alheio" virou descaso e solidão?
Amar se aprende amando não é regra geral.
Eu particularizaria: amar João se aprende amando João; amar José se aprende amando José, amar Tereza se aprende amando Tereza...
Amar é verbo vago e cambiante. Toda pessoa é uma exceção e suas regras não se estendem a sujeitos vários.
Amar também é uma identidade: pessoal e intransferível.

segunda-feira, novembro 08, 2004

Inabilidade

Eu não sei cantar,
escrevo mal.
Preciso de quase nada.
Um pouco de liberdade
e um punhado de sonhos,
talvez.
Disto eu entendo –
Voar por espaços mágicos
E inatingíveis.
Meu lar é o infinito.

quinta-feira, novembro 04, 2004

BICHO-PAPÃO

Bastou amanhecer para que a criança sentisse o cheiro do perigo a rondar.

Farejou um pouco mais e descobriu suas formas.

O perigo é uma ave de rapina com sorriso de gato. Sua face sorridente oculta olhos vorazes e dentes fortes.

O aspecto doce não disfarça seu apetite selvagem por carnes tenras e lágrimas convulsas. Delicia-se quando nota o pavor, emanando o perfume enjoativo do medo.

A criança entende seu jogo: enxuga o orvalho da cara, engole o choro e desdenha de sua aparência medonha.

O perigo enfia o rabo entre as pernas, baixa as orelhas e dorme faminto.

O perigo, uma dia, vai morrer à míngua feito cão danado e sem dono, porque a criança vai crescer e descobrir que não existe bicho-papão.

quarta-feira, novembro 03, 2004

Perguntava-me freqüentemente o que realmente me importava. Perdida nessa procura, sem alcançar grandes respostas, voltava novamente a vagar por sentidos.
Li em algum lugar que os gregos, diante da morte, tinham uma única pergunta: viveu com paixão?
A paixão (ou pulsão, talvez dissesse Freud) move o mundo. Muito mais que um clichê, a frase remete às origens profundas da busca do conhecimento humano.
A paixão, numa visão ampla, pode ser entendida como o sopro criador, como o elemento motivador da vida. Ela nos remete à intricada e delicada arte da tapeçaria, dos vitrais, dos mosaicos.
A dissipação dos cristais, a trama dos fios, o contraste das cores e formas reproduz as ações e movimentos individuais para que mais adiante, no grande panorama da vida, vislumbremos o percurso da humanidade pelas realizações de seus anseios.
Recordando tudo isso, fica fácil responder a questão: importa-me a palavra que tudo nomeia e dá sentido.
Foi pela palavra que aprendi a ter tantas paixões.
Paixão pela noite que me abriga; paixão pela música que me transporta; pelos filhos que não tive e são tão meus; pelo homem que amo e contemplo, ainda que, por vezes, se distancie e isole sem anúncio ou cuidados.
Tendo todos esses elementos, risco meu bordado para depois cobri-lo com mil tramas, todas elas gestadas em e por mim.
Quando o trabalho estiver completo, a gravura surgirá em resposta à pergunta última: sim, viveu apaixonadamente.
Distraída, toco as estrelas que povoam nosso quarto e de repente sou luz vazando teus olhos.

Fluida, líquida, eu me derramo em ti feito enchente, preenchendo todos os seus espaços.

Pleno, você ofega ardências sutis, depois desfila suas mãos convulsas, numa procura febril pelo meu nascedouro, de onde jorro minha seiva vital.

Extenuado pela busca, afrouxa os dedos ágeis e deixa-se cair, ainda ignorante da minha gênese.
Tenta, em vão, balbuciar a pergunta-enigma; selo meus lábios nos seus e o mistério perpetua-se.
A Lua, de Hugo Neto

terça-feira, outubro 26, 2004

Há dias em que amanheço assim: rastejando sentidos.
Vejo incompletude em tudo e eu busco um ponto final, palavras terminativas, o próximo capítulo.
Estou farta de andar por vagas, terrenos movediços que cedem à mais leve pressão dos pés.
Eu não quero delicadezas.
Quero o peso conclusivo do discurso removendo minhas entranhas até clarear meu olhar.
Não creio (mas tem quem prove!) que a bruma densa que vejo seja sinônimo de lirismo e não de vertigem.
Não gosto de abismos, se ando por eles é por pura imposição, por circunstâncias.
Tão logo eu encontre a explicação, amanhecerei diferente.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Revisitando

Há três anos atrás, quando escrevi esse conto infantil, vivia um período difícil e confuso.
Hoje, relendo-o, compreendo seu valor, seu significado.
Espero que gostem.
http://nationalgeographic.com

A LENDA DO VAGA-LUME

- Para João Gabriel



Era uma vez, há muito tempo atrás, uma comunidade de vaga-lumes que morava num escuro matagal.
Dentre os vaga-lumes dessa comunidade, havia um muito diferente: ele não piscava. Não se sabia o motivo, mas sua luz nunca acendeu.
Andava para cá e para lá, sempre acompanhado pelo grupo que temia seu desaparecimento mata adentro. Mas o danado do bichinho era esperto que só ele!
No grupo, os mais jovens, por não entenderem a falta de luz do colega, faziam piadas e riam de seu defeito.
Quando ele ficava zangado com os tais deboches, corria ao encontro de D. Coruja.
D. Coruja – que era velha e muito sábia, já tinha vivido muitas aventuras e lido outras tantas nos livros – ensinou muitas coisas ao vaga-lume.
Um dia, ela contou-lhe uma história chamada "Lanterna Mágica". D. Coruja sabia como deixar as histórias tão mais interessantes, passava horas narrando cada detalhe.
O vaga-lume ouviu tudo encantado. Não sabia da existência de um objeto que acendia e apagava tal como ele.
Perdidos entre livros, a tarde passara e quando perceberam, já era noite.
- D. Coruja, muito obrigada por tudo, mas devo voltar para casa. Já é noite e mamãe deve estar preocupada.
- É mesmo! Ficou tarde e nem notamos. Boa noite amiguinho.
- Boa noite, D. Coruja.
Certo dia, o vaga-lume voltou à casa da amiga Coruja para ouvir mais histórias. Vendo que ela era mesmo muito sábia e inteligente, tomou coragem, encheu o peito de ar e perguntou:
- D. Coruja, por que minha luz não funciona?
Ela olhou bem nos olhos de seu amiguinho e falou:
- Eu estaria mentindo se dissesse que conheço o motivo. Realmente, não sei. Não entendo porque ela não funciona como a de todos os outros de sua espécie. Mas um dia você entenderá que existem outras formas de iluminar o mundo.
O vaga-lume não entendeu muito bem o que D. Coruja queria dizer, mas não perguntou mais nada. Agradeceu e foi passear na mata.
Já no caminho de casa, o pequeno vaga-lume viu um garotinho que estava perdido. Ele se afastou do acampamento e não conseguia achar o caminho de volta.
Ele ficou surpreso ao notar que o garotinho tinha mãos que acendiam e apagavam.
Ele aproximou-se do garoto e perguntou, curioso:
- Crianças são como vaga-lumes?
O menino, assustado, ouviu a voz, mas não viu ninguém:
- Quem está aí?
- Sou eu, um vaga-lume, disse, chegando bem perto do menino.
- Um vaga-lume? Onde está a sua luz?
- Sou diferente. Minha luz não acende.
O vaga-lume contou sua história ao garotinho, que ficou emocionado.
- Estou perdido. Você poderia me levar de volta ao acampamento? Se puder, dou um presente pra você.
- Eu ajudo você. Não precisa me dá nada, não.
O vaga-lume o guiou até o acampamento. Chegando lá, disse:
- Pronto. Já está entre os seus amigos. Agora preciso voltar pra casa. Tchau!
- Espere! Eu quero lhe dar um presente.
Colocou a mão no bolso e entregou-lhe o presente.
- Não eram as minhas mãos que brilhavam, mas uma lanterninha que sempre trago comigo. Agora é sua.
- Uma lanterna? Você vai me dar sua lanterna?
- Vou. Não preciso mais dela. E agora você poderá piscar como qualquer outro vaga-lume.
Ele agradeceu e partiu contente da vida, dando piruetas no ar.
Hoje, o vaga-lume que mais brilha e possui luz mais forte é Lanterna. É ele quem lidera o grupo nas noites escuras do matagal.

(Luciana Melo - 24/10/01 e modificado em 25/10/04)

quarta-feira, outubro 20, 2004

As ondas

Ele segue insone pela madrugada.
A movimentação interna em busca de um lugar adequado para suas inquietações e turbulências é grande.
Em casa, todos os cômodos foram vasculhados inutilmente, no afã de encontrar uma resposta, mas qual resposta, se ele não consegue sequer formular a questão?
Sua alma pesada, se atirada, afundaria, provocando ondas na superfície, mas como já sabia, em dia de tormenta, ele preferia ser farol que observa tudo de longe, evitando assim, o risco de causar as tais oscilações n'água.
As reverberações que lhe possuem são tantas, não convém precipitar os ecos, atiçando o fogo breve das horas escuras.
A madrugada passará e levará com ela o cansaço, os olhos ressaquiados, as olheiras, mas os movimentos internos, não tem sol que os dissipe.

terça-feira, outubro 19, 2004

Apresentando...

Trago hoje, os versos de Hércio Afonso.
Hércio é um amigo e grande admirador da poesia, mais ainda do poema-mínimo, dos haicais.
De tanto admirar, ficou ás na arte dos poetrix.
SILÊNCIO

OS SONS GOTEJAVAM
AS MINHAS LÁGRIMAS
NOS SEUS LÁBIOS

O endereço abaixo é o link para que os interessados possam copiar o arquivo (download) do livro de Poetrix organizado pela poeta Lilian Maial e do qual o autor participa.
http://www.onlinebook.com.br/acervo/poetrix.exe

sexta-feira, outubro 15, 2004

Escrevo desde coisas mínimas, meus afazeres diários, receitas culinárias até as palavras mais pretensiosas. Vou escrevendo... faço isso para não me perder, para existir, para não esquecer as delicadas coisas cotidianas.
Dia desses, fui acordada cedo pelo odor de sabonete pela casa.
Era o restinho da fragrância noturna das damas-da-noite que ainda recendia. O aroma destas flores lembra minha infância, as brincadeiras na rua, o jogo da amarelinha, roupas limpas cheirando a sabão em pó.
Os aromas são sinais gráficos que enfatizam a vida.
Hoje, noite escura e de denso nevoeiro, acendo a lareira.
O crepitar das chamas instiga-me a escrever, então, sob a luz do fogo pálido, guardo, em palavras, os barulhos e os sons.
Orff soa-me como fuga, desespero, ansiedade; Lizst tem som de alvorada – um eterno despertar; Offenbach é pura esperança. Beethoven tem ares de contemplação; Mozart é dança frenética acompanhada de gargalhadas sonorosas. Estou sempre sorrindo quando escuto Mozart.
Desligado o som da memória, passo a ouvir os grilos que cantam... cantam cantigas para ninar a noite.
Músicas são palavras mudas dialogando diretamente com nossas lembranças.

http://nationalgeographic.com

quarta-feira, outubro 13, 2004

COMO SE FOSSE BRINCADEIRA DE RODA

A vida é uma ciranda, cirandinha.
Brincadeira de roda,
Idas e voltas.

Vitrine que se espatifa
A uma só pedrada.
Vidro que se desmancha no ar,
Ferindo os olhos d’alma
Impedindo-os de enxergar.

Mas eu não!
Eu vejo o olho do furacão,
Sinto o perfume do vento,
Mastigo a fome que me devora.

Ciranda, cirandinha.
Volta e meia,
Eu, inteira.


Chagall

quinta-feira, outubro 07, 2004

Historinha manuscrita por Osman Lins para suas meninas

Era uma vez um homem que não servia para nada. Nem mesmo para mentir: suas histórias eram sem graça, inventadas com tanta falta de jeito, que aborreciam todo mundo.
Então, como era preciso conseguir-lhe alguma serventia, começaram a lhe pregar na roupa as fitas e medalhas que eram encontradas nas gavetas. E que, como o tal homem, também não serviam para nada.
Depois de algum tempo, o homem parecia uma loja de miudezas, um armarinho. Até nas pernas tinha penduricalhos, santinhos, medalhinhas, medalhões.
Foi aí que as próprias pessoas que, como esse homem, para nada serviam, tinham pendurado nele essas coisas, começaram a respeitá-lo.
Os que chegavam de fora e visitavam a cidade, vendo aquela figura cheia de medalhas, pensavam que era um grande herói. Tiravam o chapéu diante dele e se curvavam, afastando-se para dar-lhe passagem.
Quanto ao Vale-nada, vendo-se tão glorificado, passou a considerar-se um Rei. Passou a dar ordens, cada vez mais cruéis.
As pessoas, com pavor do tirano que, por brincadeira ou fastio, haviam criado, fugiram.
O homem ficou sozinho na cidade. Sem coragem de trabalhar, não plantava nem criava. Um dia, não tendo mais o que comer, comeu as próprias medalhas e morreu engasgado.

Mini-conto

"Marcou-me a pele o seu silêncio".
Entrou em casa, pálido, gélido, reticente. Mal olhou-me nos olhos. Passou direto para o quarto, pegou uma mala – a maior – e despejou suas roupas apressadamente como o faz um fugitivo, um criminoso.
Esvaziou o armário e gavetas, foi à estante e escolheu alguns poucos livros e CDs.
Angustiada com sua movimentação, perguntei:
- Viagem a trabalho?
Não houve resposta.
Levantei-me e fui em sua direção. Olhando aquela bagunça e sem entender nada, disparei, trêmula, antevendo o que estava por acontecer:
- Amei as rosas, o cartão... lindos como a noite de ontem.
Novamente aquele silêncio devorador.
Mala pronta, ele respirou fundo e finalmente me encarou.
Puxou-me pelos ombros, beijou-me lento e demorado. Depois, afastou-se, relutante, tendo os olhos úmidos.
Pegou a mala, passou os olhos pela sala, parou por alguns segundos diante dos porta-retratos, sorriu amargo e partiu.
Fiquei paralisada por um longo período, nem sei precisar quanto, olhando fixo a porta.
Fui despertando aos poucos, sentindo uma ardência no corpo a corroer-me por inteiro.
Olhei para mim e feridas enormes povoavam-me.
Passados os dias, as feridas cicatrizaram. Cada cicatriz originou uma palavra.
"É, marcou-me a pele o seu silêncio."

terça-feira, outubro 05, 2004

Intenções

É noite, faz calor, um certo torpor anestesia a cidade.
Ele vem me visitar. Traz na mão uma flor de cor intensa e vibrante.
Sorri, mas seu sorriso não consegue disfarçar o cansaço, a angústia, a frustração por trás do olhar. Um olhar pluvioso, marítimo e já irritado pela quantidade de sal que esconde.
Ele entrega-me a flor num gesto de quem quer entregar-se a si próprio.
Recebo-a, cerco-a de cuidados porque sei que tenho em minhas mãos muito mais do que uma flor. Tenho uma esperança, um sonho.
Embora haja cansaço, a intensidade de sua cor me diz que também há resistência.
Envolvo-os, aqueço-os, homem e flor.
Ofereço-lhes meu regaço como mãe que oferece o seio ao filho.
Nutro-os.
A flor se satisfaz e exala resplendor, perfumando o quarto que nos abriga, a cama que nos acalenta.
Silentes e entrelaçados, esperamos uma nova manhã.
http://itisphoto.com

Glossolalia

Esse espaço de palavras caóticas ganhou esse nome por causa de um homem que através de sua literatura modificou minha vida, a minha forma de ver o mundo. Ele pincelou com novo colorido meu olhar sobre o sagrado e o humano; fez aflorar a generosidade que havia em mim; aguçou minha fome de letras; acalmou minhas angústias por ter uma mente operária e inquieta, mostrando-me novas possibilidades; fez-me perceber que a maquininha interna que me habita não consiste num mal apenas... ela também pode ser bênção.
Após a minha queda, não ao fosso do Edifício Martinelli, mas ao da minha própria construção subjetiva, aprendi a falar em línguas, a gostar da turba, do vozerio harmônico que viaja por lugares e pessoas.
Ele ficou pouco tempo entre nós, mas o suficiente para construir um projeto literário vivo e consistente.
Saudades, Osman.


Aos nove anos de idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da mudez.

(...)

"Assim vivo, nesta comunhão que me multiplica e me atormenta, assim vivo, até precipitar-me para baixo no meu velocípede, eu e o mundo, eu e as três rodas que giram em derredor de mim, e tudo escurece e nessa escuridão eu sou novamente formulada, eu, novamente sou parida, sim, nasço outra vez.

(...)

"Gero-me para a queda, para isto cresço, para esse lance amadureço enquanto os dias surgem, passam, surgem e passam, os dias. Quem me pare outra vez? De quem sou filha, eu, na segunda vez em que nasço? De uma palavra? Ordena alguém: "Nasce!", e então obedeço, sou nada? Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros, nascido de mulher? Nado de si mesmo? Nado no ar, do ar?

(...)

"Súbito, de algum ponto, voz subterrânea, a queda começa a atuar sobre mim. Exerce sobre o meu ser sua atração, chama-me como o mundo exterior chama o nascituro e eu não sou alheia a essa invocação. Minha inquietude agrava-se; deixo-me cair vinte vezes por dia, do velocípede, da minha cama, da velha e rangedora cama dos meus pais, da grande mesa redonda...

(...)

"Ainda não falo. Sem falar, desagrego as coisas, desmonto-as, separo umas das outras, reorganizo-as em mim. Removo, do edifício, o nosso apartamento; o edifício (chama-se Martinelli), removo-o do quarteirão; o quarteirão, isolo-o da cidade. Instauro brechas e vãos. O mundo é uma constelação de espadas regirantes e todas as manhãs, esta pergunta me assalta: "Como sobreviver?"

(...)

"Levo a mão à boca e mordo esta certeza, este espanto, esta amargura, este ódio, esta ira, levanto-me e decido-me, não guardarei silêncio, porei termo ao silêncio, vou falar, abro a boca, mas não é fácil falar, tenho a língua e a laringe cheias de teias de aranha, aspiro o ar e expiro-o, pela boca, com dificuldade, eles me olham, meu pai leva a corneta aos lábios, crispam-se no chapéu os dedos de minha mãe e eu grito, cuspo, vomito em suas caras: "Inrerno. Inrerno". O nome não é este, mas tenho de dizê-lo, o esforço me exaure, eu caio de joelhos, perduram os movimentos convulsivos e eu tento outra vez como quem tenta um salto, um mergulho, um passe acrobático, tento outra vez, agora com mais força, com mais ódio, e grito: "Inferno!" é a primeira palavra que libero, a primeira, volto a repeti-la, quatro, cinco vezes, de modo cada vez mais débil, depois me curvo, toco o chão com a fronte e caio em pranto.

(...)

"A testa ainda no chão, começo a balbuciar. Meu pai e minha mãe acreditam que eu esteja possessa do demônio. Falo aos solavancos, sem pensar, sem nexo, minhas palavras são pus, minha boca um abcesso aberto, falo sem parar, às vezes murmurando, aos brados em seguida, e assim como antes muitas palavras se formulam em mim sem que as pronuncie, falo agora de coisas que estão fora do meu entendimento. Leio um dia em Virgílio que as nações submetidas a Roma, os dias de triunfo, jogos públicos, ovações sacrifícios, coros de matronas, naus de guerra, deuses monstruosos e todas as batalhas, postas por ordem, aparecem no escudo fabricado para o filho de Vênus. Este, quando cinge a obra de Vulcano, ignora cingir os eventos e figuras de que participa a sua estirpe. As palavras que lanço em meu discurso sem-fim e incontrolável também representam a minha própria vida, embora ao proferi-las tudo eu ignore sobre isto; e ainda maior que a do Troiano é a minha ignorância, pois, ao contrário das batalhas cinzeladas em seu temível apresto de guerra, postas por ordem, os personagens e eventos a que devo ligar-me vêm fragmentados nas palavras, frases e nomes que enuncio, nomes, frases e palavras dos quais muitos voltam, são repetidos pela manhã, à noite, nesses dias e noites em que falo e falo sem parar, quantos, quantas?, muitos, talvez três, talvez cinco, difícil saber, dias e noites em que quase não durmo e, mesmo enquanto durmo, ainda falo. Visitantes contristados olham-me de longe, nem sequer atrevendo-se a passar a porta do meu quarto, eu como pouco e mal, engolindo palavras, bebo apenas para refrescar a garganta dolorida, a voz extingue-se, exausta eu fecho os olhos e mesmo assim meus lábios secos continuam a mover-se, eu continuo a falar, dentro de mim..."

LINS, Osman. Avalovara

quarta-feira, setembro 29, 2004

AMANHECER

O quarto amanheceu em orquídeas prazenteiras.
Um simples sinal, cores, pétalas e você manifesta-se por inteiro, pronto para me devorar. E eu gosto quando me devora por completo, sorve meus lábios, bebe minha alma, penetra meus olhos, faz morada em minhas mãos pequenas e nervosas.
O papel reciclado em que me dizes repetidas vezes "eu te amo, amo, amo" regenera o sono perdido em que te busco incansável; refresca a impaciente garganta minha que sôfrega, trôpega, ébria chama por ti.
Bastou que as orquídeas, este suave organdi, chegassem para que as minhas janelas se abrissem em luz.

AMAR SE APRENDE AMANDO

Amo-o.
Mas ama-se o que em quem se ama?
O que exatamente faz com que o amor se manifeste em quem se ama, quando se ama?
Amo-o.
E amá-lo é uma orquestração, uma afinação poética e velada entre nossas faces rubras, selvagens.
Amo-o. Mas o que nele ressalta, exalta-me é o que realmente vejo? O que pressinto?
O amor, este artefato de complexo manejo, com seus cômodos secretos, corredores esfingéticos, envolve-nos em seus meandros. Ao menor descuido nosso, suas lâminas afiadas, suas lanças pontiagudas, lanham a pele, ferem fundo a carne.
Com que presteza e perícia os dedos habilidosos tecem essa fina trama!
Amo-o.
Às vezes de modo tão cortante, às vezes delicadamente, mas sempre denso e luminoso.
Sorvo sua boca. Enlaço minha língua na sua e, entre dentes, reverbera silenciosamente a palavra amor, embebida de ânsia e ondas.
Amo-o.
E nesse encontro de bocas e rostos, falamos e fazemos amor em segredo.

segunda-feira, setembro 27, 2004

UM AFAGO NA ALMA

Desperto desse sonho chamado vida sem saber qual direção devo tomar.
Não sei se encaro meus olhos no espelho ou se sigo refletindo os olhos dos outros – escudos de mim.
Cada olho que nos atravessa arpoa o corpo, mas sempre tem um olho que nos vara a alma, deixando o coração exposto e entregue às mãos displicentes do destino.
A espera é longa e suave. Deleita a pele, descansa o corpo, umedece a boca ávida de vida.
Há vida tanta enrodilhando os passos desgovernados, vacilantes do grande encontro, do grande enigma que move os dias.
Existe uma ternura ingênua nessa incerteza; é como se tocar o desconhecido nos concedesse a surpresa do inesperado bom, sua maciez, sua aspereza, sua totalidade.
Despertar do sonho chamado vida ultrapassa todo limite, qualquer explicação.
Di cavalcanti

sexta-feira, setembro 24, 2004

O MEDO É AMARELO

A flor amarela do medo rompeu o dia frio e cinzento. Ainda que tema, é uma flor; ainda que seja frágil, ela sobrevive às sombras.
Ela vive apesar da incapacidade humana de se surpreender com a delicadeza dos pequenos milagres cotidianos, da inteireza ingênua do riso, dos olhos famintos da morte.
Independente de qualquer querer, a nossa absurda contemplação autista não lhe retira, não lhe demove de seu destino: o de seguir florindo.
A flor amarela rompeu o concreto, o cinza, o Nada.

quinta-feira, setembro 23, 2004

Formas várias

IstoÉ: Como é o seu processo de criação? Você escreve música?
Caymmi: Não. É tudo de ouvido mesmo.
IstoÉ: Mas você compõe acompanhando-se ao violão?
Caymmi: Também não. Quando perguntaram à minha mulher se eu tenho feito músicas, ela responde que não porque eu nunca pego no violão. Que me desculpe o meu violão, meu velho companheiro, mas eu não preciso dele. Como músico, sou limitadíssimo. Toco umas coisinhas, mas nunca faço o que Baden Powell é capaz de fazer. Então eu preciso de quê? Preciso de um sonho, de uma coisa misteriosa na cabeça, de um impulso interior. Daí nasce uma canção.

terça-feira, setembro 21, 2004

ASAS

Perdão.
Essa medida volátil, intocável que quando concedida, aceita, causa um alívio, uma leveza, um frêmito de alegria e prazer.
Diante de tal manifestação, eu me derreto e, então, me permito o perdão.
Concedo-me absolvição por todos os atos daninhos que pratiquei e cuja maior vítima fui eu mesma.
Eu me perdôo. E essa indulgência faz com que eu tenha o sentimento táctil de tudo o que é diáfano.

(DES)CAMINHOS

Tenho tentado chegar ao centro do coração do homem, do mundo; chegar ao local onde tudo pulsa, as imagens se distorcem, os sentimentos se confundem... lá onde tudo é bruto e sem lapidação, o sorvedouro fundo do nosso escuro.
Tenho tentado compreender qual porção da nossa humanidade é escolha e qual é circunstância, o que é vaporoso e o que a mão, de fato, alcança.
Em que parte de nossa história pessoal escolhemos o cinismo, a farsa, a representação? Em qual grande mentira fundamentamos nossa verdade?
Somos o que somos ou o que pensamos que somos? Esse cansaço latente na vida estufa a veia que pulsa e salta.
Estancamos o sangue na hora do corte e da dor, mas por dentro tudo é hemorrágico: desejo, febre, amor. Águas furiosas, caudalosas, contudo, represadas... de que vale tanta enchente que deságua no nada?
Nessas tantas tentativas, não quero cheia nem estio, busco, anseio a palavra libertária: qual será?

segunda-feira, setembro 20, 2004

REVISITANDO

Quando assumi o blogspot como novo hospedeiro, ganhei maior liberdade nos posts, pude pintar as palavras, adorná-las com imagens. Contudo, "perdi" todo o conteúdo do antigo blog porque não há maneira de transportar os arquivos antigos.
Por vezes sinto falta de objetos que ajudam a compor a ambientação da nova casa, não trazê-los é o mesmo que estilhaçar uma trajetória, omitindo sua gênese.
Aos poucos, eu mesma farei a mudança que começa hoje.
Então, aos amigos que já me acompanham, peço um pouco de paciência: por vezes vocês lerão coisas já vistas.
Aos novos amigos, desejo boa leitura.

SUFOCAÇÃO

Sou como a escrita – imprecisa.
Tento entender e imprimir sentidos às coisas, ao mundo, todavia, convivo com a dualidade voraz de me saber limitada. Frágil, às vezes. Débil, jamais.
Oscilamos – eu e a palavra – nos anéis da espiral do tempo.
Mantenho meus pés e mãos voltados para o infinito.
Isto torna-me ciente do sonho quimérico da perfeição (inalcançável). Nem por isso desisto da busca transformadora, ousada e desafiante pela plenitude dos signos.
Confesso que, em algumas horas, fico cansada dessa insanidade, sinto-me exaurida, esvaziada, porque sei da impossibilidade de entender tudo e imprimir os sinais que conferem essa tal noção de sentido. Também sei que nem sempre existe entendimento ou símbolos suficientes para traduzir o vendaval caótico que se passa internamente em mim e no embrião da palavra.
Em outras horas, fico repleta de significação e desacredito das cercas, fronteiras que delimitam a criação e a minha rebeldia de transgredir.

sábado, setembro 18, 2004

Ressaca

Sabe o que mais amo,
O que mais me completa?
- Tua boca sedenta, entreaberta.


Sabe o que me arrepia,
O que me converte?
- Teu corpo depois do amor, quase inerte.


De todas as coisas,
O que mais me alarma,
O que mais me apavora?
- Ver o dinheiro na cama
depois que você vai embora.

Bonnard

quinta-feira, setembro 16, 2004

Por que escrevo?

Se escrever é inventar outras realidades, o que isso significa?
Que não me ajusto ao que chamam de real?
E o que chamam real não será uma invenção que não me convence?
Eu estremeço cada vez que toco o lápis.
Os muitos eus que me habitam travam uma briga feroz. Eles disputam entre si o direito de ter voz, suas reivindicações se acumulam até não caberem mais em mim. Aí eu estouro em palavras.
Essa vontade de fluir, de ser fonte inesgotável de mistérios e segredos é horrível. Temo que após deixarem meu corpo, essas palavras soem como mentiras e inventar não é mentir, meu Deus!
Escrever é tocar no oculto, no submerso.
Escavo o solo em busca das palavras escondidas e quando as encontro e as pronuncio, elas já escondem outras.
Procuro a palavra embrionária, a palavra matriz. Aquela que dá vida a novas palavras e aos sussurros, mas encontrá-la seria reduzi-la, estraçalhá-la, esgotar seus significados. Então, escrevo palavras pobres, forjadas na plenitude do meu silêncio.
Insisto no ofício, porque escrever é tocar no impossível e impossível é não criar outras realidades que justifiquem a vida em mim.
http://thousandimages.com

quarta-feira, setembro 15, 2004

Artilharia

Um punhal atravessa minha garganta.
Uma sufocação toma-me de assalto, a vista escurece e é como morrer.
Tento falar, não consigo.
Tenho a boca repleta de cacos de vidro.
Sinto ânsia, náusea...vomito.
Vomito flores de cristal.
São bonitas, não resta dúvida, mas não têm alma, não têm cor, não perfumam.
A fragilidade dessas flores é bruta: não suporta a dor nem o grito, ainda que abafado e rouco.
Espatifam-se em vão. São incapazes de brotar.
Quero de volta as pétalas, mesmo que elas feneçam.
Trocaria, sem hesitação, o punhal que me cala pelos espinhos. Mesmo ferindo o verbo, eles resistem à vida.
http://itisphoto.com

segunda-feira, setembro 13, 2004

HIATO

Beija-se menos do que pedem as bocas.
Mas as bocas não pedem quando explodem em injúrias.
Abraça-se menos do que os ombros suportam.
E os ombros são capazes de suportar o peso do mundo.
De que falam as bocas?
- Do indizível.
Que peso pende dos ombros?
- O dos gestos impalpáveis.
Mas o indizível não é o vazio
Nem o gesto impalpável a tradução da ausência.
A boca e os braços atravessam o silêncio da noite.

sexta-feira, setembro 10, 2004

Intrumentos Cortantes

LÂMINA

Rodopio a noite inteira,
Rasgo meus panos,
Como minhas entranhas.
Sou farrapo, estilhaço de gente...
Minha alegria é a fome que me assanha.
Eu me transfiguro:
Espumo e blasfemo.
A lua é quem dita o meu tempo.
Meu cabelo é bicho feroz...
Meus olhos, um grito lancinante...
A minha boca, o meu algoz.
Sou faca, sou foice, sou instrumento cortante.

quinta-feira, setembro 09, 2004

NUME

Parado diante de mim, ele agarra-me pelos cabelos, perdendo-se entre os fios.
Traz minha boca bem próxima à sua, sopra seu hálito em meus ouvidos, passeia sua língua pelo meu pescoço, nuca, seios... escorrega suas mãos hábeis pelo meu corpo.
Espreita-me.
Finge distração quando na verdade detém todos os meus movimentos e olhares.
Provoca-me até que eu, delirante, em transe, suplique por estrelas, céus e órbitas.

quarta-feira, setembro 08, 2004

Presente

Agradeço ao amigo de terras portuguesas que me enviou esse poema lindo e que tem total identificação com esse blog.
Obrigada, Barba!
Beijos.

ELSINORE
(Mário Cesariny)

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Jerusalém prometida

Estou no centro do enigme que criei.
No seu cerne está o projeto da construção de uma cidade fabricada pela escrita.
O tempo, arenoso, esvai-se entre dedos, lembrando-me que ser artesão de palavras exige um embate cotidiano, sem tréguas.
O atrito entre mim e as palavras provoca faíscas. Nossas fagulhas revelam, ainda que minimamente, partes do enigma que clama por clareza e definição.
Começo, então, o percurso que imita a Torre de Babel: falo em línguas a fim de seduzir as palavras que tecerão os fios que enredam a vida e a morte.
Entre os pólos vida e morte, alfa e ômega é que se localiza a tal cidade verbal que se pretende eterna e indispensável, cidade que quer se perpetuar com seus muros, portões, jardins, esgotos, valas. Sua imponência não permite omissões; sua plenitude decorre da habilidade de espelhar as imperfeições humanas.
Nessa glossolalia, fundo reinos, invento paisagens, firmo pactos e confundo a turba esfaimada enfeitiçando os olhos com meu canto de sereia.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Desapego

Hoje eu não vou revolver a terra, não vou desarrumar gavetas, não vou vasculhar armários e bolsos, eu não vou procurar explicações.
Vou livrar-me dessas buscas. Começarei queimando papéis, palavras antigas, cartas. Lançarei fora tudo que é vão.
Pego o pacote que diz: cartas a mim mesma.
Quem no mundo escreve cartas para si próprio? Para quê? Qual o valor?
Para não cair em tentação de tentar justificar tamanha incongruência, rasgo os envelopes e preparo a fogueira.
O fogo queima, exorciza e santifica o passado.
Aspiro e sinto no ar o cheiro de incenso.

terça-feira, agosto 31, 2004

Minha música

Ouve! O que escrevo é música de câmara. Uma música belíssima que nasce das minhas profundezas. Lá onde tudo é sombra e criação incontida, irrepresável.
Busco no perfume da noite o alimento da minha regeneração. Respiro fundo e retiro a energia vital que embala o sono das palavras.
Enquanto elas dormem, faço vigília e espero a melodia tomar forma, então, escrevo e o que escrevo não é para ser lido.
Minha palavra é uma orquestração muda, é música silenciosa.

Observações de um domingo à noite

Há muitos motivos que justificam as lágrimas: o beijo, o colo, o alento, o riso do filho, o amor.
São motivos onde o choro embarga a alma, estreita laços afetivos, surpreende os ignorantes e poderosos, emociona os arrogantes.
Há, entretanto, motivos que empalidecem os rostos, desbotam os gestos, envergonham os sentidos, paralizam as expressões, desfalecem a coragem, enfim, desumanizam.

segunda-feira, agosto 30, 2004

Reticências

Quantas janelas precisam ser descerradas para que o mundo seja visto? O mundo cru e ofegante.
Lado-a-lado, o homem percorre longos caminhos sem se dar conta do outro. O outro, uma sombra que o acompanha.
O olhar, sempre ocupado, não tem tempo a perder (nem a ganhar).
O olho mira, o olho cega, o olho veda e tudo ao redor parda.
Perde-se a vida.
Lá fora, o tempo passa impreterivelmente.
Aqui dentro... quem sou eu?

sexta-feira, agosto 27, 2004

Um poeminha antigo

VIA CRUCIS


Por que tanto amor
Se não há lugar,
Não há espaço,
Não há cama no mundo
Que o suporte?

O amor cansou do amor...
Juntou seus pedaços,
Fragmentos de cartas,
Livros esquecidos,
Canções inacabadas
E sumiu na escuridão.

O amor não esperou o amor...
Não lhe deu asas,
Não foi paciente
E ainda abusou de duras palavras.

O amor se fartou de amor...
Bebeu veneno,
Engoliu sapos,
Engasgou e feneceu.

O amor olhou nos olhos do amor...
Não se reconheceu
Nem o reconheceu.
Apenas ressentiu-se
De continuar amando
Um amor ausente.

O amor morreu de amor...
O amor matou o amor
Num tedioso domingo sem nuvens

O amor agonizou,
Partiu-se, dilacerou-se
Em luz. Em plena
Quarta-feira voltou a ser
Cinzas, pó e mais nada.

(Luciana Melo – 09/09/03)


http://itisphoto.com

quarta-feira, agosto 25, 2004

Garrafas ao mar - II

Observo-me diante do espelho.
Sou dupla.
Existe uma em mim que se revela sem sutilezas ou temores.
Desconheço seu nome e imagino que ela pouco se importe com o fato. Poderia ser Joana, Maria, Irene. Que diferença um nome faz?
Ela é mais do que um chamamento, ela é um clamor.
Ela não fala, balbucia. Suas palavras roucas são ouvidas sem nenhuma dificuldade. Existe uma clareza enorme na articulação dos fonemas como se um anjo proclamasse revelações salvacionistas.
Amo essa mulher que se faz notar por sua presença pura e simples, sem adereços.
Seu corpo não pede acessórios. Tudo nela é essencial.

A outra mulher que me habita é barulhenta, acachapante. Fala rápido e em abundância. Tem o corpo coberto de miudezas que cintilam ao mais leve movimento.
Sua boca emite sons agudos que pretendem confundir e camuflar as reais intenções.
Tudo nela é inexato.

A imagem de ambas refletidas no espelho denuncia um jogo caleidoscópico onde as estranhezas individuais são um espetáculo à parte.

terça-feira, agosto 24, 2004

Garrafas ao mar - I

Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha.
Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho uma só palavra a dizer.
As palavras já ditas me amordaçaram a boca.
Clarice Lispector

Urge que eu vomite as espadas verbais que tanto ferem minhas entranhas e dissipam meu amor.
Escrevo, então, palavras ácidas como quem atira pedras em cristal, como quem precisa recuperar a lucidez adormecida.
Os estilhaços voam. Ao tocar o chão, eles já são diamantes que ecoam a música da minha loucura e produzem ferimentos rutilantes. Reluzem, mas não há qualquer vestígio de beleza.
Os cortes apenas testemunham o retinir do aço desembainhado. Fizemos um pacto solidário de silêncio e contemplação.
A intolerância que por vezes sinto é explicada pela sufocação de uma garganta estreita que deseja ser fosso, mas que encontra-se amordaçada pelo vazio opaco e denso.
Não tenho culpa se não sou entendida. Falar é a minha salvação.
Falo para salvar a mim mesma da inércia do mundo, do isolamento, da solidão asséptica que faxina os gestos impessoais dos que estão ao meu redor.
Tanta polidez, tanto lustro causa-me náuseas.
Quero poder falar da exuberância do caos.

segunda-feira, agosto 23, 2004

MISTÉRIOS

Entrego-me como a folha que bóia na enxurrada, não importo-me com o destino.
Viajo pelo seu itinerário, cruzo os rios caudalosos de seus braços, derreto-me na sua saliva doce e quente, deslizo pelo seu dorso.
Ele encontra-me e alimento-o com minha seiva, nutrindo nossos sonhos.
Alimentado, ele busca-me num bailado sincrônico de pernas e braços que imitam a arquitetura milenar dos labirintos e catedrais.
Ao transpor esse complexo arranjo de traços, ele penetra minha nave central e celebra a descoberta.

sexta-feira, agosto 20, 2004

Para Guido

Sentado em seu quarto, ele observa tudo pela janela: a vida passando, as pessoas passando, o tempo passando.
Só o que não passa é esse cansaço, essa rotina, a fadiga fossilizada.
Anseava por mudanças, pela banda, pela festa ou mesmo pelo silêncio, qualquer coisa. Queria ver o verde brotar, as coisas acontecerem, ver as transformações...
"Já que tudo parece tão estático, o único visual que posso mudar é o que vejo em frente à minha janela. E a mudança é fechá-la".
Levantou. Cerrou as cortinas e sumiu.

PALAVRA

A pedidos, resolvi publicar o poema na nova morada.


A palavra prima,
A palavra desdenha.
Não liga para rimas,
Não liga para senhas.

A palavra não se intimida!

A palavra inflama,
A palavra incendeia.
Ela desmancha os pontos
Tecidos na areia.

A palavra é teia!

A palavra encanta,
A palavra frustra.
Enovela os dramas
Na madrugada bruta.

A palavra é lâmina!
Escrever, Luis Pedro

quinta-feira, agosto 19, 2004

Celebração

Devorá-lo: eis o que mais gosto.
Delicio-o com tal voracidade que chego a sentir vertigens, tonturas. Junto a isso, uma vontade quase infantil de gargalhar explode.
Festejo sua presença. Bebo sua saliva. Danço em seu corpo.
Volakis

Allegro


Não quero ter a terrível limitação de quem
vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: Quero é uma verdade inventada.

Clarice Lispector

O despertador toca. Vinte para as seis. Corro corro tomo banho corro corro, acordo as crianças corro. Faço café arrumo lancheiras organizo uniformes corro. "Pra que tanta correria, meu Deus?! Tenho a respiração ofegante e um sentimento de eterno atraso." Corro. Paro em frente ao espelho. Somente agora vejo o meu rosto e o bom dia aterrador que minhas olheiras me dão. Corro, corretivo nelas, corro. Os cabelos são de ontem assim como o meu corpo. Corro. Pedro procura a mochila, Marina quer suas fitas e eu corro. Remexo gavetas, acho as fitas amarelas que emoldurarão o rosto de Marina. Pedro grita, nem sinal de mochila. Penso comigo mesma: "há sinais de mim?" Corro freneticamente. O sangue vaza pelas veias e mancha de vermelho o batom no meu sorriso. Sorriso?

Pego a primeira roupa no armário. Ela é verde como a minha pele. Visto e me desfaço (me disfarço?). O vestido dispensa sutiã corro e mesmo correndo não gosto dos seios sob o tecido. "Os seios não são os de ontem, mas os de 50 anos." Anciãos. Anseio descanso corro corro. O ritmo é tão acelerado que envelheço dez anos em um dia. Os olhos opacos no espelho não me pertencem.

Seis e meia. Corro. Pedro chora desesperado. Quede mochila? Num átimo de lucidez lembro que a maldita ficou esquecida no carro. Apesar da vontade de gritar, acalmo Pedro com um sorriso amarelo-desbotado-envelhecido. Corro.

Sinal trânsito pais atrasados surtando nos volantes, olhares armados. Deixo os meninos, nos despedimos aos tropeços. Nos beijamos mecanicamente. Corro.

Sete e quinze e já me sinto cansada, como se fosse fim de expediente. E pensar que ele ainda nem começou!

Uma preguiça de brigar por uma vaga no estacionamento, mas eu brigo, eu corro.

Sete e quarenta. Pego o elevador, fico espremida no canto, quase sufoco com o perfume de almíscar do moço à minha frente. Ele é gorduroso, tem os ombros do paletó escuro brancos de caspa. Tenho engulhos, mal posso respirar. Cantarolo silenciosamente uma música. Ocupo o pensamento para não lembrar das caspas. Finalmente, meu andar! Corro. Respiro fundo. O novo e sempre mesmo dia... voilà.

Sete e cinqüenta. Entro e a primeira cara com a qual me deparo é a da bruxa da Rita. Solteirona, mal humorada. Ela veste uma roupa cinza e sem graça como a vidinha dela. Pensamento malicioso me toma e gargalho. Imagino a Rita vestindo calcinha de lantejoulas vermelhas sob seu tailler gris. "Nem isso te faria puta!" Ela me pergunta o que há de tão engraçado. "Nada não", respondo. Ela me detesta. Empatamos.

O chefe se aproxima com a sua doentia palidez, se põe atrás de mim, fala qualquer coisa que ele julga inteligentemente engraçado. Engraçado é como alguém com hálito de cigarros e aroma de cachaça consegue se manter empregado, penso eu. "Pobre diabo". Me pede relatórios, quase toca meu ombro, mas meu olhar é tão fuzilante que seu gesto pára no ar, busca o braço como quem quer saber das horas. Corro dele.

Oito e meia. Corro para o telefone. Ligo em casa e ninguém atende. "Porra, a Isolda ainda não chegou!" Penso no caos que será o resto do dia se ela não aparecer para trabalhar. Não, melhor nem pensar, mais tarde tento de novo.

Nove horas. Depois de entregue os relatórios, me preparo para a primeira aula do dia. A nova turma de estagiários vem para o seminário de história da arte. Corro para não me atrasar. Entro na sala e me deparo com os alunos: uma mocinha esquisita mascando chiclete, garotos com cabelos multicor, um outro que não tem mais piercings no rosto por falta de espaço e lá bem no canto da sala encontro uma moça de longas tranças e sobrancelhas indescritíveis.

É olhar para ela e lembrar de Frida Khalo. Contrariando o programa, resolvo falar da artista mexicana. Ninguém entende nada. Falo e não sinto compreensão nos olhares. Continuo mesmo assim. As horas voam inevitavelmente e meu momento de deleite escorre. Corro penso em Isolda no almoço por fazer, corro.

Onze e quarenta. De volta à minha sala, telefono novamente para casa. Isolda atende com aquela sua voz arrastada. Alívio meu. Pede desculpas pelo atraso, a condução, uma greve, alguém caiu do ônibus. Fico lívida por não conseguir falar. Ela termina a história interminável. Diz que o almoço está quase pronto e que não preciso me preocupar porque ela vai buscar os meninos. Alívio de novo.
Vou à cafeteria. Tenho quarenta minutos de almoço. Corro peço salada, mas meus olhos devoram uma lasanha à bolonhesa. Olho meu prato verde e sem graça. E se...

Devolvo. "quero aquela lasanha". O molho borbulha, ela é vermelha como o sangue que colore o corpo, atraente como o pecado da gula deve ser.

"Não voltarei ao trabalho’. Passo pelo corredor cheio de visitantes, sorrio como se também fosse uma. Entro na sala dos professores pego minha bolsa papéis pastas e saio. Olhos interrogativos espetam-me. Não dou explicações. Amanhã talvez amanhã, mas amanhã está tão distante.

Dirijo pelas ruas já tão conhecidas como se fosse uma turista em busca de um endereço. Páro no parque desamarro os sapatos piso na grama fofa e úmida. Sento. O sol aquece-me, devora-me.

Leio os trabalhos dos alunos. Alguns são péssimos e pergunto-me por que fazem o curso se detestam estar ali. Outros são ótimos entusiasmados apaixonados, têm cheiro de chuva.

Decido comprar roupas novas e coloridas. Estou cansada da sobriedade. Eu nunca fui sóbria. Compro batons de tons alegres corto os cabelos. A tarde voa e eu não sinto.

Em casa, Isolda assusta-se ao me ver. Eu sorrio de sua expressão. Sinto-me um ser interplanetário. Dispenso-a. As crianças surgem limpas e cheirosas e por um momento estranham. No minuto seguinte correm até mim com olhares de aprovação: "mamãe, você está bonita", escuto em uníssono. Bonita. Já nem lembrava que podia ser bonita.

Anuncio que jantaremos fora. Vamos comer sanduíches, beber refrigerantes, mergulhar em sobremesas calóricas. Eles apressam-se. Suplico que não corram, eles estancam. Depois o riso corre frouxo. Como não correr?

"Desculpe, professora". Volto abruptamente. É a garota-Frida Khalo que esbarra em mim. Olho o relógio. Ainda tenho vinte minutos. Corro corro corro...

(Luciana Melo – no prelo)

quarta-feira, agosto 18, 2004

ABRIGO

Ele chegou e me viu por dentro.
Compreendeu minha angústia e, cúmplice, silenciou.
Não fez perguntas.
Generoso, ofertou-me seu colo.
Recebi seu calor, súplice.
Adoraria poder falar-lhe da dimensão do meu amor, da profundidade dos meus tormentos, da gratidão que sinto quando permanece ao meu lado mesmo sem entender... mas não posso.
Minha boca esfaimada abriga uma garganta rouca. Ela grita, mas é para dentro. Seus ecos ressoam internamente e por lá se perdem, tantos são os meus desvãos.
Sei apenas que o entrelaçar de nossas mãos não deixa dúvidas quanto ao caminho que escolhi: fluir e nele desembocar.

DESPE(R)TA(LA)R


Vejo-te e meus olhos vertem pétalas que ao cair perfumam a cama, lençóis, noites e manhãs adormecidas.
O amor recende pelos cômodos como quem, caprichosamente, quer fazer lembrar do viço de ontem, dos sussurros, que além de nós, somente a noite escuta.
Pela fresta da janela, as estrelas piscam seus olhos matreiros e cúmplices. Elas testemunham e reluzem o veludo escarlate com que as pétalas, por mim vertidas, adornam nosso leito.
http://itisphoto.com

terça-feira, agosto 17, 2004

DORMÊNCIA

Sabe esses dias em que tudo sobra, tudo transborda e provoca prostração?
Em todos os lados a imagem é do exagero. Diante de tal enormidade, alguns detalhes se extraviam no fluxo do olhar.
Contemplo a vida como quem assiste um filme enfadonho e repetido.
Desfarei esse desnivelamento – penso eu. Tomo providências de ócio e prazer.
Desligo a minha TV. Afago o gato – preguiçosos, eu e ele.
Fecho os olhos numa atitude displicente, afrouxo a roupa e viajo por um novo itinerário que ajuste as imagens disformes e agigantadas ao meu foco natural, de modo que eu nada perca, que nada se perca... assim, lentamente, tudo toma o seu lugar e sua inteireza.
Os limites, eles podem ser estendidos. As coisas podem ganhar proporções dentro de mim, mas não fora.
O lado de fora é seco, áspero. Não entende os anseios de uma alma intensa e impetuosa, que recusa o morno.
Bom mesmo é ser grande no lado de dentro, onde as vísceras pulsam
forte, oscilam entre temperaturas e texturas e beijam a grandiloqüência do Nada.
The white skirt, B. Klossowski.

LAR DOCE LAR

Estou feliz da vida por recebê-los em minha nova casa.
Aqui não terei problemas técnicos quando quiser postar imagens. Lá no UOL, como não era assinante, tinha limitações terríveis neste sentido.
Ajeitem-se entre as almofadas, enquanto o Chico dá as boas-vindas.

Ah, a reforma da casa contou com a providencial ajuda da Carmela. Ela é minha maga e guru, além de sócia do Hormoniosas. Obrigada, querida.
Belzinha, o que seria da minha vida sem você, hein, hein? Beijos

NA CARREIRA

Pintar, vestir
Virar uma aguardente
Para a próxima função
Rezar, cuspir
Surgir repentinamente
Na frente do telão
Mais um dia, mais uma cidade
Pra se apaixonar
Querer casar
Pedir a mão

Saltar, sair
Partir pé ante pé
Antes do povo despertar
Pular, zunir
Como um furtivo amante
Antes do dia clarear
Apagar as pistas de que um dia
Ali já foi feliz
Criar raiz
E se arrancar

Hora de ir embora
Quando o corpo quer ficar
Toda alma de artista quer partir
Arte de deixar algum lugar
Quando não se tem pra onde ir

Chegar, sorrir
Mentir feito um mascate
Quando desce na estação
Parar, ouvir
Sentir que tatibitati
Que bate o coração
Mais um dia, mais uma cidade
Para enlouquecer
O bem-querer
O turbilhão

Bocas, quantas bocas
A cidade vai abrir
Pruma alma de artista se entregar
Palmas pro artista confundir
Pernas pro artista tropeçar

Voar, fugir
Como o rei dos ciganos
Quando junta os cobres seus
Chorar, ganir
Como o mais pobre dos pobres
Dos pobres dos plebeus

Ir deixando a pele em cada palco
E não olhar pra trás
E nem jamais
Jamais dizer
Adeus