quinta-feira, maio 18, 2006

Sobre violência e queijandos

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Guernica, Picasso. Museu do Prado.

Sempre pensei no Glossolalias como um espaço eminentemente literário, mas depois do post A arte engajada, acho que as pessoas tiveram uma leve impressão do meu entendimento sobre o que é literatura.
Quem já me conhece há mais tempo, sabe exatamente que uso a palavra como uma forma de expressão artística, mas também para realizar minhas catarses e refletir sobre o mundo ao meu redor.
Devido aos últimos acontecimentos, não posso simplesmente me calar. Prometo não ser muito enfadonha nem fazer análise política da atual conjuntura brasileira, mas fica difícil manter-se alheio à crise dos poderes e do Estado.
Após assistir ao último Roda Viva, 15/05/06, fiquei pensando em como somos hipócritas e coniventes com as coisas. Os modismos vêm e vão e aderimos a ele sem pensar.
Lembro-me que, na época do ataque às torres gêmeas, a palavra de ordem era tolerância. Usamos exaustivamente essa palavra e – mea culpa seja feita – eu estou nesse rol.
“Temos que ser tolerantes com os nossos irmãos mulçumanos” – dizia uma manchete de jornal; “o presidente Bush precisa aprender o significado da palavra tolerância” – clamava outro.
Não, não sou pró-Bush!! Não estou defendendo mais violência. Estou fazendo um convite à reflexão, não política, não étnica ou seja lá mais o quê, vamos nos ater ao emprego dessa palavra em expressões da nossa língua.

Na adolescência, tinha uma amiga que sempre desabafava a crise conjugal dos pais comigo. Lembro bem dela me dizendo: “minha mãe não ama mais o meu pai, ela o tolera”.
Na faculdade, um amigo próximo adorava cozinhar e sempre nos chamava para jantar em sua casa. Invariavelmente, no fim da noite, depois de muito vinho, sua esposa expunha a cru a vida do casal, gerando constrangimento em todos. Eu também perguntei-lhe muitas vezes por que não se separavam. Sua resposta era algo parecido com “temos dois filhos e é preciso tolerar essa situação”.
Nem preciso dizer que as crianças eram pequenos tiranos, desajustados, assustados, sempre chamando atenção com comportamento de riscos (brincando com facas, subindo em mesas, etc). Esses mesmos pais toleravam toda a sorte de má criação porque se sentiam culpados e não queriam censurar ‘a liberdade’ dos filhos.

Tolerar é uma palavra ruim, digo, com um sentido ruim. Tolerar alguém é aturar, suportar. Estar numa situação em que aturamos alguém é muito desconfortável. Sempre que tivermos chance de pular fora, vamos pular e aí não mais toleraremos chefes boçais, empregos medíocres, relações falidas, pessoas sem limites.

Tolerar também me lembra via de mão única; passividade; permanência. Tolerar é sempre dizer sim, inclusive quando chega a hora de dizer não.

Mulheres espancadas continuam aturando a “caipirinha do fim de semana” e toda vez que aturam dizem sim ao comportamento violento dos parceiros. Tolerar não gera a mudança.
Homens toleram dondocas perdulárias e com isso elas jamais saberão o real valor das coisas. Serão eternamente perdulárias.
Pessoas toleram ciúme doentio e o doente enciumado vai morrer assim, castrador, desconfiado.
Tolerar negros, judeus, homossexuais na escola, trabalho, vizinhança não nos torna melhores. Isso é o mesmo que dizer, camufladamente, sou preconceituoso e finjo aceitar.
Não vou nem levar em consideração que existe um ganho, sim, em tolerar situações limítrofes, mas deixo essa análise para um psicólogo.

Eu não quero mais tolerar violência, corrupção, desamor, submissão, sobras, preconceito. O que eu quero é voltar a usar mais a palavra respeito.

Cristo, sendo Deus, não tolerou os vendilhões do templo. Ele disse não à conspurcação de um lugar sagrado, expulsando a todos. Talvez se tolerasse o comércio no local sem reação, eles continuassem, mas quando ele chamou atenção para a falta de respeito para com a fé, sua atitude fez a diferença.

Nem com nossos melhores amigos, família, parceiros concordamos o tempo todo. Não é possível, afinal somos indivíduos, mas se há respeito, então, temos tudo. A gente não deixa de admirar essas pessoas porque elas torcem para um time diferente do seu, pela sua cor, credo, orientação sexual, porque são de outra classe social. O que mantém os laços de amor, de dignidade, de humanidade, de ética é o respeito.

Respeito pressupõe, pelo menos, duas pessoas numa relação. O respeito implica mudanças, gera crescimento, amplia horizontes. O respeito dialoga. E a experiência pautada pelo respeito pode trazer alguma dor, um certo incômodo, mas parece que nós estamos muito ocupados para nos incomodar.

sábado, maio 06, 2006

O diário de G.H (6)

Não pude ficar no bar. Estava excitada com a descoberta dos reflexos do espelho. Dirigi, sem direção, cortando ruas, reconhecendo avenidas, perdendo-me em becos. É que eu tenho essa mania de viajar, essa facilidade de me desligar do tempo e me descolar do espaço. Posso passar o dia inteiro debruçada numa janela observando o movimento da rua.
Lembro-me que ele espumava de ódio toda vez que me teletransportava. Podíamos estar no calor da maior discussão, mas se escutasse passos na calçada ou uma música que me tocasse, eu simplesmente não estava mais lá.
De repente, eu não estava mais lá nem aqui. Eu estava no vapor do banheiro, na palavra escrita a dedo no espelho. Era preciso voltar e descobrir não quem eu sou, mas qual delas sou eu.
Estava em casa, sentei-me diante do espelho oval adquirido num antiquário. "É um legítimo espelho da era vitoriana" - disse a vendedora toda afetada. Vitoriana era eu ali, parada, tentando reconhecer minhas verdades. E eu não queria que tais verdades fossem usadas como um pretexto para mentir. Confessar-me poderia ser uma grande vaidade e eu queria me despojar dela; queria tocar nessa coisa áspera que se oculta no breu da noite.
Essa coisa áspera era a tal AIRTEMIS? Quer dizer, SIMETRIA.
O que isso queria dizer?
Simetria seria essa minha pretensa vocação para organizar as coisas ao meu redor? Ordenar as coisas era o primeiro passo para meu processo criativo. Juntar fragmentos, liberar o caos para depois aprisioná-lo. Era como colocar os planetas em órbita. Mas a órbita de fora nada tinha de simétrica com a órbita da minha cabeça e das coisas efervescentes que agastavam meu juízo.
Foi então qu lembrei de G.H, estupefacta diante da barata.
Eu entendia seu horror e sua atração pelo inseto que sempre existira antes de toda e qualquer existência.
Suei frio só de pensar que aquela outra era imemorial. Era a matéria viva tentando rasgar minha pele morta e inexpressiva. Eu só consegueria sair vivificada se a enfrentasse e, numa atitude antropofágica, a devorasse.
Fiquei atenta aos movimentos. Era irremediável o encontro perigoso e necessário.