terça-feira, outubro 26, 2004

Há dias em que amanheço assim: rastejando sentidos.
Vejo incompletude em tudo e eu busco um ponto final, palavras terminativas, o próximo capítulo.
Estou farta de andar por vagas, terrenos movediços que cedem à mais leve pressão dos pés.
Eu não quero delicadezas.
Quero o peso conclusivo do discurso removendo minhas entranhas até clarear meu olhar.
Não creio (mas tem quem prove!) que a bruma densa que vejo seja sinônimo de lirismo e não de vertigem.
Não gosto de abismos, se ando por eles é por pura imposição, por circunstâncias.
Tão logo eu encontre a explicação, amanhecerei diferente.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Revisitando

Há três anos atrás, quando escrevi esse conto infantil, vivia um período difícil e confuso.
Hoje, relendo-o, compreendo seu valor, seu significado.
Espero que gostem.
http://nationalgeographic.com

A LENDA DO VAGA-LUME

- Para João Gabriel



Era uma vez, há muito tempo atrás, uma comunidade de vaga-lumes que morava num escuro matagal.
Dentre os vaga-lumes dessa comunidade, havia um muito diferente: ele não piscava. Não se sabia o motivo, mas sua luz nunca acendeu.
Andava para cá e para lá, sempre acompanhado pelo grupo que temia seu desaparecimento mata adentro. Mas o danado do bichinho era esperto que só ele!
No grupo, os mais jovens, por não entenderem a falta de luz do colega, faziam piadas e riam de seu defeito.
Quando ele ficava zangado com os tais deboches, corria ao encontro de D. Coruja.
D. Coruja – que era velha e muito sábia, já tinha vivido muitas aventuras e lido outras tantas nos livros – ensinou muitas coisas ao vaga-lume.
Um dia, ela contou-lhe uma história chamada "Lanterna Mágica". D. Coruja sabia como deixar as histórias tão mais interessantes, passava horas narrando cada detalhe.
O vaga-lume ouviu tudo encantado. Não sabia da existência de um objeto que acendia e apagava tal como ele.
Perdidos entre livros, a tarde passara e quando perceberam, já era noite.
- D. Coruja, muito obrigada por tudo, mas devo voltar para casa. Já é noite e mamãe deve estar preocupada.
- É mesmo! Ficou tarde e nem notamos. Boa noite amiguinho.
- Boa noite, D. Coruja.
Certo dia, o vaga-lume voltou à casa da amiga Coruja para ouvir mais histórias. Vendo que ela era mesmo muito sábia e inteligente, tomou coragem, encheu o peito de ar e perguntou:
- D. Coruja, por que minha luz não funciona?
Ela olhou bem nos olhos de seu amiguinho e falou:
- Eu estaria mentindo se dissesse que conheço o motivo. Realmente, não sei. Não entendo porque ela não funciona como a de todos os outros de sua espécie. Mas um dia você entenderá que existem outras formas de iluminar o mundo.
O vaga-lume não entendeu muito bem o que D. Coruja queria dizer, mas não perguntou mais nada. Agradeceu e foi passear na mata.
Já no caminho de casa, o pequeno vaga-lume viu um garotinho que estava perdido. Ele se afastou do acampamento e não conseguia achar o caminho de volta.
Ele ficou surpreso ao notar que o garotinho tinha mãos que acendiam e apagavam.
Ele aproximou-se do garoto e perguntou, curioso:
- Crianças são como vaga-lumes?
O menino, assustado, ouviu a voz, mas não viu ninguém:
- Quem está aí?
- Sou eu, um vaga-lume, disse, chegando bem perto do menino.
- Um vaga-lume? Onde está a sua luz?
- Sou diferente. Minha luz não acende.
O vaga-lume contou sua história ao garotinho, que ficou emocionado.
- Estou perdido. Você poderia me levar de volta ao acampamento? Se puder, dou um presente pra você.
- Eu ajudo você. Não precisa me dá nada, não.
O vaga-lume o guiou até o acampamento. Chegando lá, disse:
- Pronto. Já está entre os seus amigos. Agora preciso voltar pra casa. Tchau!
- Espere! Eu quero lhe dar um presente.
Colocou a mão no bolso e entregou-lhe o presente.
- Não eram as minhas mãos que brilhavam, mas uma lanterninha que sempre trago comigo. Agora é sua.
- Uma lanterna? Você vai me dar sua lanterna?
- Vou. Não preciso mais dela. E agora você poderá piscar como qualquer outro vaga-lume.
Ele agradeceu e partiu contente da vida, dando piruetas no ar.
Hoje, o vaga-lume que mais brilha e possui luz mais forte é Lanterna. É ele quem lidera o grupo nas noites escuras do matagal.

(Luciana Melo - 24/10/01 e modificado em 25/10/04)

quarta-feira, outubro 20, 2004

As ondas

Ele segue insone pela madrugada.
A movimentação interna em busca de um lugar adequado para suas inquietações e turbulências é grande.
Em casa, todos os cômodos foram vasculhados inutilmente, no afã de encontrar uma resposta, mas qual resposta, se ele não consegue sequer formular a questão?
Sua alma pesada, se atirada, afundaria, provocando ondas na superfície, mas como já sabia, em dia de tormenta, ele preferia ser farol que observa tudo de longe, evitando assim, o risco de causar as tais oscilações n'água.
As reverberações que lhe possuem são tantas, não convém precipitar os ecos, atiçando o fogo breve das horas escuras.
A madrugada passará e levará com ela o cansaço, os olhos ressaquiados, as olheiras, mas os movimentos internos, não tem sol que os dissipe.

terça-feira, outubro 19, 2004

Apresentando...

Trago hoje, os versos de Hércio Afonso.
Hércio é um amigo e grande admirador da poesia, mais ainda do poema-mínimo, dos haicais.
De tanto admirar, ficou ás na arte dos poetrix.
SILÊNCIO

OS SONS GOTEJAVAM
AS MINHAS LÁGRIMAS
NOS SEUS LÁBIOS

O endereço abaixo é o link para que os interessados possam copiar o arquivo (download) do livro de Poetrix organizado pela poeta Lilian Maial e do qual o autor participa.
http://www.onlinebook.com.br/acervo/poetrix.exe

sexta-feira, outubro 15, 2004

Escrevo desde coisas mínimas, meus afazeres diários, receitas culinárias até as palavras mais pretensiosas. Vou escrevendo... faço isso para não me perder, para existir, para não esquecer as delicadas coisas cotidianas.
Dia desses, fui acordada cedo pelo odor de sabonete pela casa.
Era o restinho da fragrância noturna das damas-da-noite que ainda recendia. O aroma destas flores lembra minha infância, as brincadeiras na rua, o jogo da amarelinha, roupas limpas cheirando a sabão em pó.
Os aromas são sinais gráficos que enfatizam a vida.
Hoje, noite escura e de denso nevoeiro, acendo a lareira.
O crepitar das chamas instiga-me a escrever, então, sob a luz do fogo pálido, guardo, em palavras, os barulhos e os sons.
Orff soa-me como fuga, desespero, ansiedade; Lizst tem som de alvorada – um eterno despertar; Offenbach é pura esperança. Beethoven tem ares de contemplação; Mozart é dança frenética acompanhada de gargalhadas sonorosas. Estou sempre sorrindo quando escuto Mozart.
Desligado o som da memória, passo a ouvir os grilos que cantam... cantam cantigas para ninar a noite.
Músicas são palavras mudas dialogando diretamente com nossas lembranças.

http://nationalgeographic.com

quarta-feira, outubro 13, 2004

COMO SE FOSSE BRINCADEIRA DE RODA

A vida é uma ciranda, cirandinha.
Brincadeira de roda,
Idas e voltas.

Vitrine que se espatifa
A uma só pedrada.
Vidro que se desmancha no ar,
Ferindo os olhos d’alma
Impedindo-os de enxergar.

Mas eu não!
Eu vejo o olho do furacão,
Sinto o perfume do vento,
Mastigo a fome que me devora.

Ciranda, cirandinha.
Volta e meia,
Eu, inteira.


Chagall

quinta-feira, outubro 07, 2004

Historinha manuscrita por Osman Lins para suas meninas

Era uma vez um homem que não servia para nada. Nem mesmo para mentir: suas histórias eram sem graça, inventadas com tanta falta de jeito, que aborreciam todo mundo.
Então, como era preciso conseguir-lhe alguma serventia, começaram a lhe pregar na roupa as fitas e medalhas que eram encontradas nas gavetas. E que, como o tal homem, também não serviam para nada.
Depois de algum tempo, o homem parecia uma loja de miudezas, um armarinho. Até nas pernas tinha penduricalhos, santinhos, medalhinhas, medalhões.
Foi aí que as próprias pessoas que, como esse homem, para nada serviam, tinham pendurado nele essas coisas, começaram a respeitá-lo.
Os que chegavam de fora e visitavam a cidade, vendo aquela figura cheia de medalhas, pensavam que era um grande herói. Tiravam o chapéu diante dele e se curvavam, afastando-se para dar-lhe passagem.
Quanto ao Vale-nada, vendo-se tão glorificado, passou a considerar-se um Rei. Passou a dar ordens, cada vez mais cruéis.
As pessoas, com pavor do tirano que, por brincadeira ou fastio, haviam criado, fugiram.
O homem ficou sozinho na cidade. Sem coragem de trabalhar, não plantava nem criava. Um dia, não tendo mais o que comer, comeu as próprias medalhas e morreu engasgado.

Mini-conto

"Marcou-me a pele o seu silêncio".
Entrou em casa, pálido, gélido, reticente. Mal olhou-me nos olhos. Passou direto para o quarto, pegou uma mala – a maior – e despejou suas roupas apressadamente como o faz um fugitivo, um criminoso.
Esvaziou o armário e gavetas, foi à estante e escolheu alguns poucos livros e CDs.
Angustiada com sua movimentação, perguntei:
- Viagem a trabalho?
Não houve resposta.
Levantei-me e fui em sua direção. Olhando aquela bagunça e sem entender nada, disparei, trêmula, antevendo o que estava por acontecer:
- Amei as rosas, o cartão... lindos como a noite de ontem.
Novamente aquele silêncio devorador.
Mala pronta, ele respirou fundo e finalmente me encarou.
Puxou-me pelos ombros, beijou-me lento e demorado. Depois, afastou-se, relutante, tendo os olhos úmidos.
Pegou a mala, passou os olhos pela sala, parou por alguns segundos diante dos porta-retratos, sorriu amargo e partiu.
Fiquei paralisada por um longo período, nem sei precisar quanto, olhando fixo a porta.
Fui despertando aos poucos, sentindo uma ardência no corpo a corroer-me por inteiro.
Olhei para mim e feridas enormes povoavam-me.
Passados os dias, as feridas cicatrizaram. Cada cicatriz originou uma palavra.
"É, marcou-me a pele o seu silêncio."

terça-feira, outubro 05, 2004

Intenções

É noite, faz calor, um certo torpor anestesia a cidade.
Ele vem me visitar. Traz na mão uma flor de cor intensa e vibrante.
Sorri, mas seu sorriso não consegue disfarçar o cansaço, a angústia, a frustração por trás do olhar. Um olhar pluvioso, marítimo e já irritado pela quantidade de sal que esconde.
Ele entrega-me a flor num gesto de quem quer entregar-se a si próprio.
Recebo-a, cerco-a de cuidados porque sei que tenho em minhas mãos muito mais do que uma flor. Tenho uma esperança, um sonho.
Embora haja cansaço, a intensidade de sua cor me diz que também há resistência.
Envolvo-os, aqueço-os, homem e flor.
Ofereço-lhes meu regaço como mãe que oferece o seio ao filho.
Nutro-os.
A flor se satisfaz e exala resplendor, perfumando o quarto que nos abriga, a cama que nos acalenta.
Silentes e entrelaçados, esperamos uma nova manhã.
http://itisphoto.com

Glossolalia

Esse espaço de palavras caóticas ganhou esse nome por causa de um homem que através de sua literatura modificou minha vida, a minha forma de ver o mundo. Ele pincelou com novo colorido meu olhar sobre o sagrado e o humano; fez aflorar a generosidade que havia em mim; aguçou minha fome de letras; acalmou minhas angústias por ter uma mente operária e inquieta, mostrando-me novas possibilidades; fez-me perceber que a maquininha interna que me habita não consiste num mal apenas... ela também pode ser bênção.
Após a minha queda, não ao fosso do Edifício Martinelli, mas ao da minha própria construção subjetiva, aprendi a falar em línguas, a gostar da turba, do vozerio harmônico que viaja por lugares e pessoas.
Ele ficou pouco tempo entre nós, mas o suficiente para construir um projeto literário vivo e consistente.
Saudades, Osman.


Aos nove anos de idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da mudez.

(...)

"Assim vivo, nesta comunhão que me multiplica e me atormenta, assim vivo, até precipitar-me para baixo no meu velocípede, eu e o mundo, eu e as três rodas que giram em derredor de mim, e tudo escurece e nessa escuridão eu sou novamente formulada, eu, novamente sou parida, sim, nasço outra vez.

(...)

"Gero-me para a queda, para isto cresço, para esse lance amadureço enquanto os dias surgem, passam, surgem e passam, os dias. Quem me pare outra vez? De quem sou filha, eu, na segunda vez em que nasço? De uma palavra? Ordena alguém: "Nasce!", e então obedeço, sou nada? Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros, nascido de mulher? Nado de si mesmo? Nado no ar, do ar?

(...)

"Súbito, de algum ponto, voz subterrânea, a queda começa a atuar sobre mim. Exerce sobre o meu ser sua atração, chama-me como o mundo exterior chama o nascituro e eu não sou alheia a essa invocação. Minha inquietude agrava-se; deixo-me cair vinte vezes por dia, do velocípede, da minha cama, da velha e rangedora cama dos meus pais, da grande mesa redonda...

(...)

"Ainda não falo. Sem falar, desagrego as coisas, desmonto-as, separo umas das outras, reorganizo-as em mim. Removo, do edifício, o nosso apartamento; o edifício (chama-se Martinelli), removo-o do quarteirão; o quarteirão, isolo-o da cidade. Instauro brechas e vãos. O mundo é uma constelação de espadas regirantes e todas as manhãs, esta pergunta me assalta: "Como sobreviver?"

(...)

"Levo a mão à boca e mordo esta certeza, este espanto, esta amargura, este ódio, esta ira, levanto-me e decido-me, não guardarei silêncio, porei termo ao silêncio, vou falar, abro a boca, mas não é fácil falar, tenho a língua e a laringe cheias de teias de aranha, aspiro o ar e expiro-o, pela boca, com dificuldade, eles me olham, meu pai leva a corneta aos lábios, crispam-se no chapéu os dedos de minha mãe e eu grito, cuspo, vomito em suas caras: "Inrerno. Inrerno". O nome não é este, mas tenho de dizê-lo, o esforço me exaure, eu caio de joelhos, perduram os movimentos convulsivos e eu tento outra vez como quem tenta um salto, um mergulho, um passe acrobático, tento outra vez, agora com mais força, com mais ódio, e grito: "Inferno!" é a primeira palavra que libero, a primeira, volto a repeti-la, quatro, cinco vezes, de modo cada vez mais débil, depois me curvo, toco o chão com a fronte e caio em pranto.

(...)

"A testa ainda no chão, começo a balbuciar. Meu pai e minha mãe acreditam que eu esteja possessa do demônio. Falo aos solavancos, sem pensar, sem nexo, minhas palavras são pus, minha boca um abcesso aberto, falo sem parar, às vezes murmurando, aos brados em seguida, e assim como antes muitas palavras se formulam em mim sem que as pronuncie, falo agora de coisas que estão fora do meu entendimento. Leio um dia em Virgílio que as nações submetidas a Roma, os dias de triunfo, jogos públicos, ovações sacrifícios, coros de matronas, naus de guerra, deuses monstruosos e todas as batalhas, postas por ordem, aparecem no escudo fabricado para o filho de Vênus. Este, quando cinge a obra de Vulcano, ignora cingir os eventos e figuras de que participa a sua estirpe. As palavras que lanço em meu discurso sem-fim e incontrolável também representam a minha própria vida, embora ao proferi-las tudo eu ignore sobre isto; e ainda maior que a do Troiano é a minha ignorância, pois, ao contrário das batalhas cinzeladas em seu temível apresto de guerra, postas por ordem, os personagens e eventos a que devo ligar-me vêm fragmentados nas palavras, frases e nomes que enuncio, nomes, frases e palavras dos quais muitos voltam, são repetidos pela manhã, à noite, nesses dias e noites em que falo e falo sem parar, quantos, quantas?, muitos, talvez três, talvez cinco, difícil saber, dias e noites em que quase não durmo e, mesmo enquanto durmo, ainda falo. Visitantes contristados olham-me de longe, nem sequer atrevendo-se a passar a porta do meu quarto, eu como pouco e mal, engolindo palavras, bebo apenas para refrescar a garganta dolorida, a voz extingue-se, exausta eu fecho os olhos e mesmo assim meus lábios secos continuam a mover-se, eu continuo a falar, dentro de mim..."

LINS, Osman. Avalovara