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sábado, agosto 11, 2007

O diário de G.H (9)

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A Ressureição de Lázaro. Pennacchi, Fulvio
Lazarus Heart

Lázaro. Foi esta a palavra que ela grafou em alto relevo sobre minha pele, como o arranhão de uma fera. O nome queimava na minha superfície, era um braseiro vivo, um vulcão cuspindo lavas. Não importava o que ou o quanto fizesse, nada aplacaria a ardência.
Foi então que os sonhos começaram a visitar-me todas as noites, assiduamente. Eles contavam-me sobre ela de maneira enigmática e fragmentada. Era um jogo, um puzzle.
Depois os sonhos cessaram e a ardência cedeu, a pele cicatrizou e de repente uma nova descamação. A pele ressequida foi saindo e mais uma vez surgiram os olhos súplices. Eles revelaram o segredo da palavra.
Disse-me que vivia em mim já há algum tempo. Seu embrião, latente, esperava pelo momento certo de fazer-se presente. E exatamente no seu aniversário de um ano, ela abriu os olhos pela primeira vez, esticou pernas e braços procurando ajustar-se à minha forma.
Como Lázaro, ela ressuscitou.
A quantos fora dada uma segunda chance? Uma nova vida? Nascer e nascer?
Esqueceram apenas de me perguntar se eu queria, se eu estava disposta a ter dois corações a bater e, conseqüentemente, a se dilacerarem.

domingo, novembro 19, 2006

O diário de G.H (8)

A bull in a china room

Eu não queria machucá-la. Não fora essa a minha intenção. Tocar sua chaga aberta fora um gesto involuntário. Quisera estancar o sangue e repor, se possível, o pedaço que lhe faltava.
Foi aí que me lembrei daquela casquinha no meu peito e dos olhos... ah, aqueles olhos! Lembrei-me também do empurrão que ela me dera. Ela instigara-me, comunicara-me de alguma forma sobre a ferida que se abriria nela, em nós. Tentou avisar-me e não compreendi o que seus olhos viram com antecedência.
Depois disso, ela se retraíra no meu interior, mas eu podia sentir perfeitamente a sua respiração.
Eu continuava tropeçando nas minhas muitas pernas, na ânsia louca de reencontrá-la, mas ela parecia não querer novo contato, como se temesse um descuido, um susto, uma dor. Contudo, eu continuava esperando por ela, pelo diálogo interrompido. Esperaria o tempo necessário.
Chegamos a um ponto em que retroceder não é possível.
Aquela eterna angústia, aquele desconforto de não me saber, de não conseguir identificar as tantas partes do meu todo, tudo isso clamava por definições e essa era a minha chance. Não viveria mais tropeçando em mim, não evitaria mais os movimentos por temer arranhar ou quebrar alguma estrutura interna. Estava exausta de pisar mansinho para não afugentar meus ‘convidados’. Convidados qual o quê! Não chamei ninguém para dividir meus cômodos. Eles simplesmente vieram com uma bagagem enorme. Tinham muitas perguntas, falavam simultaneamente, suas vozes uniam-se em coro à minha própria voz. Eu sei, eu sei que vieram para ficar. Dadas tais circunstâncias, compartilharíamos nossas muitas metades.
Adormeci, mas de madrugada acordei sentindo cócegas nas minhas coxas, no ventre, como se milhares de formigas caminhassem sobre mim.
Acendi a luz. Ela deixara um recado.

quinta-feira, setembro 21, 2006

O diário de G.H. (7)

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Finalmente aceitei o encontro.
Preparei o banho tendo o cuidado de deixar o vapor tomar conta. Mergulhei na banheira disposta a deixar na água todos os meus medos. Eles escoariam pelo ralo e pronto. Seríamos eu e ela.
Habituei-me a chamá-la assim: ela. Não sabia de quem se tratava, mas estava certa do seu gênero.
Encarei o espelho prestando atenção na umidade que escorria por ele e pelas paredes. Não pude conter o gesto. Toquei no seu ‘suor’ e levei a ponta dos dedos aos lábios: tinha gosto de sal.
Passei a mão pela superfície lisa e a imagem dela surgiu. Ela é... ela sou eu! Não escondi o espanto, mas a imagem não respondia aos meus movimentos e expressões, permanecia imóvel, impassível, olhos oblíquos.
Como se lesse meus pensamentos, deixou transparecer sua inquietude e voltou a cabeça em direção ao seu peito.
Esfreguei novamente o espelho e vi aquilo com olhos surpreendidos e admirados. Ela tinha um buraco enorme vazando seu corpo, no peito, exatamente entre os seios.
Estendi meu braço a fim de alcançar sua ferida e de repente a imagem não estava mais lá.

sábado, maio 06, 2006

O diário de G.H (6)

Não pude ficar no bar. Estava excitada com a descoberta dos reflexos do espelho. Dirigi, sem direção, cortando ruas, reconhecendo avenidas, perdendo-me em becos. É que eu tenho essa mania de viajar, essa facilidade de me desligar do tempo e me descolar do espaço. Posso passar o dia inteiro debruçada numa janela observando o movimento da rua.
Lembro-me que ele espumava de ódio toda vez que me teletransportava. Podíamos estar no calor da maior discussão, mas se escutasse passos na calçada ou uma música que me tocasse, eu simplesmente não estava mais lá.
De repente, eu não estava mais lá nem aqui. Eu estava no vapor do banheiro, na palavra escrita a dedo no espelho. Era preciso voltar e descobrir não quem eu sou, mas qual delas sou eu.
Estava em casa, sentei-me diante do espelho oval adquirido num antiquário. "É um legítimo espelho da era vitoriana" - disse a vendedora toda afetada. Vitoriana era eu ali, parada, tentando reconhecer minhas verdades. E eu não queria que tais verdades fossem usadas como um pretexto para mentir. Confessar-me poderia ser uma grande vaidade e eu queria me despojar dela; queria tocar nessa coisa áspera que se oculta no breu da noite.
Essa coisa áspera era a tal AIRTEMIS? Quer dizer, SIMETRIA.
O que isso queria dizer?
Simetria seria essa minha pretensa vocação para organizar as coisas ao meu redor? Ordenar as coisas era o primeiro passo para meu processo criativo. Juntar fragmentos, liberar o caos para depois aprisioná-lo. Era como colocar os planetas em órbita. Mas a órbita de fora nada tinha de simétrica com a órbita da minha cabeça e das coisas efervescentes que agastavam meu juízo.
Foi então qu lembrei de G.H, estupefacta diante da barata.
Eu entendia seu horror e sua atração pelo inseto que sempre existira antes de toda e qualquer existência.
Suei frio só de pensar que aquela outra era imemorial. Era a matéria viva tentando rasgar minha pele morta e inexpressiva. Eu só consegueria sair vivificada se a enfrentasse e, numa atitude antropofágica, a devorasse.
Fiquei atenta aos movimentos. Era irremediável o encontro perigoso e necessário.

segunda-feira, março 20, 2006

O diário de G.H. (5)

O reverso da medalha

Não sabia o que fazer. Estava em choque.
Preocupações menores acorreram ao pensamento: “ficarei com o corpo tatuado?”, “nunca mais poderei usar um decote?”.
O pranto explodiu, um medo repentino tomou-me de assalto, contudo, instantaneamente fui pensando em algo para me acalmar e comecei a cantarolar uma canção. Aos poucos já respirava normalmente.
Corri para a sala, procurei na estante o dicionário de mitos. Artêmis, Artêmis... Artêmis! Achei. A tal coisa havia grafado o nome de forma errada.

“Tida como virgem e defensora da pureza, era também protetora das parturientes e estava ligada a ritos de fecundidade; na Ática, enfatizou-se seu caráter de ‘senhora das feras’. Apesar dessa imagem protetora, Artêmis exibia facetas cruéis: matou o caçador Órion; condenou à morte a ninfa Calisto por deixar-se seduzir por Zeus; transformou Acteão em cervo para ser despedaçado por sua própria matilha e, com Apolo, exterminou os filhos de Níobe e Anfião, para vingar uma suposta afronta”.

Lembrava-me que a morte de Orion havia sido uma fatalidade, um ardil preparado por Apolo, mas isso não vinha ao caso agora. O que essa outra queria me dizer?
As costas voltaram a arder e busquei novamente o espelho.
Gritei para ela ouvir:
- Não quero que se acostume a isso. Meu corpo não é seu livro de cabeceira!
A ardência cedeu prontamente. Olhei através do espelho e minha pele estava novamente lisa, imaculada.
Vesti-me e saí de casa o mais rápido possível.
Entrei no carro, liguei o rádio e dei a partida. Distraí-me ouvindo as músicas e quando percebi já havia passado do bar. Olhei pelo retrovisor e... claro, a palavra era outra!

terça-feira, março 14, 2006

O diário de G.H (4)

As imagens

Há dias encaro esse band-aid com um misto de medo e curiosidade.Ando na casa inteira num vai-e-vem desmesurado, estou ansiosa e impaciente para as visitas. Receio que elas desconfiem do meu caráter duplo e comecem a me encarar com desconfiança.

É certo que não podia viver assim, prisioneira em meu próprio lar ou como um refém dando refúgio ao bandido. E por que eu acho que isso que está em mim é um inimigo? Como posso temer a mim mesma?

Fui até a gaveta da penteadeira e tirei um espelho desses que aumentam. Posicionei sua face em frente ao machucadinho e, de olhos fechados, puxei o band-aid de uma vez só. Abri os olhos e a feridinha tinha cicatrizado!Fiquei intragável por alguns dias, procurando no peito um vestígio do machucado que pudesse me revelar os tais olhos.

Vai ver a minha outra teve medo de mim e cimentou internamente as paredes para não ser mais incomodada. Sinto dizer que é uma bobagem, pois agora estou decidida a saber mais dessa criatura e não vou descansar enquanto não encontrá-la novamente.

Decidida a esquecer a obsessão, nem que fosse por um curto período, resolvi sair de casa e ver pessoas. Foi então que ao prender os cabelos num rabo de cavalo a fim de me maquiar, aproximei-me bem do espelho. Senti que por trás dos meus olhos um outro par de olhos me observava, atento. Puxei a cadeira para mais perto, mas eles já não estavam lá. De repente, uma ardência nas costas, virei-me abruptamente.

Estava lá grafado na pele: A I R T E M I S.

quinta-feira, março 02, 2006

O Diário de G.H. (3)

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Red dress, Michael Austin

A hora do susto

Surpreendentes eram seus olhos quando raspei com a minha unha a primeira camada de pele. Era uma feridinha besta, destas que a gente cutuca para se ver livre, mas eis que sob meu peito saltaram aqueles olhos persecutórios, loucos de vontade de saber quem quebrava a casca do ovo antes da hora.
Havia uma hora prevista para que ela nascesse? Saberia ela que estava escondida em mim ou seria sempre um embrião em gestação? Seu azar foi a tal feridinha causando um certo incômodo ao toque da minha mão e pontas de dedo.
Levei um susto, sem saber se continuava puxando a pele ou dava um jeito de devolver a casca ao lugar de onde tirei. Ali imóvel sob aquela cadeira, encarando os tais olhos, fiquei com essa indagação por muito tempo, até que sua mão abrupta empurrou-me por dentro, impelindo ao salto. Corri para o armário do banheiro: o band-aid dar-me-ia a trégua necessária para saber o que fazer com a tal descoberta.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

O Diário de G.H. (2)

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Agua(rela) natural, Teresa Santos.


Depois do tumulto

Choveu toda a noite, chuva miudinha, incansável. O céu parecia solidário à minha incompreensão, ao medo da descoberta que fiz quando arranquei a primeira camada de pele...
De repente, o relâmpago e nessa hora eu entendi a poesia das minhas muitas vidas.
Minha angústia, minha pressa de viver foi a responsável por tantas pessoas em mim. O silêncio de não me saber gerou inquietações e a cada interrogação uma vida nascia para responder os meus anseios.
Mas minha busca é pela criatura primeira, aquela que tomou um grande susto diante da velocidade da vida e dos intervalos de silêncio que ela me oferecia a cada vez que não sabia responder as minhas tantas curiosidades.
Um inferno abrasador movia meus impulsos, mas a chuva veio amainar meus plurais e trazer o alívio.
Sou eu quem me vê assim, sou eu quem sabe da desordem da casa, dos tais tropeços, da quantidade de pernas e braços. Poucos podem enxergar o que está por baixo da primeira camada. E eu me mortificava por confundir defeitos com verdades.
A diferença? Nem todos vêem as verdades, contudo, os defeitos exacerbam. As estranhezas saltam aos olhos como um grande abismo, mas as verdades dos meus muitos membros revelam-se para mim, somente, encontram-me na madrugada, nos sonhos, nas sombras que projeto.
A minha mão impõe-me um papel e não há delicadeza nessa procura.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

O Diário de G.H. (1)

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Último capítulo, Marco Ricca

Aos parcos leitores

Este diário não é um estudo, não é uma erudição, sua única pretensão é confrontar impressões, estabelecer um diálogo íntimo de alma para alma; ele é apenas a descoberta fulgurante das minhas entranhas, proporcionada pelas repetidas leituras d’A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector.
V.

Numa madrugada qualquer de agosto

Sempre tive a sensação de mal-estar no mundo, uma sensação de não caber no meu espaço, um desconforto diante de meus pares – eu me pergunto: tenho pares?
Eu sabia que em mim há uma mulher que tento esconder ferozmente. Tenho medo que as pessoas identifiquem meus excessos, essa quantidade absurda de pernas e braços que camuflo sob a roupa que visto.
O que diriam se soubessem das muitas que vivem em mim e tentam bravamente, numa luta corporal, projetar-se do meu corpo? Tomariam-me por uma aberração?
Elas não podem me achar, então eu vivo a árdua tarefa de perder-me diuturnamente como no jogo de esconde-esconde. Qualquer hora dessas vou perder-me de tal modo que não mais serei capaz de fazer minha montagem humana. Tropeçarei nas pernas, trocarei os pares de braços e não saberei a quem pertenço. Fecharei meus muitos olhos porque a sobreposição de imagens fatigam minha visão e eu tenho medo das inúmeras verdades que testemunho. Selarei meus lábios para que as vozes não se confundam. É preciso esperar que todas elas adormeçam para que eu possa viver uma vida de cada vez, caso contrário, os anos pesarão sobre meus ombros e antes de envelhecer eu preciso me saber, preciso ordenar os ciclos individuais até tornar-me pessoa.