quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Vitrine (3)

O Edilson Pantoja concedeu-me o direito de publicar este seu mini-conto.
Obrigada, querido.
O Imortal

Era meio-dia e meia quando os dois chegaram. Encostaram-se no muro, próximo do largo portão. O mais velho arriou sua forma de isopor na calçada, no que foi imitado pelo mais novo. Logo a carícia no ombro marcado pelo náilon. Ficaram ali, atentos aos que entravam. E como mais de uma hora se passou desde que chegaram, dividiam um picolé. De repente o mais velho cutucou o outro.
- É aquele ali!
- Qual? Aquele?
- Sim, quem mais? Esse mesmo, de flor na orelha e jeans. O imortal. Ih! Disfarça, ele tá olhando pra cá! Quer ver se alguém lhe segue. Puxa! Demos sorte, mesmo!
- Não acredito! Tem certeza de que é esse? Eu juro que não acredito! E acho que não quero mais ver... Vamos embora?
- O quê?! Desistir agora, depois de tudo?!
- Desculpa, mas acho que tô com medo...
- Não te preocupa. Ele não faz mal a ninguém. É sabido demais para machucar alguém. Dizem que tem dois mil e quinhentos anos.
- Quem diz?
- Ah!, não lembro! Dizem por aí.
- A história da água?
- Sim. A história da água... Ele bebe a si próprio. Sempre. Por isso não morre. Olha!, tá virando a esquina que dá para o horto. Vai ser agora! Pshh! Vem, vamos lá. Vamos ver. Não vais acreditar. Eu também não acreditei quando vi a primeira vez.
- Tô tremendo. Acho que não vou conseguir olhar. Vou fechar os olhos.
- Não! Abre! Olha lá! Não falei? Ele tá se engolindo... Meu Deus!Enquanto o imortal se engolia, os meninos, perplexos, vomitavam o picolé.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

As matriarcas (5)

- Bom dia.
- Bom dia.
- A senhora gostou do quarto?
- Sim, está confortável. Obrigada.
- Se precisar de alguma coisa...
- Na verdade, preciso, sim. Quero dar uma volta pela cidade, mas primeiro preciso encontrar o Tiziu. Ele disse-me que seu pai conseguiria uma boa bicicleta para mim.
- Ah, sim! Neste horário, o moleque Tiziu deve estar no Grupo Escolar, mas a loja do Geraldo fica bem perto daqui. Venha, eu mostro pra senhora.
De fato, a loja era bem perto. Do outro lado da praça, para ser mais precisa. Parece que tudo de relevante para a cidade ficava na praça da Matriz. Igreja, coreto, hotel, uma sorveteria e a loja do Sr. Geraldo.
Lembro-me perfeitamente das missas de domingo na Matriz. Eram longas, demoradas demais mesmo. Causavam sonolência nos fiéis. No entanto, era o dia mais movimentado e esperado da semana. Mamãe punha-me laços no cabelo. Vovó Totonha usava seu colar de pérolas – presente de casamento – e vestido de linho branco muito bem engomado. A bisa, como era muito gorda, estava sempre de chambre de algodão e um coque trançado. Tia Margarida, muito alta, pernas longilíneas, gostava de saias plissadas e de perfume. Ela passava tanto que eu ficava enjoada, mal conseguia tomar café da manhã, mas nunca a repreendi, nunca pedi que abandonasse tal prazer, afinal eles eram tão poucos.
Depois da missa começava o melhor: pipoca, algodão doce, bandinha tocando, as crianças correndo livres pela praça. Na época de quermesse, tia Margarida vendia seu famoso licor de jenipapo e vovó Totonha levava seus deliciosos beijus. Eu voltava para casa com dor de barriga.
Tia margarida, antes de ficar doente, dava aulas no Grupo. As crianças adoravam-na. Faziam fila na barraca para provar do seu licor, que era muito doce e tinha quase nada de álcool. Eu sei porque experimentava em casa. Ela dizia “a prova final é a Olívia quem dá”.
- D. Olívia. D. Olívia.
- Tiziu! Eu procurava mesmo por você.
- É?
- É. Estava indo à loja do seu pai alugar uma bicicleta, mas me diga, você não deveria estar na aula, mocinho?
- Eu tava, mas é que... é que...
- Mas é que você está cabulando aula.
- Não conta nada para o meu pai, por favor.
- Não conto se você der meia volta.
O bico habitual surgiu em seu rosto.
- Esse bico de novo, não! Volte para a aula e mais tarde convido você para um passeio de bicicleta e ainda contrato seus serviços de guia. O que acha? Vai querer?
O olhinho dele brilhou. O bico sumiu.
- E a dona paga? Quanto?
- Pago, claro que pago. Combinamos isso depois. Agora volte já para a escola.

domingo, fevereiro 04, 2007

Um olhar sobre o abismo

A estrutura abismal – mise en abyme – nas artes plásticas, no cinema e na literatura
Por Eduardo Cesar Maia*

Uma obra dentro da obra, a ficção dentro da ficção: a célebre cena do drama shakespeariano em que Hamlet pede para que uma companhia teatral encene diante da corte o assassinato do seu pai, o rei Hamlet, a fim de desmascarar os culpados, observando a reação deles à peça, é um exemplo clássico e bastante citado de mise en abyme.

“Relato interno”, “duplicação interior”, “composição em abismo”, “construção em abismo”, “estrutura em abismo”, “narração em primeiro e segundo graus”. Todas essas denominações se referem, em português, a uma técnica narrativa, inspirada originalmente em procedimentos encontrados nas artes plásticas (pintura) e que, posteriormente e com as adaptações necessárias à especificidade de cada forma de arte, chegou à literatura e ao cinema. Tal técnica consiste em colocar uma história dentro da história, como um enclave – uma narração secundária que de algum modo se desenvolve a partir da ficção original.

No ano de 1891, o escritor e ensaísta francês André Gide utilizou e teorizou sobre o termo mise en abyme em seus Diários. Era a primeira vez que, em literatura, a nomenclatura era empregada – anteriormente tinha sido utilizada no estudo dos brasões (heráldica); o abyme (abismo) era uma reprodução em miniatura, no centro do escudo, da sua própria forma total, o que dava uma sensação de repetição infinita do mesmo. Os escritores do nouveau roman utilizaram com freqüência o procedimento, que se tornou quase uma marca do movimento.

Os jogos de espelhos dentro da narrativa, para o leitor ou espectador mais atento, permitem alternar os momentos de realidade da vida com os da realidade da obra de arte: uma recriação da experiência da vida real imiscuída à experiência criativa e estética. É importante ter em mente que o reflexo do fragmento incluído não possui sempre o mesmo grau de analogia com a obra que o inclui, variando de acordo com a interação que o artista quer estabelecer entre os níveis da narrativa.

Para Lucien Dällenbach, principal teórico deste conceito, mise en abyme é “todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a obra que o contém”, funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui. Autores como Shakespeare, Borges, Kafka ou o próprio Gide utilizaram essa estrutura para colocar em xeque o próprio conceito de ficção e, por conseguinte, a própria definição de real. Alguns estudiosos acreditam que essa forma metanarrativa gera uma sensação de maior ficção (como se o leitor fosse ainda mais atraído para o jogo da criação), porém, outros autores pensam que o recurso alerta o público-leitor para a “irrealidade” da trama.
Há, ainda hoje, muitas discussões sobre a utilização do termo mise en abyme. Não existe uma definição rigorosa para o termo e por isso muitas vezes ele é tomado de forma simplista e aplicado a qualquer forma metanarrativa: “quando a ficção vive na ficção”, na definição de Borges. Contudo, na acepção de Gide, é necessário que a estrutura em abismo guarde a característica de reflexividade, quer dizer, o fragmento colocado deve manter uma relação especular com original, refletindo por semelhança ou mesmo por contraste.

*Jornalista e editor da Continente Multicultural.

sábado, fevereiro 03, 2007

As matriarcas (4)

Estar de volta a São Pedro da Missões trazia-me antigas recordações. Não a mim exatamente, mas à Olívia da minha infância, a menina que testemunhou diversas histórias sem entendê-las muito bem.
Havia mais do que as lembranças de vestidos e passeios, das mãos hábeis de vovó Totonha e de sua força. Havia também a “loucura” de tia Margarida, a fragilidade das figuras masculinas – vovô Nico, tio Tatá e o meu próprio pai.
Ah, tinha também D. Lola, minha bisa! O ano que morei em São Pedro foi o primeiro e último do nosso convívio. Eu lembro-me tão bem de seus cabelos de nuvem – branquinhos e longos, muito longos. Eu passava a tarde a penteá-los e depois os trançava. Ela dormia na cadeira de balanço enquanto eu fiava suas madeixas. Bisa Lola estava quase sempre dormindo, rezando ou comendo. Quando morreu, pesava mais de cem quilos e tinha uns noventa anos.
Certo dia, vovó Totonha pediu que eu a acordasse para lanchar. Chamei e ela não respondeu. Brinquei nas suas tranças e ela lá, imóvel. Cutuquei e seu corpo estava gelado. Não demorei a perceber que o sono que dormia não era somente profundo, mas eterno. Foi então que descobri que a morte é fria e silenciosa.
Gritei por mamãe e vovó. Pedi que acudissem. Até tia Margarida veio ver o motivo de tanto barulho. Ao perceber o que acontecia ficou trêmula num cantinho da sala, repetindo sem parar, numa voz débil e baixa: “deixem a mamãe dormir”.
Vovô não estava em casa. Mamãe e vovó carregaram a bisa até o quarto. Foi grande a confusão. Mamãe não sabia o que fazer primeiro e numa rapidez incrível, deu o remédio de tia Margarida e depois fez com que deitasse; puxou minha mão e disse-me para subir na bicicleta e trazer ajuda.
Vovó Totonha não verteu lágrima, ficou firme o tempo todo. Com a ajuda de mamãe deu banho e vestiu a mortalha na bisa, puxou a reza, encabeçou o cortejo até o cemitério. Mais atrás, as mulheres carpideiras seguiam os homens. Foram necessários seis deles para carregar o caixão.
Depois de tudo, três coisas nunca saíram da minha memória: o cheiro de lavanda na casa, Tia Margarida na chuva e claro, a primeira vez que vi Vovó Totonha chorar.