segunda-feira, novembro 17, 2008

A flor do meu desejo ou o desabrochar da paixão

Presenteou-me com a flor da paixão, passiflora. Flor de beleza barroca e fragmentos caleidoscópicos.

Botão Photobucket Passiflora1
Pedro Ayres.

quarta-feira, novembro 05, 2008

O dia da vitória

Quem me conhece sabe o quão preconceituosa eu sou com tudo que se relaciona ao Tio Sam, mas devo confessar: nunca em toda minha vida me envolvi tanto numa campanha eleitoral para a Presidência de um país que não é o meu, mas torcer por Obama, acompanhar seu trajeto tinha pra mim sabor de ajustes de conta. Há muito de análise política, mas há mais ainda de paixão, de emoção e isso, neste exato momento, é o que está me motivando a postar o discurso de Obama.
Fim da era Bush, das atrocidades e burrice de um megalomaníaco.
As coisas demoram, mas elas têm uma razão de ser. Estou certa que somente hoje toda a luta de Martin Luther King tem finalmete um desfecho, uma resposta.
Obama
"Olá, Chicago! Se alguém aí ainda dúvida de que os Estados Unidos são um lugar onde tudo é possível, que ainda se pergunta se o sonho de nossos fundadores continua vivo em nossos tempos, que ainda questiona a força de nossa democracia, esta noite é sua resposta.
É a resposta dada pelas filas que se estenderam ao redor de escolas e igrejas em um número como esta nação jamais viu, pelas pessoas que esperaram três ou quatro horas, muitas delas pela primeira vez em suas vidas, porque achavam que desta vez tinha que ser diferente e que suas vozes poderiam fazer esta diferença.
É a resposta pronunciada por jovens e idosos, ricos e pobres, democratas e republicanos, negros, brancos, hispânicos, indígenas, homossexuais, heterossexuais, incapacitados ou não-incapacitados.
Americanos que transmitiram ao mundo a mensagem de que nunca fomos simplesmente um conjunto de indivíduos ou um conjunto de estados vermelhos e estados azuis.
Somos, e sempre seremos, os EUA da América.
É a resposta que conduziu aqueles que durante tanto tempo foram aconselhados por tantos a serem céticos, temerosos e duvidosos sobre o que podemos conseguir para colocar as mãos no arco da História e torcê-lo mais uma vez em direção à esperança de um dia melhor.
Demorou um tempo para chegar, mas esta noite, pelo que fizemos nesta data, nestas eleições, neste momento decisivo, a mudança chegou aos EUA.
Esta noite, recebi um telefonema extraordinariamente cortês do senador McCain.
O senador McCain lutou longa e duramente nesta campanha. E lutou ainda mais longa e duramente pelo país que ama. Agüentou sacrifícios pelos EUA que sequer podemos imaginar. Todos nos beneficiamos do serviço prestado por este líder valente e abnegado.
Parabenizo a ele e à governadora Palin por tudo o que conseguiram e desejo colaborar com eles para renovar a promessa desta nação durante os próximos meses.
Quero agradecer a meu parceiro nesta viagem, um homem que fez campanha com o coração e que foi o porta-voz de homens e mulheres com os quais cresceu nas ruas de Scranton e com os quais viajava de trem de volta para sua casa em Delaware, o vice-presidente eleito dos EUA, Joe Biden.
E não estaria aqui esta noite sem o apoio incansável de minha melhor amiga durante os últimos 16 anos, a rocha de nossa família, o amor da minha vida, a próxima primeira-dama da nação, Michelle Obama.
Sasha e Malia amo vocês duas mais do que podem imaginar. E vocês ganharam o novo cachorrinho que está indo conosco para a Casa Branca.
Apesar de não estar mais conosco, sei que minha avó está nos vendo, junto com a família que fez de mim o que sou. Sinto falta deles esta noite. Sei que minha dívida com eles é incalculável.
A minha irmã Maya, minha irmã Auma, meus outros irmãos e irmãs, muitíssimo obrigado por todo o apoio que me deram. Sou grato a todos vocês. E a meu diretor de campanha, David Plouffe, o herói não reconhecido desta campanha, que construiu a melhor campanha política, creio eu, da história dos EUA da América.
A meu estrategista chefe, David Axelrod, que foi um parceiro meu a cada passo do caminho.
À melhor equipe de campanha formada na história da política. Vocês tornaram isto realidade e estou eternamente grato pelo que sacrificaram para conseguir.
Mas, sobretudo, não esquecerei a quem realmente pertence esta vitória. Ela pertence a vocês. Ela pertence a vocês.
Nunca pareci o candidato com mais chances. Não começamos com muito dinheiro nem com muitos apoios. Nossa campanha não foi idealizada nos corredores de Washington. Começou nos quintais de Des Moines e nas salas de Concord e nas varandas de Charleston.
Foi construída pelos trabalhadores e trabalhadoras que recorreram às parcas economias que tinham para doar US$ 5, ou US$ 10 ou US$ 20 à causa.
Ganhou força dos jovens que negaram o mito da apatia de sua geração, que deixaram para trás suas casas e seus familiares por empregos que os trouxeram pouco dinheiro e menos sono.
Ganhou força das pessoas não tão jovens que enfrentaram o frio gelado e o ardente calor para bater nas portas de desconhecidos, e dos milhões de americanos que se ofereceram como voluntários e organizaram e demonstraram que, mais de dois séculos depois, um Governo do povo, pelo povo e para o povo não desapareceu da Terra.
Esta é a vitória de vocês.
Além disso, sei que não fizeram isto só para vencerem as eleições. Sei que não fizeram por mim.
Fizeram porque entenderam a magnitude da tarefa que há pela frente. Enquanto comemoramos esta noite, sabemos que os desafios que nos trará o dia de amanhã são os maiores de nossas vidas - duas guerras, um planeta em perigo, a pior crise financeira em um século.
Enquanto estamos aqui esta noite, sabemos que há americanos valentes que acordam nos desertos do Iraque e nas montanhas do Afeganistão para dar a vida por nós.
Há mães e pais que passarão noites em claro depois que as crianças dormirem e se perguntarão como pagarão a hipoteca ou as faturas médicas ou como economizarão o suficiente para a educação universitária de seus filhos.
Há novas fontes de energia para serem aproveitadas, novos postos de trabalho para serem criados, novas escolas para serem construídas e ameaças para serem enfrentadas, alianças para serem reparadas.
O caminho pela frente será longo. A subida será íngreme. Pode ser que não consigamos em um ano nem em um mandato. No entanto, EUA, nunca estive tão esperançoso como estou esta noite de que chegaremos.
Prometo a vocês que nós, como povo, conseguiremos.
Haverá percalços e passos em falso. Muitos não estarão de acordo com cada decisão ou política minha quando assumir a presidência. E sabemos que o Governo não pode resolver todos os problemas.
Mas, sempre serei sincero com vocês sobre os desafios que nos afrontam. Ouvirei a vocês, principalmente quando discordarmos. E, sobretudo, pedirei a vocês que participem do trabalho de reconstruir esta nação, da única forma como foi feita nos EUA durante 221 anos, bloco por bloco, tijolo por tijolo, mão calejada sobre mão calejada.
O que começou há 21 meses em pleno inverno não pode acabar nesta noite de outono.
Esta vitória em si não é a mudança que buscamos. É só a oportunidade para que façamos esta mudança. E isto não pode acontecer se voltarmos a como era antes. Não pode acontecer sem vocês, sem um novo espírito de sacrifício.
Portanto façamos um pedido a um novo espírito do patriotismo, de responsabilidade, em que cada um se ajuda e trabalha mais e se preocupa não só com si próprio, mas um com o outro.
Lembremos que, se esta crise financeira nos ensinou algo, é que não pode haver uma Wall Street (setor financeiro) próspera enquanto a Main Street (comércio ambulante) sofre.
Neste país, avançamos ou fracassamos como uma só nação, como um só povo. Resistamos à tentação de recair no partidarismo, na mesquinharia e na imaturidade que intoxicaram nossa vida política há tanto tempo.
Lembremos que foi um homem deste estado que levou pela primeira vez a bandeira do Partido Republicano à Casa Branca, um partido fundado sobre os valores da auto-suficiência e da liberdade do indivíduo e da união nacional.
Estes são valores que todos compartilhamos. E enquanto o Partido Democrata conquistou uma grande vitória esta noite, fazemos com certa humildade e a determinação para curar as divisões que impediram nosso progresso.
Como disse Lincoln a uma nação muito mais dividida que a nossa, não somos inimigos, mas amigos. Embora as paixões os tenham colocado sob tensão, não devem romper nossos laços de afeto.
E àqueles americanos cujo apoio eu ainda devo conquistar, pode ser que eu não tenha conquistado seu voto hoje, mas ouço suas vozes. Preciso de sua ajuda e também serei seu presidente.
E a todos aqueles que nos vêem esta noite além de nossas fronteiras, em Parlamentos e palácios, a aqueles que se reúnem ao redor dos rádios nos cantos esquecidos do mundo, nossas histórias são diferentes, mas nosso destino é comum e começa um novo amanhecer de liderança americana.
A aqueles que pretendem destruir o mundo: vamos vencê-los. A aqueles que buscam a paz e a segurança: apoiamo-nos.
E a aqueles que se perguntam se o farol dos EUA ainda ilumina tão fortemente: esta noite demonstramos mais uma vez que a força autêntica de nossa nação vem não do poderio de nossas armas nem da magnitude de nossa riqueza, mas do poder duradouro de nossos ideais: democracia, liberdade, oportunidade e firme esperança.
Lá está a verdadeira genialidade dos EUA: que o país pode mudar. Nossa união pode ser aperfeiçoada. O que já conseguimos nos dá esperança sobre o que podemos e temos que conseguir amanhã.
Estas eleições contaram com muitos inícios e muitas histórias que serão contadas durante séculos. Mas uma que tenho em mente esta noite é a de uma mulher que votou em Atlanta.
Ela se parece muito com outros que fizeram fila para fazer com que sua voz seja ouvida nestas eleições, exceto por uma coisa: Ann Nixon Cooper tem 106 anos.
Nasceu apenas uma geração depois da escravidão, em uma era em que não havia automóveis nas estradas nem aviões nos céus, quando alguém como ela não podia votar por dois motivos - por ser mulher e pela cor de sua pele.
Esta noite penso em tudo o que ela viu durante seu século nos EUA - a desolação e a esperança, a luta e o progresso, às vezes em que nos disseram que não podíamos e as pessoas que se esforçaram para continuar em frente com esta crença americana: Podemos.
Em uma época em que as vozes das mulheres foram silenciadas e suas esperanças descartadas, ela sobreviveu para vê-las serem erguidas, expressarem-se e estenderem a mão para votar. Podemos.
Quando havia desespero e uma depressão ao longo do país, ela viu como uma nação conquistou o próprio medo com uma nova proposta, novos empregos e um novo sentido de propósitos comuns. Podemos.
Quando as bombas caíram sobre nosso porto e a tirania ameaçou ao mundo, ela estava ali para testemunhar como uma geração respondeu com grandeza e a democracia foi salva. Podemos.
Ela estava lá pelos ônibus de Montgomery, pelas mangueiras de irrigação em Birmingham, por uma ponte em Selma e por um pregador de Atlanta que disse a um povo: "Superaremos". Podemos.
O homem chegou à lua, um muro caiu em Berlim e um mundo se interligou através de nossa ciência e imaginação.
E este ano, nestas eleições, ela tocou uma tela com o dedo e votou, porque após 106 anos nos EUA, durante os melhores e piores tempos, ela sabe como os EUA podem mudar.
Podemos.
EUA avançamos muito. Vimos muito. Mas há muito mais por fazer. Portanto, esta noite vamos nos perguntar se nossos filhos viverão para ver o próximo século, se minhas filhas terão tanta sorte para viver tanto tempo quanto Ann Nixon Cooper, que mudança virá? Que progresso faremos? Esta é nossa oportunidade de responder a esta chamada. Este é o nosso momento. Esta é nossa vez.
Para dar emprego a nosso povo e abrir as portas da oportunidade para nossas crianças, para restaurar a prosperidade e fomentar a causa da paz, para recuperar o sonho americano e reafirmar esta verdade fundamental, que, de muitos, somos um, que enquanto respirarmos, temos esperança.
E quando nos encontrarmos com o ceticismo e as dúvidas, e com aqueles que nos dizem que não podemos, responderemos com esta crença eterna que resume o espírito de um povo: Podemos.
Obrigado. Que Deus os abençoe. E que Deus abençoe os Estados Unidos da América
".

terça-feira, novembro 04, 2008

Um pouco de ufanismo não faz mal a ninguém

O longa nacional Chega de Saudade, de Laís Bodanzky, ganhou anteontem o prêmio de melhor filme no 14º Festival Internacional de Genebra, na Suíça. Participaram da competição produções de países como Estados Unidos, China, Irã, Dinamarca e Colômbia. A principal premiação concedida ao filme, que retrata diferentes histórias em um salão de baile, foi feita por um júri de várias nacionalidades, como o diretor da Cinéfoundation do Festival de Cannes, Georges Goldenstern. Em agosto, o longa, encenado por Stepan Nercessian, Beth Faria e Cássia Kiss, levou o título de melhor trilha sonora do 3º Prêmio Contigo! de Cinema.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

sexta-feira, outubro 03, 2008

As Matriarcas (11)

Quando dei por mim, estava de volta ao meu quarto, na pensão do Agenor. Levantei-me sobressaltada e sentei-me na cama e qual foi o susto quando vi o Tiziu com aqueles olhos arregalados, sentado na poltrona de veludo, a olhar para mim:
- O que houve? E o que você faz aqui, Tiziu?
- Não está lembrada, D. Olívia? A gente estava andando de bicicleta lá pras bandas do Largo da Esperança quando a senhora passou mal e desmaiou. Acho que foi o sol. Estava quente por demais e a senhora não deve de tá acostumada.
- Não deve estar acostumada!
- Pois não foi o que eu disse? Então, voltei correndo na bicicleta, busquei a charrete e o Nhô Agenor para ajudar.
- Ah, sim! Agora estou me lembrando... Diga-me, faz muito tempo que estou dormindo?
- Não. Coisa de meia hora.
- E você ficou aqui esse tempo todo, velando meu sono?
Acho que a comoção na minha voz o deixou enrubescido.
- É. Queria saber se a professora tava bem – disse um Tiziu todo envergonhado.
- Estou ótima, Tiziu. Agora você pode ir. Descanse um pouco e faça seus deveres de casa. Mas antes, pegue ali a minha bolsa.
Ele foi pegá-la, todo preocupado.
- Aqui está o seu pagamento.
- Não, D. Olívia. Não precisa pagar. A gente nem chegou a fazer o passeio direito.
- Pegue. Esse é o combinado. Além do mais, você ainda teve o trabalho de voltar para buscar ajuda. Vamos, vamos. Pegue.
Relutante, ele esticou a mão para receber o dinheiro. Eu o puxei e disse-lhe:
- Muito obrigada. O dinheiro é seu para comprar o que quiser, mas não vá gastar com bobagens, sim?
- Pode deixar, D. Olívia.
Quando Tiziu bateu a porta, fiquei lembrando-me de tia Margarida, da procissão, de seus surtos, de sua dor.
A primeira vez que vi tia margarida se descontrolar foi na morte da bisa Lola. Mais tarde, na procissão e depois disso, ela nunca mais foi a mesma.
Antes de tudo isso começar, ela dava aula no Grupo Escolar. Era uma excelente professora. As crianças adoravam-na. Lembro de tia Guidinha sempre perfumada, usando saias esvoaçantes. Ela tinha pernas escandalosas. Ela gostava de poesia e me fez ter gosto por literatura. A primeira vez que li Bandeira, deparei-me com um poema seu que dizia assim:

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos era muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do [corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Disse a ela que achei Tereza a sua cara e que mesmo sem conhecê-la, Manuel Bandeira escrevera aqueles versos para ela. Ela divertia-se com essa minha idéia.
Quando tia Margarida surtava, escutar a mim declamando esse poema era uma das poucas coisas que a acalmava.

sexta-feira, setembro 19, 2008

IV

De todas as coisas que existem, sempre acreditei na redenção, na força de renovação de tudo aquilo que vive e pulsa. Os pequenos milagres sempre me causaram fascínio: um corte que sangra e depois sara, fechando a carne por si só, numa costura fina e imperceptível; a pele da grávida que se estica toda e logo após o parto retorna lentamente ao que era, regenerada. Pura mágica de um ágil prestidigitador.
A despeito de todas as misérias e catástrofes, eu sempre acreditei na redenção. Não sei se por hábito ou teimosia.
Ultimamente, os pequenos milagres estão cada vez menores. A minha capacidade de estupefação diante das surpresas e do ‘inesperado bom’, como diria a Clarice, está reduzida a proporções diminutas. Ela é quase um fiapo que se solta da roupa esgarçada, rota. Rotos são os despropósitos, os imbecis, a estupidez.
Há quem se exercite por uma questão estética, por puro narcisismo; há outros que o fazem por questão de saúde, bem-estar; outros ainda são atletas e o exercício é como um vício; há uma outra categoria que o faz como forma de terapia, talvez de terapêutica medicamentosa, porque precisam jorrar para fora do corpo tudo aquilo que incomoda ou envenena.
Eu sou assim em relação à escrita. Deve ser esse o motivo pelo qual ando tão mal humorada, quase venenosa; sinto-me intoxicada, tenho dores por todo o corpo, chovo pluviosamente, estou impaciente, mordaz, quase cruel: é a falta de tinta no papel, a ausência de calos nos dedos, a quantidade imensurável de palavras que percorrem as artérias, adentram células, mas não encontram lugar para desaguar, nem que seja a mais discreta fenda. Lá se vão novamente passear pelas minhas entranhas. De tanto represá-las – as palavras – entupiram as finas veias do meu coração, oxidaram minha saliva e tudo tem sabor de ferrugem.
Não há nada que um belo torniquete não cure. As palavras aos poucos gotejam do corte, ventilando o ar e trazendo certo frescor, algo semelhante ao cheiro da chuva, da terra molhada.
A despeito das misérias, queria ter escrito sobre a beleza oculta, quase violentada, do filme É proibido proibir, mas não o fiz, sabe-se lá a razão. Eu só queria registrar que apesar da violência, do mondo cane, da merda de vida que temos, há em algum lugar, ainda que remoto, um sopro de esperança.
Eu leio Clarice, Pessoa, Drummond... eu ouço Chico, Bach, Calcanhotto e o silêncio. Fico pensando nos motivos que me impelem a isso. Por que Clarice, Drummond, Chico, Cortázar, Osman Lins, Machado e não Joyce, Saramago, Ana Carolina? Por que vitrais, os labirintos, as perspectivas, o tempo psicológico e não o tempo cronológico, a narrativa encadeada, o discurso direto e plano? Por que os redemoinhos, as temáticas angustiantes, personagens comezinhos e humanos e não o romance de costumes, o herói mítico? Respostas? Nenhuma me satisfaz, então aceito o simples “porque sim”.
Lembrei agora do Chico, lindo em relato muito pessoal que não deixa de ser risível, mas eu não sorri, eu chorei doído e tive uma vontade louca de ser amiga dele, pegar o telefone e dizer: “Chico querido, a casa do Oscar não foi destruída, ela resistiu ao tempo. A casa do Oscar está construída em terreno sólido e preservou o traço peculiar do arquiteto, aquele traço que deixa a sensação de que tudo flutua, de que tudo tem asas. Nada nem ninguém podem destruir a casa do Oscar, porque ela foi construída num lugar para além do sonho e do desejo”. Mas eu não sou amiga do Chico, logo, não pude dizer nada. Então eu escrevo porque não dá para represar tudo o tempo todo.

“Quando eu morrer que me enterrem na beira do chapadão”...

Eu gosto de Chico porque ele é antes de tudo um ser literário, ele é dos detalhes, dos vitrais, dos mosaicos vertiginosos. O Chico é fã do Rosa, do samba, da bossa, do Tom.

“Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome”...

Eu gosto da Calcanhotto porque ela conhece a Frida Khalo e suas cores, porque ela escuta o mar e canta seus segredos, porque conhece poesia concreta, mas não é dura, engessada.

“Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro.”

Eu amo a Clarice porque ela é complicada, porque é mais Kafkaniana do que o próprio Kafka. Eu amo a Clarice porque tenho certeza que ela é a prova de que o abstracionismo tem tradução.
Osman, Cortázar, Machado... todos são pequenas peças do mosaico. Eles podem ser lidos sem manuais, porque transgridem regras, porque eu tenho uma queda pelo que é raro e pelo que está em vias de extinção, como a espécie do Homus caleidoscopicus.

Gosto de objetos estranhos com sons estranhos, mas imponentes e que por si só são uma sinfonia de fonemas. Eu gosto das palavras que nomeiam tais objetos.
G r a m o f o n e e s c a f a n d r o a l d r a v a p a l í n d r o m o.
Por quê? Deve ser porque um dia, um anjo torto disse: vai ser gauche na vida. Eu não dei ouvidos, mas um tal de Carlos não cometeu o mesmo erro.

quarta-feira, setembro 10, 2008

Das genialidades

Faça como se estivesse em casa

Um esperança construiu uma casa e colocou-lhe um azulejo que dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar.
Um fama construiu uma casa e não colocou azulejo nenhum.
Um cronópio construiu uma casa e seguindo o hábito colocou no vestíbulo diversos azulejos que comprou ou mandou fabricar. Os azulejos eram dispostos de maneira a que se pudesse lê-los em ordem. O primeiro dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar. O segundo dizia: A casa é pequena, mas o coração é grande. O terceiro dizia: A presença do hóspede é suave como a relva. O quarto dizia: Somos pobres de verdade, mas não de vontade. O quinto dizia: Este cartaz anula todos os anteriores. Se manda, cachorro.


CORTÁZAR, Julio. A História de Cronópios e Famas.

quarta-feira, agosto 27, 2008

Mais um drops da Fal

Ela está de volta, mais poderosa do que nunca: Fal Azevedo.
Reservem um tempinho em suas agendas, não percam esta oportunidade por nada do mundo. Façam tudo o que eu faria se estivesse em São Paulo: abracem, beijem, fofoquem com essa mulher.
E, claro, me matem de inveja.
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segunda-feira, agosto 25, 2008

J. L. Borges (24/08/1899 – 14/06/1986)

Jorge Luis Borges
Biblioteca de Babel

"By this art you may contemplatethe variation of the 23 letters..."
The Anatomy of Melancholy, part 2, sect. II, mem. IV


O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: intermina­velmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altu­ra, que é a dos pisos, mal excede a de uni bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer s necessidades fecais. Por aí passa a escada em espiral, que se afunda e e eleva a perder de vista. No saguão há um espelho, que fielmente du­plica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Bi­blioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta dupli­cação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz provém de umas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á lon­gamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita. Eu afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas ar­gumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto, ou pelo menos da nossa intuição do espaço. Consideram que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com um grande livro circu­lar de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes; mas o seu testemunho é suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico e Deus.) Basta-me por agora repetir a clássica sentença: "A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferên­cia é inacessível."
A cada uma das paredes de cada hexágono correspondem cinco pra­teleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta li­nhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor negra. Também há letras na lombada de cada livro; estas letras não indicam nem representam o que dirão as páginas. Sei que esta incongruência já chegou a parecer misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar das suas trá­gicas projecções, é talvez o facto capital da história) vou rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Desta verdade cujo coro­lário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com a sua elegante dota­ção de estantes, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o via­jante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que existe entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trémulos que a minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pon­tuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.
O segundo: "O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco". Foi esta observação que permitiu, há trezentos anos, formular uma teo­ria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que ne­nhuma conjectura tinha ainda decifrado: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que o meu pai viu num hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava apenas das letras M C V perversa­mente repetidas da primeira linha até à última. Outro (muito consultado nesta zona) é um simples labirinto de letras, mas a penúltima página diz "Oh tempo as tuas pirâmides." Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e de incoerências. (Sei de uma bárbara região cujos bibliotecários repudiam o vão e supersticioso costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco
símbolos naturais, mas afirmam que essa aplicação é casual e que os li­vros em si nada significam. Esta opinião, como veremos, não é totalmen­te falaciosa.)
Durante muito tempo julgou-se que esses livros impenetráveis cor­respondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem bastan­te diferente da que falamos agora; é verdade que poucas milhas à direita a língua é dialectal e que noventa pisos mais acima é incompreensível. Tudo isto, repito, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por mais dialec­tal ou rudimentar que seja. Houve quem insinuasse que cada letra podia ter influência sobre a seguinte e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de ou­tra página, mas esta vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente, aceitou-se esta conjectura, embora não no sentido em que a formularam os seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior(
1) deu com um livro tão confuso como os outros, mas que tinha quase duas folhas de li­nhas homogéneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros disseram-lhe que era iídiche. Em menos de um século conseguiu-se estabelecer o idio­ma: um dialecto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada. Estes exemplos permitiram que um bibliotecário de génio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por muito diferentes que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também acrescen­tou um facto que todos os viajantes têm confirmado: "Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos." Destas premissas incontroversas deduziu que a Biblioteca é total e que as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número, embora vas­tíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as lín­guas, as interpolações de cada livro em todos os livros, o tratado que Beda pode ter escrito (e não escreveu) sobre a mitologia dos Saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum hexágo­no. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as di­mensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das Reabilitações: livros de apologia e de profecia, que para sempre reabilitavam os actos de todos os homens do universo e guardavam arcanos pro­digiosos para o seu porvir. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e lançaram-se pelas escadas acima, impelidos pelo vão propósito de encontrar a sua Reabilitação. Estes peregrinos brigavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, atiravam os livros enganadores para o fundo dos túneis, morriam defenestrados pelos homens de regiões remotas. Outros enlou­queceram... As Reabilitações existem (eu vi duas que se referem a pes­soas do futuro, a pessoas porventura não imaginárias), mas os pesquisa­dores não se lembravam que a possibilidade de um homem achar a sua, ou alguma pérfida variação da sua, se pode computar à volta do zero.
Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil que estes graves mistérios possam explicar-se por palavras: se não bastar a lingua­gem dos filósofos, a multiforme Biblioteca deve ter produzido o idioma inaudito que se requer, bem como os vocabulários e gramáticas desse idioma. Há já quatro séculos que os homens não dão descanso aos hexá­gonos... Há pesquisadores oficiais, inquiridores. Vi-os no desempenho da sua função: chegam sempre esgotados; falam de um escadote sem de­graus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliote­cário; algumas vezes, pegam no livro mais próximo e folheiam-no, em busca de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À desaforada esperança, como é natural, sucedeu-se uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira nalgum hexágono continha livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, pareceu quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construírem, por meio de um improvável dom do acaso, esses livros canónicos. As au­toridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapa­receu, mas na minha infância vi homens velhos que longamente se ocul­tavam nas latrinas, com uns discos de metal num covilhete proibido, e fracamente imitavam a divina desordem.
Outros, pelo contrário, acreditaram que a prioridade era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com tédio um volume e condenavam estantes inteiras: ao seu furor higiénico e ascético deve-se a insensata perda de milhões de livros. O seu nome é execrado, mas quem deplora os "tesouros" que o seu frenesi destruiu descura dois factos notórios. Um: a Biblioteca é de tal forma enorme que toda a redução de origem humana se torna infini­tésima. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Bi­blioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles im­perfeitos: de obras que só diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as consequências das de­predações cometidas pelos Purificadores foram exageradas pelo terror que esses fanáticos provocaram. Impelia-os o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; omnipotentes, ilustrados e mágicos.
Também sabemos doutra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os ou­tros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à pro­cura d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos ru­mos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o alojava? Al­guém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito... Foi em aventuras destas que desperdicei e consumi os meus anos de vida. Não acho inverosímil que nalguma estante do universo haja um livro total(
2); rogo aos deuses ignorados que um homem — um só que seja, há milhares de anos! — o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a sabedoria e a felicidade, que sejam para outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e até a humilde e pura coerência) é uma quase milagrosa excep­ção. Falam (eu sei-o) da "Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes cor­rem o incessante risco de se transformarem noutros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira". Estas palavras que não só denunciam a desordem, mas também a exemplificam, provam de maneira notória o seu péssimo gosto e a sua desesperada ignorância. Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as varia­ções que permitem os vinte e cinco sinais ortográficos, mas não um úni­co disparate absoluto. Não vale a pena observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro se intitula Trono penteado, e ou­tro A cãibra de gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas propostas, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são susceptíveis de uma justificação cripto­gráfica ou alegórica; essa justificação é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar uns caracteres

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que a divina Biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trin­ta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos — e também a sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas, o símbolo biblioteca admite a correcta defi­nição ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou outra coisa qualquer, e as sete palavras que a defi­nem têm outro valor. Tu que me lês, tens a certeza de que compreendes a minha linguagem?)
A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que está tudo escrito anula-nos ou envaidece-nos. Conheço distritos onde os jovens se ajoelham diante dos livros e lhes beijam bar­baramente as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epi­demias, as discórdias heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio já ter men­cionado os suicídios, de ano para ano cada vez mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita de que a espécie humana — a única — está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca per­durará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não intercalei este adjectivo por um hábi­to retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Quem o julga limitado, postula que em lugares longínquos os corredores e es­cadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar — o que é absurdo. Quem o imagina sem limites, esquece que os tem o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qual­quer direcção, verificaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). A minha solidão alegra-se com esta elegante esperança(3).

Mar da Prata, 1941.

(1) - Dantes, para cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as doenças pulmonares
destruíram esta proporção. Memória de indescritível melancolia: já cheguei a viajar muitas noites por corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.
(2) - Repito: basta que um livro seja possível para existir. Só está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escada, embora sem dúvida haja livros que discutem e negam e demonstram essa possibilidade, e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.
(3) - Letizia Álvarez de Toledo observou que esta vasta Biblioteca é inútil: rigorosamente, basta­ria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, que cons­tasse de um número infinito de folhas infinitamente finas. (Cavalieri nos princípios do sécu­lo XVII disse que todo o corpo sólido é a sobreposição de um número infinito de planos.) O manejo desse vade-mécum sedoso não seria cómodo: cada folha aparente desdobrar-se-ia noutras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.

quarta-feira, agosto 20, 2008

III

“Tenho pra mim que as tempestades e ventanias não são mais do que meras assombrações. Enquanto caminhamos certos de qualquer assertiva ou proposição que nos tranqüilize ou nos conduza rumo a um objetivo, elas surgem como parte de uma fantasmagoria evolutiva: será mesmo que apenas os fortes sobrevivem? Mas diante das tormentas, Darwin afoga-se em outras águas. A força de que falo nada tem a ver com músculos e físico. Os fortes são os que não afundam em seus próprios rios turvos; aqueles que não ficam presos no atoleiro das emoções ou sucumbem ao terreno movediço do desespero. E há dias em que tudo o que se quer é deixar-se levar pela correnteza, não lutar, não fazer um único movimento. Também isso é sinal de força? Ou apenas resignação? Qual o significado de deixar-se engolir pela baleia e permanecer em seu interior quente?
Em alguns dias, desejo a simplicidade dos ignorantes, invejo a risiliência dos humildes que desconhecem os livros, as teorias, os filósofos, os paradigmas, os paradoxos... Quanto de alento todo esse conhecimento traz? Entender a nossa condição, ainda que de modo precário, é antes tudo possuir uma inquietação e certa angústia por descobrirmos que até mesmo o livre arbítrio possui limitações que independem do nosso querer”.

segunda-feira, agosto 18, 2008

27ª Feira do Livro e Bienal Internacional de Poesia

Brasília prepara-se para mais uma edição da Feira do Livro. Eu fico esperando o ano inteiro por esta data. Simplesmente adoro parar em cada stand, folhear os livros, cheirar suas páginas, participar dos bate-papos e oficinas. A única coisa que realmente me desagrada na Feira é o espaço que lhe é reservado: um shopping center.
Shopping é um lugar frio, as pessoas não entram no clima da viagem literária, de fazer parte de um evento lúdico-cultural. O consumismo embaça o brilho das letras, das capas.
Gostaria de ver a Feira acontecendo novamente no Centro de Convenções. Agora nem há mais a desculpa da reforma, ele está lá, prontinho para ser usado.
Alguém imagina a Feira do Livro de Porto Alegre no Praia de Belas ou qualquer outro shopping da cidade? Seria uma heresia! A feira pertence à Praça da Alfândega com seus jacarandás floridos.
Paralelamente à feira, Brasília sediará a I Bienal Internacional de Poesia.
Confiram a programação aqui. Tem muita coisa boa.

sexta-feira, agosto 15, 2008

Radiola (2)

A versão dessa música na voz da Adriana Calcanhotto é coisa boa como algodão doce.


Assim sem você, Claudinho e Bochecha

quarta-feira, agosto 13, 2008

Quote (1)


Livros
A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.

(Fernando Pessoa)

segunda-feira, agosto 04, 2008

Há trinta anos morria Osman Lins, um artesão das palavras.
Seus livros permitem ao leitor uma jornada densa e envolvente pelas páginas de uma literatura arrebatadora e única, porque para Osman escrever era mais do que criação, escrever era a única maneira de dar sentido à vida.

Em agosto, a revista Continente nos presenteou com um vídeo lindo, delicado - Quarteto - baseado na troca de correspondências entre o escritor e suas três filhas.
Não deixem de assistir!
P.S.: Tentei colocar o vídeo aqui, mas não consegui. Acho que é pesado demais para o blogue.

O que era bom ficou melhor

A revista Continente está com novo site.
O Projeto ficou bonito e traz muitas novidades.
Quando puderem, não deixem de conferir.

terça-feira, julho 29, 2008

As matriarcas (10)

A cidade inteira quedou-se paralisada, muda, ao se deparar com tia Margarida “seminua”, valsando ao som das gotas espessas de chuva que estouravam no chão do quintal.
Somente as crianças – que não compreendiam bem o que de fato acontecia – romperam o silêncio daqueles rostos estáticos, quando resolveram se juntar ao bailado de tia Margarida. Aproveitaram seu desvario como desculpa para tomar banho de chuva, fazer algazarra e brincar de ciranda em torno de uma tia Margarida em êxtase.
Ninguém as impediu. Creio mesmo que nem notaram a presença delas, tamanha estupefação. Pareciam hipnotizados, em transe coletivo, num misto de horror e incredulidade diante da cena. Nenhum suspiro, nenhum “oh!” nem menear de cabeças. O único gesto (mecânico) que notei foi o de Pe. Miguel se benzendo com o sinal da cruz como se testemunhasse uma possessão, mas minha memória me dizia que a interpretação da criança que fui era outra. Naquele dia achei que Pe. Miguel abençoava tia Margarida, livrando-a de toda mácula, pecado ou doença, tal como Jesus fizera com Maria Madalena. Pensei que ali, naquele momento, ao ver tia Margarida rodopiar e sorrir, presenciara um milagre.
Eu mal sabia que era o começo do fim.
Tia Margarida deu um berro e desmaiou. Corri em sua direção ao mesmo tempo em que procurei mamãe com os olhos, mas ela amparava nos braços uma vovó Totonha desfalecida.

quinta-feira, junho 26, 2008

Da Amizade

(Para Camila)


Flora: Melhor da gripe?
Aurora: Melhorando, querida. E você, tá boa?
Flora sorrindo: Tô sim. Peguicinha e estranhas sensações sobre o mundo.
Aurora: Preguicinha é coisa boa, já estranhas sensações sobre o mundo... não sei, não.
Flora: Nem eu sei.
Aurora: Who knows?
Flora: Ninguém, Aurora... mas a vida tá na cara, sabe? Tudo assim muito explícito. Eu tenho enxergado demais e pra quem tem muitos sonhos isso é um horror.
Aurora: Enxergar demais não é muito legal: mata a fantasia e o sonho - ambos essenciais pra continuarmos acreditando em algo. Não é um conselho ou nada do gênero, é apenas uma observação de quem compartilha contigo toda essa limpidez de retina. Eu sou muito melhor hoje, mas em alguns aspectos sou bem pior, porque fiquei cética em relação a alguns assuntos.
Flora: Sim, é completamente isso, Aurora.
Aurora: O mesmo velho papo: enxergar demais é como amar demais, ser inteligente, ser gente demais. Demais, nessa acepção, é algo que o mundo desconhece.
Flora: Sim. E o "demais" é sempre muito, demasiado, é passar do limite necessário. A gente não precisava disso.
Aurora: That's the point! A gente não precisa, Flora! Ontem, uma amiga do trabalho veio me falar de uma relação que teve - a última - e de como o cara foi um sacana de merda, de como ele foi um puto, sem necessidade porque ela era uma pessoa que deixava o terreno aberto para ele cair fora sem mentiras, sem cascata. Palavras dela: "não precisava ser assim".
Flora: Nunca "precisava ser assim".
Aurora: Eu suspirei fundo, ri e disse apenas: não precisa, mas vai acontecer mais um montão de vezes, querida, porque você é mulher demais para esses homens de menos que estão por aí. Gente que quer viver o show de Truman e nós queremos viver amor à flor da pele.
Sendo bem pragmática, Flora. Sem elaborações românticas ou emotivas. Além da perpetuação da espécie, eu não vejo lógica na relação homem/mulher. Nós somos seres muito distintos. Nós sentimos diferente.
Flora rindo: Ontem numa conversa mega franca com uma amiga eu disse o seguinte: não tenho mesmo pressa em "encontrar" o amor da vida. Nem pressa nem necessidade disso. Mas pode ser que aconteça, e se acontecer – amém. E vou seguindo. Pode ser até que eu ainda me engane algumas vezes. Percebe, Aurora?
Aurora: Sim.
Flora: "Me engane". AURORA, A GENTE SE ENGANA ÀS VEZES PORQUE QUER.
Aurora: A gente se engana porque tem um lusco-fusco de esperança, porque quer... acreditar! Hoje está muito claro pra mim, nega. Eu vou ser feliz apesar de.
Flora: Lusco-fusco, uma tia sessentona diz isso e eu gargalho sempre
Aurora: Eu sou quase sessentona, Flora! De alma.
Flora: Eu Também. Tenho 123 anos.
Aurora: Eu já entendi que a felicidade não é algo extrínseco a mim. Eu não posso ser feliz por causa de fulano, de um carro, de uma casa... pessoas morrem, carros batem, casas caem e a gente continua.
Flora: Escreva isso num livro, AURORA!
Aurora: Vou escrever, nega; mas eu quero mesmo é (ins)escrever na vida, em neón vermelho!
Flora: ADORO. Lúcida Aurora.
Aurora: Aqui jaz alguém que continou, SEMPRE.
Flora: Ohhhhhhhhh. Que linda.
Aurora: Eu tenho observado: a mãe da Isabela, a daquele garoto que foi arrastado pela rua. Não deve existir dor pior que essa. Nenhum amor romântico é capaz. Elas perderam um pedaço delas literalmente, mas continuaram, nega, porque é assim.
Flora: Siiiiim. Ontem vi 3 coisas assim boas de pensar. Vi O clube do livro, de Jane Austen; Os Maias e Lavoura Arcaica. E terror é isso, sabe? É ver a vida projetada em filme, em noticiário de tv, em foto no jornal, vidarealnanossacara!! E depois de tudo ainda tem mais, porque não dá pra dar um tiro na cabeça como fez a tia da minha mãe e dizer "acabou".
Aurora: Oooooooh! Caralho. Não sabia.
Flora: Né isso, Aurora? "Era a morte, eu escolhi a vida", diz uma personagem daquele filme As horas. A morte permeia sempre, seja figurativa ou não. A escolha é nossa.
Aurora: É isso aí, amada. Sou feliz por poder presenciar teu eterno crescimento. Como escritora, como mulher e como pessoa que você é. Se para isso for preciso perder um pouco da inocência, acho que vale a pena. A gente é indivíduo e como tal, completo. É claro que o papo de ninguém ser uma ilha é superverdade, mas o pulo do gato é exatamente isso: viver com, não viver em.
Flora: Urrul!!! Viver com o que se tem. Ponto final. E isso não é conformismo, é maturidade.
Aurora: Eu era a vida e já quis a morte, diz Aurora. Direto de sua alma para a alma de Flora.
Flora: "já quis" - salve as conjugações no passado.
Aurora: And I wanted it so badly! Não há pior lugar para se estar do que na morte. Sim, porque a morte também é um lugar.
Flora: Se É lugar, Aurora! Concordo MUITO.
Flora pega o livro: Pra gente o meu autor: R. Nassar.

"o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide por isso a quem me curvo cheio de medo erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixaram de ser simplesmente vida corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória...”

Aurora: lindolindolindo. Verdadeverdadeverdade. Sempre que falo com você me emociono. Tô aqui secando a lagriminha no canto do olho, mas é um choro bom, nega. É um choro ancestral, um choro de identificação, de quem encontra o outro depois de mil anos no deserto e diz: “Eu sabia! Eu sabia que tinha mais gente como eu. Não estou só”.
Flora: O "eu sabia" é pra essa merdinha de esperança que a gente guarda no peito. A gente vive pra isso, Aurora, para os encontros grandiosos que salva essa merdinha que a gente chama "esperança".
Aurora: E é por isso que pessoas como nós não têm pares por perto, Flora. Eu também já entendi isso. Somos poucos, pouquíssimos em nossa espécie e seria muita sacanagem vivermos num resort!
Flora ri: Seria o PARAÍSO vivermos num resort.
Aurora: Não é a gente que precisa desse bando de zumbi que só vaga pelo mundo; são eles que precisam de nós! Somos o "eu sabia!" deles, "essa merdinha de esperança que eles (sic) guardam no peito."
Flora: sim, a gente dá vida, afinal. Fico me achando quase Madre Tereza. Tipo "Oh oh oh que missão".
Aurora: Pois é. Mas no meio dessa missão sagrada, eu quero um pouquinho de sexo!
Flora: Aurora, os caras depois de mim casam. Repito: CASAM. Têm filhos, constroem, ficam lindos e felizes.
Aurora explode numa gargalhada: Ca-ce-te. Ca-ce-te.
Flora continua: E eu olho e penso: éééééé Flora, vá se fudê!
Aurora: Esse discurso é meu!
Flora: É nosso, então. Em breve, não me espantarei se Carlos me escrever dizendo: "casei".
Aurora: Nega, eu posso dar testemunho em qualquer templo.
Flora rindo muito: Ai que heresia.
Aurora: Heresia é o cacete! É uma verdade linda, tão verdadeira que dói! Eu sou a escada, o remédio, a terapia. Aí eles se curam e quando se curam, eles batem a porta e no caminho acham a mulher perfeita e têm filhos perfeitos, casas perfeitas igualzinho ao comercial de margarina. E eu digo: Ponto pra Aurora. Se fodeu novamente.
Flora: S-I-M. Nadam e a gente fica.
Aurora: Não tem um cartão de agradecimento, flores, nada. Nem pagam a porra da conta!
Flora: Pô, deveriam pagar mesmo. Ontem falei pra minha amiga que conselho pra burro, por exemplo, eu vou cobrar.
Aurora: E caro! Porque jogar pérola aos porcos é foda.
Flora: Ah, eu hein? Gasto meu latim e nada. Vácuo.
Aurora: Hello? Is there anybody here?
Flora: As pessoas se repetem, sabe? Gostam do problema, mas não das soluções. Credo!
Aurora: Pra quê solução? Quando a solução chega é hora de partir. Enquanto tão doentes, recebem agrados, mimos, fazem beicinho.
Flora: Ui que sério: "quando a solução chega é hora de partir"
Aurora: "Arrumar outra otária pra ter pena de mim".
Flora: Ó nós aí, geeeeente!
Aurora: Mas não é? Gente, eu vou ter um orgasmo! Eu sou phoda com PH, honey.
Flora: PH DYHSOIVFTCMDE... o alfabeto todo.
Aurora: isso isso.
Flora: Caraça, mané. Vamos montar uma barraquinha no centro da cidade e cobrar para dizer essas coisas.
Aurora: Vamos! Eu topo. Seguinte, se depois da consulta, o/a mané voltar, tem direito à porrada.
Flora: Siiiim, adoro a idéia de bater em alguém porque é idiota.
Aurora: Bom, o título de madre tereza... acabamos de perder, dear.
Flora: Sim, depois disso já era. Tem problema, não.
Aurora: Tu nem queria mesmo, né?

sábado, junho 21, 2008

Acabei de chegar do cinema.
Há muito tempo não entro numa sala de cinema para ver um filme de conteúdo “adulto”. A lista atualizada consta filmes dos estúdios Disney, Pixar e demais da mesma seara. Isso não significa, é claro, um martírio ou tortura, porque eu sou fã de animação, mas quem tem crianças por perto, sabe do que estou falando.
Minha intenção era ver a produção francesa La vérité ou presque (ou A quase verdade), mas cedi ao pedido de uma amiga de trabalho e fomos assistir Sex and the City.
Apesar de previsível, consegui me divertir porque aprendi encarar as crônicas de Carry Bradshaw como mera ficção.
Eu costumava ver o seriado até que enchi, cansei de ser iludida. Quando Sex and the city surgiu como seriado, tinha a pretensão de tratar do universo feminino e suas conturbadas relações de uma maneira bastante realista, uma vez que as histórias giravam em torno de mulheres que há muito deixaram de ser jovenzinhas sonhadoras e românticas. Eram mulheres de trinta, quarenta, cheia de histórias, decepções, alegrias, perdas, futilidades, papo-cabeça, ou seja, gente como a gente.
A protagonista/narradora é Carry Bradshaw, jornalista com uma coluna cativa que tratava das relações amorosas, sob a ótica feminina, na cidade Nova York. Carry é solteira, independente, dona de um discurso moderno, mas em busca de um grande amor.
Charlotte é a típica heroína dos romances do século XIX: bonita, delicada, feminina que sonha com a família perfeita. Aquela dos comerciais de margarina.
Miranda é a personificação dos ideais feministas, em outras palavras, ela é um homem de saias: é uma vencedora da batalha dos sexos no competitivo universo profissional: inteligente, racional, metódica, bem-sucedida. Um bom exemplo de que para ser bom profissional é preciso esquecer que a vida também é feita de emoção.
Por fim, Samantha. Make love not war é literalmente o seu lema.
Com o tempo descobri que Carry é uma farsa. Das quatro mulheres, ela é a única personagem absolutamente incoerente. No desespero de encontrar o “homem da sua vida” (que lá pelas tantas aparece), ela não percebe que perpetua os padrões da “mulherzinha”. Entre Aidan e Mr. Big, ela não tem dúvidas: Mr. Big, o estereótipo do solteirão convicto.
Carry deseja o que tanto rejeita, porque como uma boa Polyanna, ela acha que pode mudar o amado. Tira onda do amor romântico ao fazer piada de Aidan que ajoelhado pede sua mão em casamento, mas não hesita em dizer sim ao pedido de Big, tão clichê quanto o de Aidan, mesmo depois de ser por ele abandonada pela enésima vez. É preciso ter uma auto-estima muito baixa para continuar investindo 10 anos da vida em um cara como Big, mas tem gente que ainda rima amor com dor e tem um apego inexplicável à infelicidade.
Mas o filme tem algo que continua muito positivo, que na minha singela opinião, é o melhor. Sex and the city é mais do que histórias de balzaquianas em busca da felicidade amorosa. Sex and the city é sobre a relação de amor que liga quatro mulheres, sobre a amizade, que está acima de todos os clichês.
Valeu a pena ver uma Carry emocionalmente ferrada levantar numa noite fria e correr para abraçar uma amiga triste e solitária do outro lado da cidade; ou ver três amigas transformando uma fracassada viagem de lua-de-mel em momentos de solidariedade e espera paciente e silenciosa; ou ainda, constatar que apesar das crises, maridos, filhos, os amigos sempre terão o espaço sagrado que merecem em nossas vidas.

Ainda Machado


Diferente do último texto (xenofóbico) publicado neste blogue acerca de Machado de Assis, de quem esta humilde pessoa é fã incondicional (para desespero e prováveis surtos psicóticos de alguns), trago hoje uma resenha de Milton Hatoum, publicada na EntreLivros.

Machado para o jovem leitor

O texto inaugural desta coluna na EntreLivros intitula-se “A parasita azul e um professor cassado”. Nessa crônica, escrevi: “Dois acasos foram decisivos na minha juventude: o primeiro me conduziu à obra de Machado de Assis; o segundo, a uma biblioteca vasta e sombria, escondida numa sala subterrânea”.
Mais de dois anos depois, volto aos contos de Machado para dialogar com os professores.
Uma das questões sobre o ensino de literatura brasileira para jovens estudantes (da primeira à terceira série) diz respeito aos critérios da seleção bibliográfica. Infelizmente, prevalece a idéia de que os alunos não têm condições de ler textos complexos. Um texto complexo não é necessariamente pesado, chato, algo que se lê com extrema dificuldade. Para um jovem do nosso tempo, não deve ser fácil nem prazeroso ler um romance de Coelho Neto ou A bagaceira, de José Américo de Almeida. Esses, sim, são textos pesados, que carregam na ênfase e no vocabulário precioso. Confesso que, na minha juventude, penei para ler esses autores. E quando li dois romances extraordinários de prosadores nordestinos – O quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas secas, de Graciliano Ramos – o romance de José Américo tornou-se, por contraste, ainda mais enfadonho.
Mesmo Os sertões e O Ateneu – livros fundamentais da nossa literatura – são difíceis de ser assimilados por um jovem do ensino médio.
Passei por essa provação como se fosse uma penitência. De fato, minha leitura de trechos da obra-prima de Euclides da Cunha foi conseqüência de uma punição coletiva, um castigo imposto por um professor que não descobriu o culpado de uma infração grave, cometida no colégio onde eu estudava. Nessa mesma época, ganhei as obras completas de Machado de Assis e li o conto “A parasita azul”. Depois li os outros contos do volume Histórias da meia-noite. Gostava desse título, que me remetia a histórias de suspense, horror e mistério. Havia algum mistério e suspense nos contos, mas não da maneira que eu esperava. Lembro que os li com prazer, e me perguntei por que um dos professores de português nos obrigava a ler Coelho Neto e José de Alencar e não Machado de Assis. Por que Iracema e não Dom Casmurro? E, nesse caso, por que não ler ambos?

II

Havia – como ainda há – imposições curriculares, mas penso que isso é um equívoco, pois o leitor jovem e inexperiente pode odiar para sempre a literatura brasileira, pode pensar que só existem textos ásperos, cuja leitura é sinônimo de suplício. É inadmissível que tantos jovens desperdicem a oportunidade de ler “A causa secreta”, “O enfermeiro”, “Missa do galo”, “O espelho”, “Uns braços”, “Um homem célebre”, “Terpsícore”, “A cartomante”, “Evolução” e outros contos do Bruxo, um verdadeiro mestre da narrativa breve, que se situa no mesmo patamar de excelência de seus contemporâneos europeus.
É muito provável que esses contos sejam lidos e comentados sem enfado. Porque uma leitura enfadonha e arrastada é, para o leitor jovem – e talvez para todo leitor –, um ato de flagelação do espírito. Claro que há textos intricados e nada tediosos, que são imprescindíveis para quem gosta de literatura. Quem não se deleita com a leitura dos romances Grande sertão: veredas e O século das luzes? São livros para quem já passou por uma experiência de leitura e não se sente inibido diante de obras cuja linguagem enfatiza um notável trabalho de estilização. Mas um iniciante certamente encontrará dificuldade para ler esses romances.
Nos contos de Machado ocorre algo diferente. Com um estilo muito elaborado, mas pouco ou quase nada rebuscado, o narrador machadiano explora em poucas páginas a complexidade das relações humanas. Sua linguagem é densa sem ser retórica, e os contos são exemplos perfeitos de complexidade concentrada num texto conciso e exato.
Um exemplo é “A causa secreta”, publicado em 1885 na Gazeta de Notícias e incluído em Várias histórias (1895). Eis aí uma aula sobre o conto enquanto gênero literário. Logo no primeiro parágrafo, depois de apresentar as três principais personagens numa cena que poderia ser filmada, o narrador escreve: “Tempo é de contar essa história sem rebuço”. Ou seja, é tempo de ir diretamente ao miolo da questão. E a questão é, na verdade, um feixe de questões machadianas: o adultério, as relações sociais, a violência, a loucura, o amor, a dor moral. Em menos de 15 páginas, o narrador constrói uma das personagens mais terríveis da nossa literatura: um homem (Fortunato) que se ocupava “nas horas vagas em envenenar e rasgar gatos e cães”.
Fortunato revela o lado mais obscuro e violento do ser humano. Já é clássica a cena em que ele mutila e queima um rato “com um sorriso único” no rosto, “uma serenidade radiosa da fisionomia” ou “um vasto prazer, quieto e profundo”. No fim, a dor física dos animais é substituída pela dor moral de Garcia, quando este tentar beijar pela segunda vez Maria Luísa, já morta. Fortunato, o esposo e agora viúvo, “saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral, que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”.

III

Os professores que comentam esse conto em sala de aula sabem que os estudantes se interessam pelo texto. A leitura no cabresto é inconseqüente, pois o maior estímulo para um jovem reside no prazer da leitura. Há, sem dúvida, outros grandes autores cuja obra é estimulante. Os contos de Insônia e Laços de família são apenas dois exemplos, entre muitos da literatura brasileira. Mas os de Machado não podem ser esquecidos, porque estão no centro da nossa modernidade e irradiam uma das visões mais críticas e inteligentes sobre o ser humano e a sociedade brasileira.

segunda-feira, junho 09, 2008

(II)

“Tudo é inútil. Estar aqui deitada e entregue a um estranho também é inútil, uma perda de tempo. O que quero descobrir que ainda não sei? Não há nada que já não saiba há um milhão de anos, um milhão de vidas. É o peso do tempo que carrego sobre os ombros. O peso de ter me visto de fora, ver em mim o que toda a gente vê: o Nada, um imenso tédio, a constatação de que não sirvo para nada, fracassei. Fracassei em não ambicionar dinheiro, objetos, títulos. Fracassei por não ter par, por mais vil que fosse. Ver em mim o que os outros vêem é uma experiência de morte. Mas como, se já nascemos mortos?
Eu queria fugir só para não ser quem sou. Ir para onde não me conhecem, para não mais encontrar os rostos conhecidos que sempre expressam nas suas feições a incompreensão diante da minha dor, ma eu nunca sairei daqui. Então, eu sonho em ser outra e isso é mais verdadeiro do que qualquer realidade.
Já faz algum tempo que me despedi da vida, porque descobri que viver e morrer não são tão diferentes. Há tantos que vivem, mas já estão mortos! E eu não enxergo nessa gente senão desprezo. Quem sente demais encerra em si a impossibilidade de tocar o outro e é esta solidão que torna tudo inútil”.

Festa Literária de Paraty



Bem-vindo à FLIP
20082 a 6 de julho



Programação
A partir de hoje a programação completa da Festa Literária Internacional de Paraty, com biografias dos autores convidados e resumo das mesas está disponível no site da FLIP. São 41 autores convidados vindos da América do Norte, da Europa, da África e de vários países da América do Sul, além dos 22 autores nacionais.


Homenagem a Machado
Abrindo a FLIP, Roberto Schwarz, um dos mais destacados intérpretes da obra de Machado, discutirá o livro Dom Casmurro, por ele considerado o "romance possivelmente mais refinado e composto da literatura brasileira". Em outra mesa, "Papéis Avulsos", Flora Süssekind, Luiz Fernando Carvalho e Sergio Paulo Rouanet falam sobre suas diferentes experiências com a obra machadiana.
A homenagem a Machado se estende também pela programação do FLIP ETC. com adaptações da obra do autor para o cinema, teatro, e uma exposição sobre o Rio de Janeiro do fim do século XIX.


Show de Abertura
Luiz Melodia é o convidado desta sexta edição para o show de abertura, que acontecerá na quarta-feira, dia 2/7.


Ingressos
Os ingressos estarão à venda a partir do dia 10/6. A compra pode ser feita pela internet, por telefone, ou em pontos de venda de Ingresso Rápido. Para detalhes clique aqui.

- Tenda dos Autores (mesas e conferência de abertura): R$ 25 cada
- Show de abertura na Tenda do Telão: R$ 25
- Tenda do Telão (transmissão das mesas e da conferência de abertura): R$ 8


Patronos
Estão abertas as inscrições para Patronos e Amigos FLIP. Para cada categoria há uma série de benefícios.
Conheça detalhes acessando o site da FLIP.

quarta-feira, junho 04, 2008

Davi X Golias

Hoje pela manhã, ao chegar ao trabalho, fiz o de sempre. Acessei o e-mail da empresa para verificar se já havia algum texto para revisar. Nenhum, mas tinha uma mensagem da minha chefe. Ela também escreve e sabendo que amo o Machado de Assis de paixão, enviou-me esta carta-bomba para atiçar meus ânimos.
Depois de ler e responder, pensei que seria interessante fazer um post sobre o assunto.
Bom, aí está.

Ah, o texto é do Daniel Lopes e pode ser encontrado no Digestivo Cultural.


Não gostar de Machado

Não gostar de Machado de Assis, no Brasil, é arriscado. Quero dizer, se você sair por aí dizendo que não gosta. Mesmo se lhe foi pedida uma opinião. Você não corre o risco de ser surrado (não sei se essa garantia serve caso você esteja nos corredores da ABL), mas com certeza receberá aquele olhar de piedade que apenas os seres superiores sabem produzir.
Você é criticado por não gostar de Machado mesmo por quem nunca o leu, ou, ainda pior, por quem o leu e também não gostou, mas ainda assim... patrimônio nacional é patrimônio nacional. Mexer com Machado é quase como mexer com a Amazônia. Quase, nada, é pior, muito pior. Se Al Gore quer saber o que é realmente bom pra tosse, que experimente, em vez de dizer que a Amazônia é do mundo, declarar que Machado é "um escritor de segunda", como já opinou Millôr Fernandes.
Há pouco tempo, um leitor do Digestivo, comentando no meu perfil, se revoltou contra o fato de eu ter escrito que "ainda no colégio, nunca consegui gostar de Machado de Assis, e apenas quando já havia entrado na universidade pude compreender que não perdera nada". Também concorreu para aumentar a indignação do leitor o fato de eu ocupar espaço no Digestivo com textos sobre livros de autores estrangeiros, insignificâncias como J. M. Coetzee e Nathaniel Hawthorne: "Não gostar do Machado e gostar de escritores estrangeiros bem traduz esta juventude de hoje influenciada pela cultura americana e outras, que entram nos nossos ouvidos diariamente pela mídia e também por livros".
O autor da mensagem assinou como Delton. Eu lhe enviei uma resposta, mas esta voltou, acusando e-mail inválido.
Seja como for, assim que li seu comentário lembrei de algo que me ocorreu logo que entrei no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Foi em 2003. Certo dia, entre uma aula e outra, estou a folhear no corredor um livro de George Orwell, quando um rapaz mais ou menos da minha idade pára sua caminhada simplesmente para dizer que eu sou um alienado. Eu levanto os olhos e o vejo erguendo um livro de José de Alencar. "Já leu isso?", perguntou. Sou um sujeito muito tímido, não gosto de discutir nem com gente inteligente. Disse apenas que "já, é um livro muito ruim". Nem vi direito o título, mas se era José de Alencar só podia ser algo chato, e eu queria me livrar do rapaz o mais rápido possível. Ele resmungou e foi embora.
Hoje penso que ele devia ser um desses membros do movimento estudantil que gastam mais tempo se movimentando do que estudando. Não sei se ele viu que o livro do Orwell era em inglês, pois eu estava começando a estudar inglês. Acho que não viu. Se tivesse visto, a bronca poderia ter sido maior. Com certeza, ele não sabia da história de vida de George Orwell. Tomara que, de 2003 para cá, a militância do jovem fã de Alencar em um partido político ou outro lhe tenha deixado algum tempo de sobra para aprender sobre a participação de Orwell na Guerra Civil espanhola, do lado dos republicanos e contra os fascistas ― experiência que gerou o livro Homage to Catalonia.

Nacionalismo literário

"Triste do povo que precisa de heróis". O que diria então Bertold Brecht da carolice de uma intelectualidade nacional que precisa de heróis para se sustentar?
Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira.
É verdade que Machado de Assis não é tão ruim quanto José de Alencar. Se, conforme disse em recente entrevista ao jornal Rascunho o professor e escritor sergipano Antonio Carlos Viana, "dar Machado de Assis para um menino de 15 anos é querer que ele não goste de literatura, nunca mais", o que dizer do trauma gerado em um jovem que é forçado a ler coisas como Senhora? Viana diz ter acabado de escrever um livro em que indica 45 autores indispensáveis para que alunos do segundo grau tomem gosto pela leitura ― entre os quais, Franz Kafka e John Fante. Estou com ele.
Aliás, por que mesmo nossas crianças e jovens são torturados com obras monstruosas da literatura brasileira e portuguesa, ao mesmo tempo em que são privados dos grandes clássicos da literatura universal? É claro que existem excelentes obras brasileiras ― é difícil, por exemplo, imaginar um estudante não se divertindo e se comovendo com Memórias de um sargento de milícias ou Triste fim de Policarpo Quaresma. Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?
Mas enquanto a função principal dos nossos professores de literatura for fazer os alunos detestarem a literatura, o tipo de produto literário nacional que os estudantes irão comprar em sua vida adulta será, no máximo, as obras completas de Paulo Coelho, empilhadas estrategicamente na estante da sala, unicamente para fins de enfeite.
De cada 100 jovens que entram na universidade (tendo feito belos pontos nas provas de literatura), quantos se tornarão adultos apreciadores da literatura relevante, nacional e internacional? Sejamos benevolentes, suponhamos que esse número seja de 10. Desses 10, quantos devem à escola essa dádiva? 1. Podem sair pesquisando por aí. Os outros 9 se comportaram de forma rebelde na juventude, fingindo que liam poesia parnasiana, apenas para fazer a média na prova, enquanto que, na surdina, encontravam em sebos e bibliotecas o que realmente lhes dava prazer e o que de fato os transformou em leitores maduros ― alguns, até, apreciadores de Machado de Assis.
E para constar. O que respondi ao leitor Delton no e-mail que não foi entregue, em resumo, foi que
― é verdade, não gosto de Machado de Assis. E não é porque nunca o li, ou não entendi as estórias. Sim, li algumas e as compreendi, mesmo as que abandonei pela metade. O que não quer dizer que no futuro, em novas leituras, não possa vir a gostar dele. Mas não sinto a menor obrigação de fazê-lo;
― é uma besteira achar que se alguém não gosta de Machado ou qualquer outro escritor é porque tem que crescer mais "literaturalmente". Claro, eu tenho muito que evoluir, e espero evoluir sempre. Mas quem garante que, lá pelos 140 anos, tendo evoluído continuamente, ainda assim eu não vá gostar de Machado? Ou será que se o sujeito tem 100 anos e não gosta de Machado é porque ele não evoluiu o suficiente? E quem gosta de Machado aos 15 anos já atingiu o ápice de sua vida "literatural"? Que bobagem, não é mesmo?
― eu lhe asseguro que é muito bom ser influenciado por culturas de fora, dos EUA, da Europa, Oriente, África, Marte... Tão bom quanto ser influenciado pela cultura local. Acredite, há porcaria escrita em todo lugar, e em todo lugar há coisa boa à nossa espera. Pergunte a Machado, que era fã de carteirinha de Montaigne e Laurence Sterne.


Chefe, o texto é muito bom. Bem escrito e tal...
Concordo com algumas coisas, discordo de outras. Bom mesmo é chegar numa idade em que essas farpas já não são combustíveis para o meu espírito. Bom mesmo é ler e dar gargalhadas por ver pessoas chovendo no molhado ou, num português bem chulo que não deixa margem a dúvidas, cagando regras.
Em parte, eu entendo a crítica porque sou sócia do pequeno grupo que odeia Joyce. Tadinho, não é odiar. Eu não o odeio, mas eu acho o Ulisses um porre, chato pra chuchu, de lascar. Outro escritor que não me causa sequer cócegas é o Jorge Amado (salvo O gato Malhado e a andorinha Sinhá, Capitães de areia e A morte de Quincas...). Eu acho a literatura dele morna, repetitiva. A Zélia sempre me pareceu melhor, não sei, eu acho que ela tratou de temáticas mais interessantes. Mas, contudo, entretanto, todavia, por mais que eu pense isso – e eu penso – respeito e não nego a importância desses autores para a literatura.
Eu não acho Freud essa Brastemp toda, comparado a outros da área, mas eu seria louca em negar que tudo começou com ele. Se gosto mais de Jung do que de Freud, a culpa é do próprio Freud, sem seus estudos, Jung não poderia ter ido além.

“Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira”.

Afirmações desse tipo não tornam o autor do texto diferente daqueles que critica. O fato de ele não ter prazer na leitura Machadiana não lhe dá o direito de julgar que outros o tenham.

PS: O autor não pode mesmo descriminar, uma vez que não existe crime. O máximo que ele pode é não discriminar.

Bem, isso é uma coisa.
Outra coisa é propor Gogol, Tolstoi, Kafka (!!), e acrescento, Proust, Tchecov ao invés de Machado. Pirou? Só porque são estrangeiros? Essa é a única diferença que consigo identificar, em minha modesta opinião. Esses autores são tão “difíceis” de deglutir quanto um Machado! Pelo amor dos meus filhinhos.
Que existe um estrangeirismo exacerbado e mal camuflado, existe. O que é uma bobagem. Apenas diga: prefiro literatura estrangeira à brasileira. É mais simples, direto e menos falso.
O currículo escolar brasileiro precisa ser revisto. E não é de hoje!
Acho realmente muito difícil que estudantes de quinta série apreciem Memórias Póstumas. Se já era difícil para a minha geração, imagine para essa que tem todas as facilidades visuais das novas tecnologias. Essa afirmação também se aplica aos estrangeiros que o autor tanto ufana. Imagina a geração videoclip lendo A metamorfose, do Kafka ou O estrangeiro, do Camus? Ia ter suicídio coletivo, minha filha!
O que pode ser bem aproveitado de Machado para essa garotada são os contos e seus dois romances, Helena (romântico) e Iaiá Garcia (de transição). Os romances realistas precisam de uma apresentação, um flerte.
Outra coisa ainda:

“Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?”.

Eu não acredito que estou respondendo a isso, chefe! Kkkkkkkkk
Essa pessoa não é burra, né!? Pode ser reacionária ou sofrer de brasofobia. Brasofobia?
Sim, cara pessoa, é para valorizar o que é nosso! A grade curricular BRASILEIRA pretende que nós BRASILEIROS conheçamos os expoentes da nossa literatura que é BRASILEIRA. Elementary, my dear Watson!
Eu duvido que na Rússia, as escolas incluam na grade curricular de literatura russa um romance francês ou brasileiro. O mesmo vale para a França, Estados Unidos, etc.
Literatura comparada fica para a universidade. Lá, as pessoas matarão a vontade insana de ler Moby Dick, essa obra imprescindível para a formação literária de um ser superior.
E outra coisa: A AMAZÔNIA É PATRIMÔNIO NACIONAL! DO MUNDO É O CARALHO!

Beijo,
Lu

quarta-feira, maio 28, 2008

Descobri assim por acaso e me apaixonei.



Let it go - Fauxliage

I'll begin to let you go
When the sunlight melts the snow
Every night i drive away from you
I see the mountains i have to move

And you there
You don't care
I wonder if you

Wanted me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you
And you sure can't change me

It's hard to hell tonight to sleep
To close my eyes would admitting my defeat

And you there
You don't care
I wonder if

Wanted me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you
And you sure can't change me

Are you
Wanting me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you

And you there
You don't care
I wonder if

You wanted me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you
Wanted me like i wanted you

It's a lonely truth
That i can't change you
And you sure can't change me

(I)

“Não sei bem explicar o motivo, mas este é o processo: nos momentos de crise, meus movimentos são cíclicos. Primeiro me afasto de todos, busco o silêncio e a solidão. Sem isso sou incapaz de me ouvir. Depois me jogo nos livros. Não, não são aqueles que compõem a famosa lista os livros que preciso ler. São os mesmos de outrora. Releituras. É mais ou menos como visitar parentes, entende? Nunca é aleatório. Também não é leitura de entretenimento para burlar a angústia ou distrair os pensamentos. É sempre uma inquieta Clarice, um desassossegado Pessoa, um decadente Schoppenhauer. São palavras que habitam as profundezas. Simultaneamente escolho a trilha sonora. Enquanto leio, escuto Bach. É como voltar a um local especial e muito belo. Os afrescos da Sistina. Essa é a guerra. Enquanto desço aos meus porões, Bach trabalha secretamente rumo a uma ascese. Quem vence? Se ainda estou aqui, está claro que Bach tem se saído bem. Até agora ele foi sempre vencedor. Contudo, isso nunca me impediu, enquanto tateava o porão escuro, de colecionar cicatrizes. O que não é privilégio meu. As ostras estão aí para provar.”

terça-feira, maio 20, 2008

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vida, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da consciência.


PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. Cia. das Letras, 2006.

terça-feira, maio 13, 2008

Homem pode, mulher não!

Citando Eco

Eu sou suspeita para falar de Umberto Eco.
Simplesmente adoro a maneira como escreve; sou apaixonada pelo seu trabalho como crítico; acho seus textos teóricos muito leves e sem aquela carga academicista; aprecio a sua "frouxidão", sua largueza italiana e principalmente, admiro sua capacidade de interpretar o mundo.
O Caderno Mais da Folha de São Paulo publicou a matéria intitulada "Professor Aloprado". Por ser extensa, compartilho com vocês as partes mais interessantes.


Admito que na vida existem felicidades que duram dez segundos ou meia hora, como quando nasceu meu primeiro filho - naquele instante, eu estava feliz. Mas são momentos muito breves. Alguém que é feliz a vida toda é um cretino. Por isso, antes de ser feliz, prefiro ser inquieto.

Algo de muito bonito que ocorre ao envelhecermos é que nos recordamos de uma multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas (...) Por isso, vou ao encontro de minha velhice com muito otimismo, porque, quanto mais envelheço, mais recordações tenho de minha infância.

Minha relação com os alunos sempre foi uma relação de aprendizagem, porque, ensinando, eu também aprendia (...) Uma relação erótica, porque a relação de um professor com um aluno é como a relação de um ator com seu público: quando você aparece em cena, é como se o estivesse fazendo pela primeira vez, e você tem a sensação de que, se não tiver conquistado o público nos primeiros cinco minutos, o terá perdido. É isso o que eu chamo de uma relação erótica, no sentido platônico do termo. Além disso, há uma relação canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua experiência. Há pessoas infelizes que passam os primeiros anos de sua vida com pessoas mais jovens, para poder dominá-las, e, quando envelhecem, estão com pessoas mais velhas. Comigo aconteceu o contrário: quando eu era jovem, estava com pessoas mais velhas que eu, para aprender, e agora, tendo alunos, estou com jovens, o que é uma maneira de manter-se jovem. É uma relação de canibalismo; comemos um ao outro. Por isso não deixei de ter relação com a universidade, apesar de ter me aposentado.

Cinqüenta por cento dos italianos votam em Silvio Berlusconi, o que é indicativo de uma profunda imaturidade política. É um momento extremamente triste, em que os elementos de esperança e entusiasmo são muito poucos.

Estamos em velocidade tão grande que não existe nenhuma bibliografia científica americana que cite livros de mais de cinco anos atrás. O que foi escrito antes já não conta, e isso é uma perda também quanto à relação com o passado.

Essa velocidade vai provocar a perda de memória. E isso já acontece com as gerações jovens, que já não recordam nem quem foram Franco ou Mussolini! A abundância de informações sobre o presente não lhe permite refletir sobre o passado. Quando eu era criança, chegavam à livraria talvez três livros novos por mês; hoje chegam mil. E você já não sabe que livro importante foi publicado há seis meses. Isso também é uma perda de memória. A abundância de informações sobre o presente é uma perda, e não um ganho.

Esse é um de nossos problemas contemporâneos. A abundância de informação irrelevante, a dificuldade em selecioná-la e a perda de memória do passado -e não digo nem sequer da memória histórica. A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe alma; você é um animal. Se você bate a cabeça em algum lugar e perde a memória, converte-se num vegetal. Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma.Vamos à internet para tomar conhecimento das notícias mais importantes. A informação dos jornais será cada vez mais irrelevante, mais diversão que informação. Já não nos dizem o que decidiu o governo francês, mas nos dão quatro páginas de fofocas sobre Carla Bruni e Sarkozy. Os jornais se parecem cada vez mais com as revistas que havia para ler na barbearia ou na sala de espera do dentista.

Hoje, emergem muitas posições anticlericais, e muitas pessoas se declaram atéias. Ninguém estava pensando nisso antes. Subiu ao trono um papa que pensa como um papa do século 19.