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segunda-feira, março 23, 2009

Cópia2
Natal & Copos, Carlos Loff Fonseca

Havia um cavalo preso em seu peito. Selvagem e indócil. E cavalos selvagens não combinam com o confinamento, com os espaços restritos e a opressão. Sua agressividade não era à toa; bastava uma chance, a menor delas, para coicear tudo que se aproximava e parecia subtrair o pouco que já tinha.
Era um cristal. Estava a um triz de se quebrar além de tudo que estava ao seu redor. Não raramente associavam a fragilidade ao cristal. Onde veem fragilidade, eu vejo pureza. Deve ser esta a razão de não haver pureza nos dias de hoje. Tudo que é puro não dura, desmancha, estilhaça: a pureza é frágil e não suporta tantos muros.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Um mini impressionista

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As banhistas, Paul Cézanne


Era o nosso último verão juntas. Assim que ele terminasse, iríamos cada uma em busca das próprias aspirações, enfrentaríamos, sozinhas, os nossos medos, sem ter umas as outras para apoiar. Afinal, chega uma hora na vida em que as pernas precisam dar conta do percurso que escolhemos trilhar.
Durante todo o tempo em que ficamos juntas, jamais ousamos falar na despedida, na hora do adeus. Nada havia sido combinado, mas agíamos como se veladamente soubéssemos da existência de um código secreto: se não falássemos, não doeria.
Até que Giulia surgiu com a idéia de um quadro. Havia conhecido no hotel, um jovem pintor francês – Paul – de muito talento. Ela o convenceu a nos retratar. Não imagino como, uma vez que ele falava muito pouco e estava sempre muito isolado.
Fomos todas as cinco ao encontro de Paul numa colina. Chegamos lá e ele não estava. Esperamos minutos, horas e nem sinal do pintor. Começamos a ficar um pouco irritadas com a demora; depois completamente desoladas, resolvemos esquecer a questão.
Apesar de desprevenidas, fomos nadar no lago. Já não nos importávamos se alguém aparecesse. Se isso acontecesse, seria uma lembrança alegre e despojada daquele nosso verão.
Muitos anos depois, quase vinte, nos reencontramos em Paris. Aproveitamos a tarde para conhecer a galeria de um amigo meu.
Passeando os olhos pelos muitos quadros, ouvimos o gritinho histérico de Giulia. Paramos apatetadas diante daquelas mulheres nuas numa colina. Aquela colina!
Lia-se embaixo da tela: As banhistas, Paul Cézanne.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Um mini para o João

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Tedeschi


Quando o cheiro das alfazemas do campo levantava, tudo em mim alegrava-se.
Eu já sabia que aquele cheiro traria consigo a sombra de um par de asas gigantescas riscando o céu e anunciando as delícias da manhã, afinal todos os anos voltava glorioso em seus matizes brilhantes e aveludados.
O vento crispava-se todo de prazer por tê-lo nas alturas, veloz, rasgando o éter; as flores ouriçavam-se em néctar para receber a visita que lhes renovaria a vida tornando-as prenhes de cores.
Vaidosamente, ele sobrevoava as colinas e por fim pousava no meu telhado, confirmando sua escolha, renovando os laços que se estreitavam a cada ano...
Antes de conhecer a brisa e o abrigo de suas asas, as alfazemas pareciam-me inodoras, pequeninas em sua discrição. Mas eis que com sua chegada, pôs em minhas mãos a esperança com sabor de baunilha e engendrou em mim o desejo de vida, de uma vida menos ordinária.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Mini

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http://lefumoir.com/cafe.html


Aqui estou eu, sentado numa praça, tomando um café e fingindo serenidade, mas minhas mãos estão trêmulas e geladas. Ondas de calor e lufadas de ar frio revezam-se em mim como se quisessem espantar todas as indagações que pululam na minha mente.

"Como surgirá? O que estará vestindo? Serão ainda seus cabelos bichos ferozes a seduzir?"

Combinamos não nos descrevermos ou nos identificarmos. Somente trocamos número de telefone caso não sejamos mais capazes de nos reconhecermos, afinal a última vez que a vi foi há 30 anos, mas uma beleza como a dela, o tempo não apaga.

Lembro-me como era bela. Não falo dessa beleza plastificada, das passarelas, com prazo de validade, perecível.
Há mulheres que causam dor e cegueira, são tão escancaradamente belas que chegam a agredir os comuns, parecem gritar ao mundo, em sons estridentes, seus desenhos e contornos.

Hannah era bela de outra forma.
Sua beleza não desfilava por aí, nem se revelava a toda hora. Para vê-la era preciso um olhar atento, quase arqueológico. Por baixo daquele invólucro agradável havia uma outra camada a escandir.

Descobri sua beleza ao longo de três breves anos.

Era cinicamente bela quando estávamos rodeados de pessoas, mas era impossível um comentário, então ela arqueava a sobrancelha direita, ensaiava um sorriso que não se completava e tudo estava dito.

Como era linda quando se arrumava toda para uma ocasião especial! E a maneira como sentava-se? E quando folheava as páginas de um livro?
Existia algo etéreo quando conversava; se o tema era de seu interesse então, seus olhos faiscavam, abria um sorriso largo, gesticulava muito, assumia uma postura avantajada.

Mas ela era bonita mesmo quando durante uma única semana em todo o mês inventava que precisava fazer exercícios físicos. Acordava cedo e ia correr. Voltava atrasada e faminta. Tomava um banho rápido, mas tinha tempo para sentar-se à mesa, servir-se de capuccino e devorar um pão inteiro com requeijão e mortadela!
Depois vestia seus jeans e saía apressada e feliz, acreditando-se mais magra.

Aos domingos, costumava ela mesma fazer a faxina da casa. Algumas vezes cheguei intencionalmente sem aviso e flagrei-a descalça, de shorts, camiseta velha e num coque pra lá de desalinhado preso por um lápis. Ela olhava-me fingindo desaprovação, balançava a cabeça negativamente e dizia toda mandona: “veio atrapalhar ou ajudar? Se veio atrapalhar, se manda, mas se ficar com a segunda alternativa, na cozinha tem balde e vassoura te esperando”. Virava-se de uma só vez e quando eu voltava da cozinha, completamente munido, ela piscava o olho e gargalhava.
Ainda hoje escuto aquele som, a música...

Olhei para o relógio, meia hora se passara e ninguém se aproximou. Pensei em telefonar, mas desisti.
Olhei para os lados, reparei nas mesas e não vi ninguém que pudesse se parecer com ela.

Pedi outro café, começou a chover e resolvi entrar e sentar no balcão.
Ao lado, mas sentada de costas para mim, uma mulher de cabelos muito curtos – “não era ela, não com esses cabelos” – parecia tentar convencer a garçonete a trazer-lhe algo fora do cardápio. Para me distrair da longa espera, comecei a prestar atenção na conversa de ambas. A moça não brigava, não havia bate-boca, como uma criança que quer ser atendida, ela dizia com olhos pidões: “não quero croissant de ervas finas, para mim, o único acompanhamento que vai bem com capuccino é pão com mortadela!”

- Pão com mortadela?!?

A estranha virou-se, sorriu cinicamente e arqueou a sobrancelha direita.

Tudo estava dito.

terça-feira, julho 12, 2005

O Banquete

Nas horas desertas de uma sala escura, vislumbra-se apenas o halo de seu rosto. As cortinas pesadas ocultam ainda mais as formas da noite.
Perdido em pensamentos vãos, as órbitas de seus olhos saltam e iluminam-se. Contraste com a escuridão densa e opaca. Podia-se tocar o breu da noite, sentir sua espessa camada negra, fria e gelatinosa.
Tateia distraidamente os objetos sobre a mesa com a precisão de quem acerta as horas em seus milésimos de segundo.
Sua mão toca a espátula pontiaguda e, então, começa a abrir, uma por uma, as cartas guardadas no fundo da gaveta. Com destreza, enfia a ponta no canto do envelope e sai rasgando o papel firmemente num só movimento.


Seu coração ficou pesado como se a poeira do tempo tivesse se depositado nele, formando uma crosta tão dura que lhe impedia de respirar livremente.
Por muitos anos sua covardia adiou a leitura das cartas. Temia as palavras mais do que o próprio abandono ao qual se lançou. Duplo abandono.
Vivia de forma miserável, se arrastando pela casa como um pobre diabo, tinha aquela cara sempre macerada revestida de uma palidez angustiante. Seu andar era oblíquo, típico de quem se esconde de si mesmo.


Decidido a mudar, ele espera a noite chegar para encobrir-lhe as fraquezas. Tira as cartas do fundo da gaveta. Abre-as pausadamente como se prestasse um culto às palavras reclusas.
Olha aquele monte de papel e vai até a cozinha. Traz uma vela, uma bela garrafa de cabernet e um prato – a mais fina porcelana chinesa. Pica as cartas em pequenos bilhetes e serve-se deles.
Come cada pedacinho com a solenidade pedida nos banquetes e depois vai dormir.
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quinta-feira, junho 16, 2005

Bolor

Da janela, ela observa o casal de velhos. Eles passeiam religiosamente todas as tardes, braços dados, passo miúdo, nenhuma pressa.
Sentam-se no banco e ficam apenas observando a vida e os transeuntes. Não se falam. Vez ou outra, olham-se numa sincronia de cabeças para logo mais voltarem a contemplar simplesmente.
Meia hora depois, levantam-se, um apoiando o outro e rumam para casa.

Da primeira vez que os viu, pensou maldosamente: “sob o sol, vão tirar o cheiro de mofo.”
Na segunda vez, destilando toda sua amargura, pensou que a falta de diálogo que ela observava devia-se ao peso dos anos e do desgaste que era ter sempre a mesma pessoa ao lado. Nenhuma novidade, nenhum fogo, apenas a rotina.
Mais tarde, num misto de piedade e repulsa, imaginou que o passeio deveria ser para trazer um pouco de cor e luz para uma relação já tão esmaecida pelo tempo, onde o próprio apartamento denunciaria o quanto de pó ele guardava.

Ela já os acompanha há quatro meses, e hoje, seu olhar é outro.
Tem pena de si mesma e uma certa inveja do casal, porque no fundo sabe que uma relação requer cumplicidade e silêncio; que o tempo está a nosso favor quando temos a disponibilidade e a generosidade de aceitar o amor em todas as suas fases até o serenar das paixões; quando somos capazes de construir paredes ornadas com quadros e memórias com lembranças.
“A gente esquece que o tempo também pode ser um aliado.”

quarta-feira, junho 08, 2005

Sweet Valentine

Enfeitou a casa toda com flores, arrumou a mesa de maneira impecável, cuidou pessoalmente do cardápio, da bebida, colocou tolhas novas no banheiro, na cama, o lençol de linho branco.
Não esqueceu um único detalhe, esmerou-se ao máximo e tudo para quê? Se seus cabelos e roupas não resistiram ao primeiro beijo?

quarta-feira, abril 13, 2005

Hotel Room

Sentiu a respiração pesada e alguma asfixia.

O que a incomodava era aquele cheiro de coisa nova, o quarto friamente arrumado, lençóis sem rugas, móveis nus, objetos intactos.

Mesmo sem muito ânimo, fazia a faxina às avessas: puxava os lençóis sem cuidado; jogava a bolsa, pastas, papéis sobre os móveis; ligava a TV; pendurava roupas no encosto da cadeira.

Aquela desordem forçada lhe trazia paz e conferia alguma identidade ao recinto frio e impessoal. Somente esta ilusão de transformar o desconhecido em um lugar familiar lhe devolveria o sono.
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Hotel Room, Hopper.

quarta-feira, março 23, 2005

Cenas Urbanas

Sentado no parapeito da janela, ele contempla o mundo minúsculo lá embaixo.

Do décimo quarto andar, tudo fica tão menor, tão mais passível de solução e também tão distante.

A cidade fica intocável. As miniaturas humanas, vistas das alturas, parecem frágeis, bem mais frágeis do que o normal.

Uma mão desavisada, um passo em falso e tudo acaba-se.

“Como formigas, a multidão caminha em muitas direções, em filas indianas.
Segue o quê? A quem? Aonde vai com tamanha pressa? Por que não experimenta voar?”

Lá debaixo, daquele mundo que outrora fora pequeno, vê-se uma capa vermelha ondulando na janela.

sexta-feira, dezembro 31, 2004

Mini de Ano Novo

Fogos, luzes, vozerio, gargalhadas.
Hoje o mundo todo está barulhento e iluminado, com exceção daquele apartamento no quinto andar: luzes apagadas, silêncio, quietude.
Samuel é um homem discreto, monossilábico. Do seu apartamento emana mornidão: as luzes, a música, o som da televisão. Tudo é abafado e opaco.
Hoje, em especial, enquanto todos estão febris e velozes, Samuel medita na escuridão do seu apartamento, protegido pelo seu silêncio interno e pelas cortinas cerradas.
O estado é de catatonia.
A única coisa que vive e pulsa é a sua memória. Lá dentro, a construção tempo/espaço/imagens é elaboradíssima. Tudo está intacto – pessoas, lugares, sabores, texturas, odores.
A memória de Samuel resiste à poeira e às ranhuras. Ela é uma marca indelével que lhe resgata uma parte da vida. A outra é um cotidiano aborto.
Meia noite! Samuel ergue sua taça e balbucia: “Feliz Ano Velho”.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Mini de Natal

Todo ano era a mesma coisa.
Ela chegava com aqueles imensos olhos negros, fundos. Colava o rosto sujo no vidro, embaçando, com seu hálito, a vitrine.
De todos os brinquedos da loja, ela cismou com aquela boneca: rosto de porcelana, roupas finas, estilo século XVIII, cabelos louros e muito cacheados.
Entrava ano, saía ano, surgiam novos brinquedos, mas seus olhos pidões só enxergavam a boneca de porcelana.
Do lado de dentro, eu observava aquele romance sem palavras. Ela jamais ousou cruzar a soleira da porta, nunca ensaiou um pedido sequer. Chegava, olhava a boneca por um longo tempo.
Algumas vezes, eu trazia-lhe um lanche; ela recebia sem dizer nada, mas a expressão do seu rosto era de agradecimento. Comia, grudava de novo o rosto na vitrine e quando me dava conta, já tinha desaparecido.

***

Por um ano economizei dinheiro para comprar-lhe a tal boneca.
O Natal chegou e com ele, a garotinha.
Fiquei atenta aos seus movimentos, não podia perdê-la de vista, se não quisesse entregar-lhe o presente no próximo ano.
Pedi a uma colega para me substituir por uns instantes.
Saí e convidei a garotinha para lanchar. Ela balançou a cabeça em negativa.
Perguntei - por que não?
Pela primeira vez em quatro anos, ouvi sua voz.
- Não vão me deixar entrar.
- Vão, sim. Você entrará comigo.
Balançou novamente a cabeça:
- Todos vão ficar me olhando.
Não insisti. Notei que vestia mulambos. Eu não a constrangeria ainda mais.
Então sentamos na calçada e comemos cachorro-quente com refrigerantes.
Ela devorou o lanche como quem tem pressa, como quem tem medo de acordar de um sonho bom antes dele chegar ao fim.
Conversando, descobri que ela se chamava Dorothy. Ironia ou não, era esse o seu nome.
Levantamos. Não podia me dar ao luxo de demorar a voltar ao trabalho num período tão movimentado do ano.
Ela agradeceu muito e muitas vezes e foi se despedindo.
Pedi que esperasse um pouco.
Voltei com a caixa nas mãos embrulhada com um lindo papel de presente enfeitado com fitas vermelhas. Entreguei-lhe.
Ela ficou paralisada por uns minutos. Depois abriu o embrulho cheia de cuidados para não danificar o papel. Ela não queria rasgá-lo, queria conservar os sonhos em cada dobra que ia desfazendo.
Nunca vi alguém se iluminar tanto diante de um presente. De repente ela cresceu, suas roupas nem pareciam rotas, seu rosto ficou corado e seus olhos que eram fundos, ficaram rasos d'água.
Ela me abraçou forte, chorou aos soluços e depois me beijou.
Entrei na loja, mas fiquei observando ela indo embora, chispando, atravessando a rua feito raio ou trovão.
Vi o carro esporte se aproximando. Mal pude gritar seu nome.

Dorothy jazia no cruzamento da Alameda das Flores com Cristo Rei.

quinta-feira, agosto 19, 2004

Allegro


Não quero ter a terrível limitação de quem
vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: Quero é uma verdade inventada.

Clarice Lispector

O despertador toca. Vinte para as seis. Corro corro tomo banho corro corro, acordo as crianças corro. Faço café arrumo lancheiras organizo uniformes corro. "Pra que tanta correria, meu Deus?! Tenho a respiração ofegante e um sentimento de eterno atraso." Corro. Paro em frente ao espelho. Somente agora vejo o meu rosto e o bom dia aterrador que minhas olheiras me dão. Corro, corretivo nelas, corro. Os cabelos são de ontem assim como o meu corpo. Corro. Pedro procura a mochila, Marina quer suas fitas e eu corro. Remexo gavetas, acho as fitas amarelas que emoldurarão o rosto de Marina. Pedro grita, nem sinal de mochila. Penso comigo mesma: "há sinais de mim?" Corro freneticamente. O sangue vaza pelas veias e mancha de vermelho o batom no meu sorriso. Sorriso?

Pego a primeira roupa no armário. Ela é verde como a minha pele. Visto e me desfaço (me disfarço?). O vestido dispensa sutiã corro e mesmo correndo não gosto dos seios sob o tecido. "Os seios não são os de ontem, mas os de 50 anos." Anciãos. Anseio descanso corro corro. O ritmo é tão acelerado que envelheço dez anos em um dia. Os olhos opacos no espelho não me pertencem.

Seis e meia. Corro. Pedro chora desesperado. Quede mochila? Num átimo de lucidez lembro que a maldita ficou esquecida no carro. Apesar da vontade de gritar, acalmo Pedro com um sorriso amarelo-desbotado-envelhecido. Corro.

Sinal trânsito pais atrasados surtando nos volantes, olhares armados. Deixo os meninos, nos despedimos aos tropeços. Nos beijamos mecanicamente. Corro.

Sete e quinze e já me sinto cansada, como se fosse fim de expediente. E pensar que ele ainda nem começou!

Uma preguiça de brigar por uma vaga no estacionamento, mas eu brigo, eu corro.

Sete e quarenta. Pego o elevador, fico espremida no canto, quase sufoco com o perfume de almíscar do moço à minha frente. Ele é gorduroso, tem os ombros do paletó escuro brancos de caspa. Tenho engulhos, mal posso respirar. Cantarolo silenciosamente uma música. Ocupo o pensamento para não lembrar das caspas. Finalmente, meu andar! Corro. Respiro fundo. O novo e sempre mesmo dia... voilà.

Sete e cinqüenta. Entro e a primeira cara com a qual me deparo é a da bruxa da Rita. Solteirona, mal humorada. Ela veste uma roupa cinza e sem graça como a vidinha dela. Pensamento malicioso me toma e gargalho. Imagino a Rita vestindo calcinha de lantejoulas vermelhas sob seu tailler gris. "Nem isso te faria puta!" Ela me pergunta o que há de tão engraçado. "Nada não", respondo. Ela me detesta. Empatamos.

O chefe se aproxima com a sua doentia palidez, se põe atrás de mim, fala qualquer coisa que ele julga inteligentemente engraçado. Engraçado é como alguém com hálito de cigarros e aroma de cachaça consegue se manter empregado, penso eu. "Pobre diabo". Me pede relatórios, quase toca meu ombro, mas meu olhar é tão fuzilante que seu gesto pára no ar, busca o braço como quem quer saber das horas. Corro dele.

Oito e meia. Corro para o telefone. Ligo em casa e ninguém atende. "Porra, a Isolda ainda não chegou!" Penso no caos que será o resto do dia se ela não aparecer para trabalhar. Não, melhor nem pensar, mais tarde tento de novo.

Nove horas. Depois de entregue os relatórios, me preparo para a primeira aula do dia. A nova turma de estagiários vem para o seminário de história da arte. Corro para não me atrasar. Entro na sala e me deparo com os alunos: uma mocinha esquisita mascando chiclete, garotos com cabelos multicor, um outro que não tem mais piercings no rosto por falta de espaço e lá bem no canto da sala encontro uma moça de longas tranças e sobrancelhas indescritíveis.

É olhar para ela e lembrar de Frida Khalo. Contrariando o programa, resolvo falar da artista mexicana. Ninguém entende nada. Falo e não sinto compreensão nos olhares. Continuo mesmo assim. As horas voam inevitavelmente e meu momento de deleite escorre. Corro penso em Isolda no almoço por fazer, corro.

Onze e quarenta. De volta à minha sala, telefono novamente para casa. Isolda atende com aquela sua voz arrastada. Alívio meu. Pede desculpas pelo atraso, a condução, uma greve, alguém caiu do ônibus. Fico lívida por não conseguir falar. Ela termina a história interminável. Diz que o almoço está quase pronto e que não preciso me preocupar porque ela vai buscar os meninos. Alívio de novo.
Vou à cafeteria. Tenho quarenta minutos de almoço. Corro peço salada, mas meus olhos devoram uma lasanha à bolonhesa. Olho meu prato verde e sem graça. E se...

Devolvo. "quero aquela lasanha". O molho borbulha, ela é vermelha como o sangue que colore o corpo, atraente como o pecado da gula deve ser.

"Não voltarei ao trabalho’. Passo pelo corredor cheio de visitantes, sorrio como se também fosse uma. Entro na sala dos professores pego minha bolsa papéis pastas e saio. Olhos interrogativos espetam-me. Não dou explicações. Amanhã talvez amanhã, mas amanhã está tão distante.

Dirijo pelas ruas já tão conhecidas como se fosse uma turista em busca de um endereço. Páro no parque desamarro os sapatos piso na grama fofa e úmida. Sento. O sol aquece-me, devora-me.

Leio os trabalhos dos alunos. Alguns são péssimos e pergunto-me por que fazem o curso se detestam estar ali. Outros são ótimos entusiasmados apaixonados, têm cheiro de chuva.

Decido comprar roupas novas e coloridas. Estou cansada da sobriedade. Eu nunca fui sóbria. Compro batons de tons alegres corto os cabelos. A tarde voa e eu não sinto.

Em casa, Isolda assusta-se ao me ver. Eu sorrio de sua expressão. Sinto-me um ser interplanetário. Dispenso-a. As crianças surgem limpas e cheirosas e por um momento estranham. No minuto seguinte correm até mim com olhares de aprovação: "mamãe, você está bonita", escuto em uníssono. Bonita. Já nem lembrava que podia ser bonita.

Anuncio que jantaremos fora. Vamos comer sanduíches, beber refrigerantes, mergulhar em sobremesas calóricas. Eles apressam-se. Suplico que não corram, eles estancam. Depois o riso corre frouxo. Como não correr?

"Desculpe, professora". Volto abruptamente. É a garota-Frida Khalo que esbarra em mim. Olho o relógio. Ainda tenho vinte minutos. Corro corro corro...

(Luciana Melo – no prelo)