sexta-feira, dezembro 24, 2004

Mini de Natal

Todo ano era a mesma coisa.
Ela chegava com aqueles imensos olhos negros, fundos. Colava o rosto sujo no vidro, embaçando, com seu hálito, a vitrine.
De todos os brinquedos da loja, ela cismou com aquela boneca: rosto de porcelana, roupas finas, estilo século XVIII, cabelos louros e muito cacheados.
Entrava ano, saía ano, surgiam novos brinquedos, mas seus olhos pidões só enxergavam a boneca de porcelana.
Do lado de dentro, eu observava aquele romance sem palavras. Ela jamais ousou cruzar a soleira da porta, nunca ensaiou um pedido sequer. Chegava, olhava a boneca por um longo tempo.
Algumas vezes, eu trazia-lhe um lanche; ela recebia sem dizer nada, mas a expressão do seu rosto era de agradecimento. Comia, grudava de novo o rosto na vitrine e quando me dava conta, já tinha desaparecido.

***

Por um ano economizei dinheiro para comprar-lhe a tal boneca.
O Natal chegou e com ele, a garotinha.
Fiquei atenta aos seus movimentos, não podia perdê-la de vista, se não quisesse entregar-lhe o presente no próximo ano.
Pedi a uma colega para me substituir por uns instantes.
Saí e convidei a garotinha para lanchar. Ela balançou a cabeça em negativa.
Perguntei - por que não?
Pela primeira vez em quatro anos, ouvi sua voz.
- Não vão me deixar entrar.
- Vão, sim. Você entrará comigo.
Balançou novamente a cabeça:
- Todos vão ficar me olhando.
Não insisti. Notei que vestia mulambos. Eu não a constrangeria ainda mais.
Então sentamos na calçada e comemos cachorro-quente com refrigerantes.
Ela devorou o lanche como quem tem pressa, como quem tem medo de acordar de um sonho bom antes dele chegar ao fim.
Conversando, descobri que ela se chamava Dorothy. Ironia ou não, era esse o seu nome.
Levantamos. Não podia me dar ao luxo de demorar a voltar ao trabalho num período tão movimentado do ano.
Ela agradeceu muito e muitas vezes e foi se despedindo.
Pedi que esperasse um pouco.
Voltei com a caixa nas mãos embrulhada com um lindo papel de presente enfeitado com fitas vermelhas. Entreguei-lhe.
Ela ficou paralisada por uns minutos. Depois abriu o embrulho cheia de cuidados para não danificar o papel. Ela não queria rasgá-lo, queria conservar os sonhos em cada dobra que ia desfazendo.
Nunca vi alguém se iluminar tanto diante de um presente. De repente ela cresceu, suas roupas nem pareciam rotas, seu rosto ficou corado e seus olhos que eram fundos, ficaram rasos d'água.
Ela me abraçou forte, chorou aos soluços e depois me beijou.
Entrei na loja, mas fiquei observando ela indo embora, chispando, atravessando a rua feito raio ou trovão.
Vi o carro esporte se aproximando. Mal pude gritar seu nome.

Dorothy jazia no cruzamento da Alameda das Flores com Cristo Rei.

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