quinta-feira, junho 26, 2008

Da Amizade

(Para Camila)


Flora: Melhor da gripe?
Aurora: Melhorando, querida. E você, tá boa?
Flora sorrindo: Tô sim. Peguicinha e estranhas sensações sobre o mundo.
Aurora: Preguicinha é coisa boa, já estranhas sensações sobre o mundo... não sei, não.
Flora: Nem eu sei.
Aurora: Who knows?
Flora: Ninguém, Aurora... mas a vida tá na cara, sabe? Tudo assim muito explícito. Eu tenho enxergado demais e pra quem tem muitos sonhos isso é um horror.
Aurora: Enxergar demais não é muito legal: mata a fantasia e o sonho - ambos essenciais pra continuarmos acreditando em algo. Não é um conselho ou nada do gênero, é apenas uma observação de quem compartilha contigo toda essa limpidez de retina. Eu sou muito melhor hoje, mas em alguns aspectos sou bem pior, porque fiquei cética em relação a alguns assuntos.
Flora: Sim, é completamente isso, Aurora.
Aurora: O mesmo velho papo: enxergar demais é como amar demais, ser inteligente, ser gente demais. Demais, nessa acepção, é algo que o mundo desconhece.
Flora: Sim. E o "demais" é sempre muito, demasiado, é passar do limite necessário. A gente não precisava disso.
Aurora: That's the point! A gente não precisa, Flora! Ontem, uma amiga do trabalho veio me falar de uma relação que teve - a última - e de como o cara foi um sacana de merda, de como ele foi um puto, sem necessidade porque ela era uma pessoa que deixava o terreno aberto para ele cair fora sem mentiras, sem cascata. Palavras dela: "não precisava ser assim".
Flora: Nunca "precisava ser assim".
Aurora: Eu suspirei fundo, ri e disse apenas: não precisa, mas vai acontecer mais um montão de vezes, querida, porque você é mulher demais para esses homens de menos que estão por aí. Gente que quer viver o show de Truman e nós queremos viver amor à flor da pele.
Sendo bem pragmática, Flora. Sem elaborações românticas ou emotivas. Além da perpetuação da espécie, eu não vejo lógica na relação homem/mulher. Nós somos seres muito distintos. Nós sentimos diferente.
Flora rindo: Ontem numa conversa mega franca com uma amiga eu disse o seguinte: não tenho mesmo pressa em "encontrar" o amor da vida. Nem pressa nem necessidade disso. Mas pode ser que aconteça, e se acontecer – amém. E vou seguindo. Pode ser até que eu ainda me engane algumas vezes. Percebe, Aurora?
Aurora: Sim.
Flora: "Me engane". AURORA, A GENTE SE ENGANA ÀS VEZES PORQUE QUER.
Aurora: A gente se engana porque tem um lusco-fusco de esperança, porque quer... acreditar! Hoje está muito claro pra mim, nega. Eu vou ser feliz apesar de.
Flora: Lusco-fusco, uma tia sessentona diz isso e eu gargalho sempre
Aurora: Eu sou quase sessentona, Flora! De alma.
Flora: Eu Também. Tenho 123 anos.
Aurora: Eu já entendi que a felicidade não é algo extrínseco a mim. Eu não posso ser feliz por causa de fulano, de um carro, de uma casa... pessoas morrem, carros batem, casas caem e a gente continua.
Flora: Escreva isso num livro, AURORA!
Aurora: Vou escrever, nega; mas eu quero mesmo é (ins)escrever na vida, em neón vermelho!
Flora: ADORO. Lúcida Aurora.
Aurora: Aqui jaz alguém que continou, SEMPRE.
Flora: Ohhhhhhhhh. Que linda.
Aurora: Eu tenho observado: a mãe da Isabela, a daquele garoto que foi arrastado pela rua. Não deve existir dor pior que essa. Nenhum amor romântico é capaz. Elas perderam um pedaço delas literalmente, mas continuaram, nega, porque é assim.
Flora: Siiiiim. Ontem vi 3 coisas assim boas de pensar. Vi O clube do livro, de Jane Austen; Os Maias e Lavoura Arcaica. E terror é isso, sabe? É ver a vida projetada em filme, em noticiário de tv, em foto no jornal, vidarealnanossacara!! E depois de tudo ainda tem mais, porque não dá pra dar um tiro na cabeça como fez a tia da minha mãe e dizer "acabou".
Aurora: Oooooooh! Caralho. Não sabia.
Flora: Né isso, Aurora? "Era a morte, eu escolhi a vida", diz uma personagem daquele filme As horas. A morte permeia sempre, seja figurativa ou não. A escolha é nossa.
Aurora: É isso aí, amada. Sou feliz por poder presenciar teu eterno crescimento. Como escritora, como mulher e como pessoa que você é. Se para isso for preciso perder um pouco da inocência, acho que vale a pena. A gente é indivíduo e como tal, completo. É claro que o papo de ninguém ser uma ilha é superverdade, mas o pulo do gato é exatamente isso: viver com, não viver em.
Flora: Urrul!!! Viver com o que se tem. Ponto final. E isso não é conformismo, é maturidade.
Aurora: Eu era a vida e já quis a morte, diz Aurora. Direto de sua alma para a alma de Flora.
Flora: "já quis" - salve as conjugações no passado.
Aurora: And I wanted it so badly! Não há pior lugar para se estar do que na morte. Sim, porque a morte também é um lugar.
Flora: Se É lugar, Aurora! Concordo MUITO.
Flora pega o livro: Pra gente o meu autor: R. Nassar.

"o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide por isso a quem me curvo cheio de medo erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixaram de ser simplesmente vida corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória...”

Aurora: lindolindolindo. Verdadeverdadeverdade. Sempre que falo com você me emociono. Tô aqui secando a lagriminha no canto do olho, mas é um choro bom, nega. É um choro ancestral, um choro de identificação, de quem encontra o outro depois de mil anos no deserto e diz: “Eu sabia! Eu sabia que tinha mais gente como eu. Não estou só”.
Flora: O "eu sabia" é pra essa merdinha de esperança que a gente guarda no peito. A gente vive pra isso, Aurora, para os encontros grandiosos que salva essa merdinha que a gente chama "esperança".
Aurora: E é por isso que pessoas como nós não têm pares por perto, Flora. Eu também já entendi isso. Somos poucos, pouquíssimos em nossa espécie e seria muita sacanagem vivermos num resort!
Flora ri: Seria o PARAÍSO vivermos num resort.
Aurora: Não é a gente que precisa desse bando de zumbi que só vaga pelo mundo; são eles que precisam de nós! Somos o "eu sabia!" deles, "essa merdinha de esperança que eles (sic) guardam no peito."
Flora: sim, a gente dá vida, afinal. Fico me achando quase Madre Tereza. Tipo "Oh oh oh que missão".
Aurora: Pois é. Mas no meio dessa missão sagrada, eu quero um pouquinho de sexo!
Flora: Aurora, os caras depois de mim casam. Repito: CASAM. Têm filhos, constroem, ficam lindos e felizes.
Aurora explode numa gargalhada: Ca-ce-te. Ca-ce-te.
Flora continua: E eu olho e penso: éééééé Flora, vá se fudê!
Aurora: Esse discurso é meu!
Flora: É nosso, então. Em breve, não me espantarei se Carlos me escrever dizendo: "casei".
Aurora: Nega, eu posso dar testemunho em qualquer templo.
Flora rindo muito: Ai que heresia.
Aurora: Heresia é o cacete! É uma verdade linda, tão verdadeira que dói! Eu sou a escada, o remédio, a terapia. Aí eles se curam e quando se curam, eles batem a porta e no caminho acham a mulher perfeita e têm filhos perfeitos, casas perfeitas igualzinho ao comercial de margarina. E eu digo: Ponto pra Aurora. Se fodeu novamente.
Flora: S-I-M. Nadam e a gente fica.
Aurora: Não tem um cartão de agradecimento, flores, nada. Nem pagam a porra da conta!
Flora: Pô, deveriam pagar mesmo. Ontem falei pra minha amiga que conselho pra burro, por exemplo, eu vou cobrar.
Aurora: E caro! Porque jogar pérola aos porcos é foda.
Flora: Ah, eu hein? Gasto meu latim e nada. Vácuo.
Aurora: Hello? Is there anybody here?
Flora: As pessoas se repetem, sabe? Gostam do problema, mas não das soluções. Credo!
Aurora: Pra quê solução? Quando a solução chega é hora de partir. Enquanto tão doentes, recebem agrados, mimos, fazem beicinho.
Flora: Ui que sério: "quando a solução chega é hora de partir"
Aurora: "Arrumar outra otária pra ter pena de mim".
Flora: Ó nós aí, geeeeente!
Aurora: Mas não é? Gente, eu vou ter um orgasmo! Eu sou phoda com PH, honey.
Flora: PH DYHSOIVFTCMDE... o alfabeto todo.
Aurora: isso isso.
Flora: Caraça, mané. Vamos montar uma barraquinha no centro da cidade e cobrar para dizer essas coisas.
Aurora: Vamos! Eu topo. Seguinte, se depois da consulta, o/a mané voltar, tem direito à porrada.
Flora: Siiiim, adoro a idéia de bater em alguém porque é idiota.
Aurora: Bom, o título de madre tereza... acabamos de perder, dear.
Flora: Sim, depois disso já era. Tem problema, não.
Aurora: Tu nem queria mesmo, né?

sábado, junho 21, 2008

Acabei de chegar do cinema.
Há muito tempo não entro numa sala de cinema para ver um filme de conteúdo “adulto”. A lista atualizada consta filmes dos estúdios Disney, Pixar e demais da mesma seara. Isso não significa, é claro, um martírio ou tortura, porque eu sou fã de animação, mas quem tem crianças por perto, sabe do que estou falando.
Minha intenção era ver a produção francesa La vérité ou presque (ou A quase verdade), mas cedi ao pedido de uma amiga de trabalho e fomos assistir Sex and the City.
Apesar de previsível, consegui me divertir porque aprendi encarar as crônicas de Carry Bradshaw como mera ficção.
Eu costumava ver o seriado até que enchi, cansei de ser iludida. Quando Sex and the city surgiu como seriado, tinha a pretensão de tratar do universo feminino e suas conturbadas relações de uma maneira bastante realista, uma vez que as histórias giravam em torno de mulheres que há muito deixaram de ser jovenzinhas sonhadoras e românticas. Eram mulheres de trinta, quarenta, cheia de histórias, decepções, alegrias, perdas, futilidades, papo-cabeça, ou seja, gente como a gente.
A protagonista/narradora é Carry Bradshaw, jornalista com uma coluna cativa que tratava das relações amorosas, sob a ótica feminina, na cidade Nova York. Carry é solteira, independente, dona de um discurso moderno, mas em busca de um grande amor.
Charlotte é a típica heroína dos romances do século XIX: bonita, delicada, feminina que sonha com a família perfeita. Aquela dos comerciais de margarina.
Miranda é a personificação dos ideais feministas, em outras palavras, ela é um homem de saias: é uma vencedora da batalha dos sexos no competitivo universo profissional: inteligente, racional, metódica, bem-sucedida. Um bom exemplo de que para ser bom profissional é preciso esquecer que a vida também é feita de emoção.
Por fim, Samantha. Make love not war é literalmente o seu lema.
Com o tempo descobri que Carry é uma farsa. Das quatro mulheres, ela é a única personagem absolutamente incoerente. No desespero de encontrar o “homem da sua vida” (que lá pelas tantas aparece), ela não percebe que perpetua os padrões da “mulherzinha”. Entre Aidan e Mr. Big, ela não tem dúvidas: Mr. Big, o estereótipo do solteirão convicto.
Carry deseja o que tanto rejeita, porque como uma boa Polyanna, ela acha que pode mudar o amado. Tira onda do amor romântico ao fazer piada de Aidan que ajoelhado pede sua mão em casamento, mas não hesita em dizer sim ao pedido de Big, tão clichê quanto o de Aidan, mesmo depois de ser por ele abandonada pela enésima vez. É preciso ter uma auto-estima muito baixa para continuar investindo 10 anos da vida em um cara como Big, mas tem gente que ainda rima amor com dor e tem um apego inexplicável à infelicidade.
Mas o filme tem algo que continua muito positivo, que na minha singela opinião, é o melhor. Sex and the city é mais do que histórias de balzaquianas em busca da felicidade amorosa. Sex and the city é sobre a relação de amor que liga quatro mulheres, sobre a amizade, que está acima de todos os clichês.
Valeu a pena ver uma Carry emocionalmente ferrada levantar numa noite fria e correr para abraçar uma amiga triste e solitária do outro lado da cidade; ou ver três amigas transformando uma fracassada viagem de lua-de-mel em momentos de solidariedade e espera paciente e silenciosa; ou ainda, constatar que apesar das crises, maridos, filhos, os amigos sempre terão o espaço sagrado que merecem em nossas vidas.

Ainda Machado


Diferente do último texto (xenofóbico) publicado neste blogue acerca de Machado de Assis, de quem esta humilde pessoa é fã incondicional (para desespero e prováveis surtos psicóticos de alguns), trago hoje uma resenha de Milton Hatoum, publicada na EntreLivros.

Machado para o jovem leitor

O texto inaugural desta coluna na EntreLivros intitula-se “A parasita azul e um professor cassado”. Nessa crônica, escrevi: “Dois acasos foram decisivos na minha juventude: o primeiro me conduziu à obra de Machado de Assis; o segundo, a uma biblioteca vasta e sombria, escondida numa sala subterrânea”.
Mais de dois anos depois, volto aos contos de Machado para dialogar com os professores.
Uma das questões sobre o ensino de literatura brasileira para jovens estudantes (da primeira à terceira série) diz respeito aos critérios da seleção bibliográfica. Infelizmente, prevalece a idéia de que os alunos não têm condições de ler textos complexos. Um texto complexo não é necessariamente pesado, chato, algo que se lê com extrema dificuldade. Para um jovem do nosso tempo, não deve ser fácil nem prazeroso ler um romance de Coelho Neto ou A bagaceira, de José Américo de Almeida. Esses, sim, são textos pesados, que carregam na ênfase e no vocabulário precioso. Confesso que, na minha juventude, penei para ler esses autores. E quando li dois romances extraordinários de prosadores nordestinos – O quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas secas, de Graciliano Ramos – o romance de José Américo tornou-se, por contraste, ainda mais enfadonho.
Mesmo Os sertões e O Ateneu – livros fundamentais da nossa literatura – são difíceis de ser assimilados por um jovem do ensino médio.
Passei por essa provação como se fosse uma penitência. De fato, minha leitura de trechos da obra-prima de Euclides da Cunha foi conseqüência de uma punição coletiva, um castigo imposto por um professor que não descobriu o culpado de uma infração grave, cometida no colégio onde eu estudava. Nessa mesma época, ganhei as obras completas de Machado de Assis e li o conto “A parasita azul”. Depois li os outros contos do volume Histórias da meia-noite. Gostava desse título, que me remetia a histórias de suspense, horror e mistério. Havia algum mistério e suspense nos contos, mas não da maneira que eu esperava. Lembro que os li com prazer, e me perguntei por que um dos professores de português nos obrigava a ler Coelho Neto e José de Alencar e não Machado de Assis. Por que Iracema e não Dom Casmurro? E, nesse caso, por que não ler ambos?

II

Havia – como ainda há – imposições curriculares, mas penso que isso é um equívoco, pois o leitor jovem e inexperiente pode odiar para sempre a literatura brasileira, pode pensar que só existem textos ásperos, cuja leitura é sinônimo de suplício. É inadmissível que tantos jovens desperdicem a oportunidade de ler “A causa secreta”, “O enfermeiro”, “Missa do galo”, “O espelho”, “Uns braços”, “Um homem célebre”, “Terpsícore”, “A cartomante”, “Evolução” e outros contos do Bruxo, um verdadeiro mestre da narrativa breve, que se situa no mesmo patamar de excelência de seus contemporâneos europeus.
É muito provável que esses contos sejam lidos e comentados sem enfado. Porque uma leitura enfadonha e arrastada é, para o leitor jovem – e talvez para todo leitor –, um ato de flagelação do espírito. Claro que há textos intricados e nada tediosos, que são imprescindíveis para quem gosta de literatura. Quem não se deleita com a leitura dos romances Grande sertão: veredas e O século das luzes? São livros para quem já passou por uma experiência de leitura e não se sente inibido diante de obras cuja linguagem enfatiza um notável trabalho de estilização. Mas um iniciante certamente encontrará dificuldade para ler esses romances.
Nos contos de Machado ocorre algo diferente. Com um estilo muito elaborado, mas pouco ou quase nada rebuscado, o narrador machadiano explora em poucas páginas a complexidade das relações humanas. Sua linguagem é densa sem ser retórica, e os contos são exemplos perfeitos de complexidade concentrada num texto conciso e exato.
Um exemplo é “A causa secreta”, publicado em 1885 na Gazeta de Notícias e incluído em Várias histórias (1895). Eis aí uma aula sobre o conto enquanto gênero literário. Logo no primeiro parágrafo, depois de apresentar as três principais personagens numa cena que poderia ser filmada, o narrador escreve: “Tempo é de contar essa história sem rebuço”. Ou seja, é tempo de ir diretamente ao miolo da questão. E a questão é, na verdade, um feixe de questões machadianas: o adultério, as relações sociais, a violência, a loucura, o amor, a dor moral. Em menos de 15 páginas, o narrador constrói uma das personagens mais terríveis da nossa literatura: um homem (Fortunato) que se ocupava “nas horas vagas em envenenar e rasgar gatos e cães”.
Fortunato revela o lado mais obscuro e violento do ser humano. Já é clássica a cena em que ele mutila e queima um rato “com um sorriso único” no rosto, “uma serenidade radiosa da fisionomia” ou “um vasto prazer, quieto e profundo”. No fim, a dor física dos animais é substituída pela dor moral de Garcia, quando este tentar beijar pela segunda vez Maria Luísa, já morta. Fortunato, o esposo e agora viúvo, “saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral, que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”.

III

Os professores que comentam esse conto em sala de aula sabem que os estudantes se interessam pelo texto. A leitura no cabresto é inconseqüente, pois o maior estímulo para um jovem reside no prazer da leitura. Há, sem dúvida, outros grandes autores cuja obra é estimulante. Os contos de Insônia e Laços de família são apenas dois exemplos, entre muitos da literatura brasileira. Mas os de Machado não podem ser esquecidos, porque estão no centro da nossa modernidade e irradiam uma das visões mais críticas e inteligentes sobre o ser humano e a sociedade brasileira.

segunda-feira, junho 09, 2008

(II)

“Tudo é inútil. Estar aqui deitada e entregue a um estranho também é inútil, uma perda de tempo. O que quero descobrir que ainda não sei? Não há nada que já não saiba há um milhão de anos, um milhão de vidas. É o peso do tempo que carrego sobre os ombros. O peso de ter me visto de fora, ver em mim o que toda a gente vê: o Nada, um imenso tédio, a constatação de que não sirvo para nada, fracassei. Fracassei em não ambicionar dinheiro, objetos, títulos. Fracassei por não ter par, por mais vil que fosse. Ver em mim o que os outros vêem é uma experiência de morte. Mas como, se já nascemos mortos?
Eu queria fugir só para não ser quem sou. Ir para onde não me conhecem, para não mais encontrar os rostos conhecidos que sempre expressam nas suas feições a incompreensão diante da minha dor, ma eu nunca sairei daqui. Então, eu sonho em ser outra e isso é mais verdadeiro do que qualquer realidade.
Já faz algum tempo que me despedi da vida, porque descobri que viver e morrer não são tão diferentes. Há tantos que vivem, mas já estão mortos! E eu não enxergo nessa gente senão desprezo. Quem sente demais encerra em si a impossibilidade de tocar o outro e é esta solidão que torna tudo inútil”.

Festa Literária de Paraty



Bem-vindo à FLIP
20082 a 6 de julho



Programação
A partir de hoje a programação completa da Festa Literária Internacional de Paraty, com biografias dos autores convidados e resumo das mesas está disponível no site da FLIP. São 41 autores convidados vindos da América do Norte, da Europa, da África e de vários países da América do Sul, além dos 22 autores nacionais.


Homenagem a Machado
Abrindo a FLIP, Roberto Schwarz, um dos mais destacados intérpretes da obra de Machado, discutirá o livro Dom Casmurro, por ele considerado o "romance possivelmente mais refinado e composto da literatura brasileira". Em outra mesa, "Papéis Avulsos", Flora Süssekind, Luiz Fernando Carvalho e Sergio Paulo Rouanet falam sobre suas diferentes experiências com a obra machadiana.
A homenagem a Machado se estende também pela programação do FLIP ETC. com adaptações da obra do autor para o cinema, teatro, e uma exposição sobre o Rio de Janeiro do fim do século XIX.


Show de Abertura
Luiz Melodia é o convidado desta sexta edição para o show de abertura, que acontecerá na quarta-feira, dia 2/7.


Ingressos
Os ingressos estarão à venda a partir do dia 10/6. A compra pode ser feita pela internet, por telefone, ou em pontos de venda de Ingresso Rápido. Para detalhes clique aqui.

- Tenda dos Autores (mesas e conferência de abertura): R$ 25 cada
- Show de abertura na Tenda do Telão: R$ 25
- Tenda do Telão (transmissão das mesas e da conferência de abertura): R$ 8


Patronos
Estão abertas as inscrições para Patronos e Amigos FLIP. Para cada categoria há uma série de benefícios.
Conheça detalhes acessando o site da FLIP.

quarta-feira, junho 04, 2008

Davi X Golias

Hoje pela manhã, ao chegar ao trabalho, fiz o de sempre. Acessei o e-mail da empresa para verificar se já havia algum texto para revisar. Nenhum, mas tinha uma mensagem da minha chefe. Ela também escreve e sabendo que amo o Machado de Assis de paixão, enviou-me esta carta-bomba para atiçar meus ânimos.
Depois de ler e responder, pensei que seria interessante fazer um post sobre o assunto.
Bom, aí está.

Ah, o texto é do Daniel Lopes e pode ser encontrado no Digestivo Cultural.


Não gostar de Machado

Não gostar de Machado de Assis, no Brasil, é arriscado. Quero dizer, se você sair por aí dizendo que não gosta. Mesmo se lhe foi pedida uma opinião. Você não corre o risco de ser surrado (não sei se essa garantia serve caso você esteja nos corredores da ABL), mas com certeza receberá aquele olhar de piedade que apenas os seres superiores sabem produzir.
Você é criticado por não gostar de Machado mesmo por quem nunca o leu, ou, ainda pior, por quem o leu e também não gostou, mas ainda assim... patrimônio nacional é patrimônio nacional. Mexer com Machado é quase como mexer com a Amazônia. Quase, nada, é pior, muito pior. Se Al Gore quer saber o que é realmente bom pra tosse, que experimente, em vez de dizer que a Amazônia é do mundo, declarar que Machado é "um escritor de segunda", como já opinou Millôr Fernandes.
Há pouco tempo, um leitor do Digestivo, comentando no meu perfil, se revoltou contra o fato de eu ter escrito que "ainda no colégio, nunca consegui gostar de Machado de Assis, e apenas quando já havia entrado na universidade pude compreender que não perdera nada". Também concorreu para aumentar a indignação do leitor o fato de eu ocupar espaço no Digestivo com textos sobre livros de autores estrangeiros, insignificâncias como J. M. Coetzee e Nathaniel Hawthorne: "Não gostar do Machado e gostar de escritores estrangeiros bem traduz esta juventude de hoje influenciada pela cultura americana e outras, que entram nos nossos ouvidos diariamente pela mídia e também por livros".
O autor da mensagem assinou como Delton. Eu lhe enviei uma resposta, mas esta voltou, acusando e-mail inválido.
Seja como for, assim que li seu comentário lembrei de algo que me ocorreu logo que entrei no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Foi em 2003. Certo dia, entre uma aula e outra, estou a folhear no corredor um livro de George Orwell, quando um rapaz mais ou menos da minha idade pára sua caminhada simplesmente para dizer que eu sou um alienado. Eu levanto os olhos e o vejo erguendo um livro de José de Alencar. "Já leu isso?", perguntou. Sou um sujeito muito tímido, não gosto de discutir nem com gente inteligente. Disse apenas que "já, é um livro muito ruim". Nem vi direito o título, mas se era José de Alencar só podia ser algo chato, e eu queria me livrar do rapaz o mais rápido possível. Ele resmungou e foi embora.
Hoje penso que ele devia ser um desses membros do movimento estudantil que gastam mais tempo se movimentando do que estudando. Não sei se ele viu que o livro do Orwell era em inglês, pois eu estava começando a estudar inglês. Acho que não viu. Se tivesse visto, a bronca poderia ter sido maior. Com certeza, ele não sabia da história de vida de George Orwell. Tomara que, de 2003 para cá, a militância do jovem fã de Alencar em um partido político ou outro lhe tenha deixado algum tempo de sobra para aprender sobre a participação de Orwell na Guerra Civil espanhola, do lado dos republicanos e contra os fascistas ― experiência que gerou o livro Homage to Catalonia.

Nacionalismo literário

"Triste do povo que precisa de heróis". O que diria então Bertold Brecht da carolice de uma intelectualidade nacional que precisa de heróis para se sustentar?
Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira.
É verdade que Machado de Assis não é tão ruim quanto José de Alencar. Se, conforme disse em recente entrevista ao jornal Rascunho o professor e escritor sergipano Antonio Carlos Viana, "dar Machado de Assis para um menino de 15 anos é querer que ele não goste de literatura, nunca mais", o que dizer do trauma gerado em um jovem que é forçado a ler coisas como Senhora? Viana diz ter acabado de escrever um livro em que indica 45 autores indispensáveis para que alunos do segundo grau tomem gosto pela leitura ― entre os quais, Franz Kafka e John Fante. Estou com ele.
Aliás, por que mesmo nossas crianças e jovens são torturados com obras monstruosas da literatura brasileira e portuguesa, ao mesmo tempo em que são privados dos grandes clássicos da literatura universal? É claro que existem excelentes obras brasileiras ― é difícil, por exemplo, imaginar um estudante não se divertindo e se comovendo com Memórias de um sargento de milícias ou Triste fim de Policarpo Quaresma. Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?
Mas enquanto a função principal dos nossos professores de literatura for fazer os alunos detestarem a literatura, o tipo de produto literário nacional que os estudantes irão comprar em sua vida adulta será, no máximo, as obras completas de Paulo Coelho, empilhadas estrategicamente na estante da sala, unicamente para fins de enfeite.
De cada 100 jovens que entram na universidade (tendo feito belos pontos nas provas de literatura), quantos se tornarão adultos apreciadores da literatura relevante, nacional e internacional? Sejamos benevolentes, suponhamos que esse número seja de 10. Desses 10, quantos devem à escola essa dádiva? 1. Podem sair pesquisando por aí. Os outros 9 se comportaram de forma rebelde na juventude, fingindo que liam poesia parnasiana, apenas para fazer a média na prova, enquanto que, na surdina, encontravam em sebos e bibliotecas o que realmente lhes dava prazer e o que de fato os transformou em leitores maduros ― alguns, até, apreciadores de Machado de Assis.
E para constar. O que respondi ao leitor Delton no e-mail que não foi entregue, em resumo, foi que
― é verdade, não gosto de Machado de Assis. E não é porque nunca o li, ou não entendi as estórias. Sim, li algumas e as compreendi, mesmo as que abandonei pela metade. O que não quer dizer que no futuro, em novas leituras, não possa vir a gostar dele. Mas não sinto a menor obrigação de fazê-lo;
― é uma besteira achar que se alguém não gosta de Machado ou qualquer outro escritor é porque tem que crescer mais "literaturalmente". Claro, eu tenho muito que evoluir, e espero evoluir sempre. Mas quem garante que, lá pelos 140 anos, tendo evoluído continuamente, ainda assim eu não vá gostar de Machado? Ou será que se o sujeito tem 100 anos e não gosta de Machado é porque ele não evoluiu o suficiente? E quem gosta de Machado aos 15 anos já atingiu o ápice de sua vida "literatural"? Que bobagem, não é mesmo?
― eu lhe asseguro que é muito bom ser influenciado por culturas de fora, dos EUA, da Europa, Oriente, África, Marte... Tão bom quanto ser influenciado pela cultura local. Acredite, há porcaria escrita em todo lugar, e em todo lugar há coisa boa à nossa espera. Pergunte a Machado, que era fã de carteirinha de Montaigne e Laurence Sterne.


Chefe, o texto é muito bom. Bem escrito e tal...
Concordo com algumas coisas, discordo de outras. Bom mesmo é chegar numa idade em que essas farpas já não são combustíveis para o meu espírito. Bom mesmo é ler e dar gargalhadas por ver pessoas chovendo no molhado ou, num português bem chulo que não deixa margem a dúvidas, cagando regras.
Em parte, eu entendo a crítica porque sou sócia do pequeno grupo que odeia Joyce. Tadinho, não é odiar. Eu não o odeio, mas eu acho o Ulisses um porre, chato pra chuchu, de lascar. Outro escritor que não me causa sequer cócegas é o Jorge Amado (salvo O gato Malhado e a andorinha Sinhá, Capitães de areia e A morte de Quincas...). Eu acho a literatura dele morna, repetitiva. A Zélia sempre me pareceu melhor, não sei, eu acho que ela tratou de temáticas mais interessantes. Mas, contudo, entretanto, todavia, por mais que eu pense isso – e eu penso – respeito e não nego a importância desses autores para a literatura.
Eu não acho Freud essa Brastemp toda, comparado a outros da área, mas eu seria louca em negar que tudo começou com ele. Se gosto mais de Jung do que de Freud, a culpa é do próprio Freud, sem seus estudos, Jung não poderia ter ido além.

“Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira”.

Afirmações desse tipo não tornam o autor do texto diferente daqueles que critica. O fato de ele não ter prazer na leitura Machadiana não lhe dá o direito de julgar que outros o tenham.

PS: O autor não pode mesmo descriminar, uma vez que não existe crime. O máximo que ele pode é não discriminar.

Bem, isso é uma coisa.
Outra coisa é propor Gogol, Tolstoi, Kafka (!!), e acrescento, Proust, Tchecov ao invés de Machado. Pirou? Só porque são estrangeiros? Essa é a única diferença que consigo identificar, em minha modesta opinião. Esses autores são tão “difíceis” de deglutir quanto um Machado! Pelo amor dos meus filhinhos.
Que existe um estrangeirismo exacerbado e mal camuflado, existe. O que é uma bobagem. Apenas diga: prefiro literatura estrangeira à brasileira. É mais simples, direto e menos falso.
O currículo escolar brasileiro precisa ser revisto. E não é de hoje!
Acho realmente muito difícil que estudantes de quinta série apreciem Memórias Póstumas. Se já era difícil para a minha geração, imagine para essa que tem todas as facilidades visuais das novas tecnologias. Essa afirmação também se aplica aos estrangeiros que o autor tanto ufana. Imagina a geração videoclip lendo A metamorfose, do Kafka ou O estrangeiro, do Camus? Ia ter suicídio coletivo, minha filha!
O que pode ser bem aproveitado de Machado para essa garotada são os contos e seus dois romances, Helena (romântico) e Iaiá Garcia (de transição). Os romances realistas precisam de uma apresentação, um flerte.
Outra coisa ainda:

“Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?”.

Eu não acredito que estou respondendo a isso, chefe! Kkkkkkkkk
Essa pessoa não é burra, né!? Pode ser reacionária ou sofrer de brasofobia. Brasofobia?
Sim, cara pessoa, é para valorizar o que é nosso! A grade curricular BRASILEIRA pretende que nós BRASILEIROS conheçamos os expoentes da nossa literatura que é BRASILEIRA. Elementary, my dear Watson!
Eu duvido que na Rússia, as escolas incluam na grade curricular de literatura russa um romance francês ou brasileiro. O mesmo vale para a França, Estados Unidos, etc.
Literatura comparada fica para a universidade. Lá, as pessoas matarão a vontade insana de ler Moby Dick, essa obra imprescindível para a formação literária de um ser superior.
E outra coisa: A AMAZÔNIA É PATRIMÔNIO NACIONAL! DO MUNDO É O CARALHO!

Beijo,
Lu