quinta-feira, julho 28, 2005

Querida V.,

Eu sei que demorei a responder-te, mas não peço desculpas porque a culpa é toda sua. Sim, sua. Foste tão eloqüente na última carta que me senti contagiada pela tua febre hemorrágica. Senti-me indigna de tuas confissões, minha querida, uma vez que estava eu mesma imersa numa grande mornidão.

Foi, então, que permiti que suas palavras entranhassem na corrente sangüínea e resolvi fazer as malas.

Fartei-me de música e bons vinhos. Reatei relações com Rimbaud, Auden, Drummond, Dorothy Parker… antigos amigos que iluminaram noites frias e tardes chuvosas. Quantas vezes a companhia deles salvou-me da solidão!

Estive em tantos lugares. Vi tantos rostos, V! Mas preciso dizer-te que estive novamente em Amboise, querida. Senti uma necessidade, uma urgência em manter contato com o nosso Éden.

Voltei àquele belo jardim. Lembras dele? Frutas silvestres manchavam o chão de um vermelho caudaloso e apesar de singelas, elas me pareciam tão selvagens. Morangos, cerejas, framboesas... selvagens.

O vermelho intenso das frutas chegava a ser ofensivo, ele desafiava a palidez de tantos rostos inexpressivos, parecia gritar para que se rebelassem e também fossem selvagens.

V., depois de muito tempo, eu senti novamente que tocava o barro do qual somos feitos, senti a argila fresca e úmida ali, pronta para ser moldada ao meu bel prazer.

A vida invadiu-me.

Obrigada, V., pelo sopro regenerador.

Amor,

A.

terça-feira, julho 26, 2005

Olhar-se no espelho e perceber, sem subterfúgios, que as mudanças ocorrem. Olhar-se e não sentir dor, apenas ter a serenidade de constatar que as transformações não param de acontecer.

Foi assim com ela.
Acordou hoje pela manhã e olhou-se no espelho. Encantou-se com aquela marquinha de expressão quando sorriu; apreciou o contorno do seu rosto do jeito que é agora; redescobriu o prazer de passar o batom pelos lábios, até achou charmoso aquele sulco suave no canto dos olhos.

Sua fome de mundo já é outra ou, pelo menos, manifesta-se diferentemente.

Contemplou a si mesma com doçura e pensou: “adeus afobações e ansiedades” .
Fez tudo mansamente, tateando a tez, distraída.

Beijou o espelho, marcando-o de vermelho, como quem deixa um lembrete de algo que não pode ser ignorado ou negligenciado.

- Não posso esquecer de mim. Feliz ano novo!

sábado, julho 23, 2005

A "Lua em Libra"

Ela voltou. Finalmente voltou para preencher espaços incompletos, esculpir formas nas areias do tempo.

Lia, minha Lia, tenho um orgulho absurdo de poder te ler assim tão carne, tão sangue, tão nua.
Gosto das suas palavras que parecem delicadas, mas que no fundo escondem punhais.

sexta-feira, julho 15, 2005

Refrão

"A originalidade é impossível. No máximo, podemos variar muito ligeiramente o passado, dar-lhe um novo matiz, uma nova entonação. Cada geração escreve o mesmo poema, conta o mesmo conto. Com uma pequena diferença: a voz."
Jorge Luís Borges


Ajudo a dar os últimos retoques numa mala que parece mínima diante da infinidade de coisas sem serventia que precisam nela caber. Empurra daqui, empurra dali e um caderninho salta do canto. Puxo-o na intenção de recolocá-lo em um lugar mais apropriado, mas ele tomba e ínúmeras fotos espalham-se sobre o lençol.

Junto-as, uma a uma, e rostos jovens e prazenteiros – uma meia dúzia deles – revelam-se.



Mal podia conter a excitação de viajar sem os meus pais.
Seríamos apenas eu e minhas três amigas durante todo um final de semana. Nada de proibições, dormir e acordar cedo, olhares interrogativos.

No sítio da avó de Ana, ficaríamos todas no mesmo quarto e poderíamos conversar a noite inteira, fofocaríamos até o sono nos vencer. Nenhum adulto (sim, porque avós não são adultos. Eles fazem parte de um universo inclassificável de pessoas) por perto para dizer: “desliga a TV”, “olha esse telefone”, “não coma besteiras”.

Mamãe é que não parecia muito animada. Estava sempre com os olhos brilhando e com a boca cheia de recomendações.

Toda hora entrava no quarto para ver se não havia esquecido de colocar na sacola o remédio, o agasalho, as meias, aquele par de tênis confortáveis...

“Se sentir saudades ou não estiver bom é só ligar que vamos te buscar!”

Como não seria bom ficar um final de semana inteirinho sem regras e com minhas melhores amigas? E se eu sentisse saudades era só ligar. Sem contar que ‘vó’ Celina ia estar por perto! Mãe tem umas coisas meio inexplicáveis, parece que tem hora que fica boba, mais infantil que os próprio filhos!



- Marina, D. Marina! Oh, mãe! O ônibus da escola já está buzinando lá fora!

Limpei as lágrimas rapidamente e falei com o meu melhor sorriso:

- A mala está prontinha! Divirta-se muito, querida!

Jogou um beijo no ar e saiu na carreira.

quinta-feira, julho 14, 2005

Criaturas, vocês já tinham conhecimento disto aqui?
E por que não me disseram nada?

Visitem, visitem!

EntreLivros

terça-feira, julho 12, 2005

O Banquete

Nas horas desertas de uma sala escura, vislumbra-se apenas o halo de seu rosto. As cortinas pesadas ocultam ainda mais as formas da noite.
Perdido em pensamentos vãos, as órbitas de seus olhos saltam e iluminam-se. Contraste com a escuridão densa e opaca. Podia-se tocar o breu da noite, sentir sua espessa camada negra, fria e gelatinosa.
Tateia distraidamente os objetos sobre a mesa com a precisão de quem acerta as horas em seus milésimos de segundo.
Sua mão toca a espátula pontiaguda e, então, começa a abrir, uma por uma, as cartas guardadas no fundo da gaveta. Com destreza, enfia a ponta no canto do envelope e sai rasgando o papel firmemente num só movimento.


Seu coração ficou pesado como se a poeira do tempo tivesse se depositado nele, formando uma crosta tão dura que lhe impedia de respirar livremente.
Por muitos anos sua covardia adiou a leitura das cartas. Temia as palavras mais do que o próprio abandono ao qual se lançou. Duplo abandono.
Vivia de forma miserável, se arrastando pela casa como um pobre diabo, tinha aquela cara sempre macerada revestida de uma palidez angustiante. Seu andar era oblíquo, típico de quem se esconde de si mesmo.


Decidido a mudar, ele espera a noite chegar para encobrir-lhe as fraquezas. Tira as cartas do fundo da gaveta. Abre-as pausadamente como se prestasse um culto às palavras reclusas.
Olha aquele monte de papel e vai até a cozinha. Traz uma vela, uma bela garrafa de cabernet e um prato – a mais fina porcelana chinesa. Pica as cartas em pequenos bilhetes e serve-se deles.
Come cada pedacinho com a solenidade pedida nos banquetes e depois vai dormir.
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sexta-feira, julho 08, 2005

Novo blog no ar

Após alguns invernos, um amigo reencontrou-me através do Glossolalias.
Fiquei duplamente feliz porque além de trazê-lo de volta ao meu convívio, o Glossolalias ainda o inspirou a fazer o seu próprio blog.
Quando tiverem tempo, visitem o Beco da Ficção.

segunda-feira, julho 04, 2005

"Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta, olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa"

A., minha querida,

Sabe o que é mais impressionante? Você escrevendo sou eu pensando. Enquanto leio tua carta – ah!, tuas cartas são sempre tão anseadas, querida! – fico imaginando quantas coisas vis passam pela minha cabeça.

Elas nascem e morrem e não consigo executar um único pensamento vil. Não, a explicação não reside no fato de eu ser boa ou um modelo de bondade, A. Acho que minha incapacidade de ferir deve-se ao fato de ter sido ferida demais, de ter aprendido na pele a pior rima, a mais pobre e talvez a mais difundida: amor com dor.

Hoje só sei rimar amor com liberdade, A. Não, de fato, não é uma rima sonora, melódica ou rica mas é plena de significado, querida.

Já comecei a traçar a minha rota, A., e descobri que as retas podem ser tão ou mais perigosas do que as curvas sinuosas.

O amor tentou-me com todas as suas faces e eu voltei a sangrar. Perdi tanto sangue nos últimos dias que pensei que fosse morrer.

Abortei todos os filhos que acalentei em sonhos, querida. O meu corpo, em luto, chora.

A., todas as vezes que ensaiei o salto mortal, a rede de proteção era ocultada e a minha única reação era sangrar como quem antecipa a queda.

A diferença, minha amiga, é que desta vez não estancarei o sangue.

Beijos hemorrágicos,

V.