terça-feira, novembro 30, 2004

Todos os dias preparava a mesa com requinte e esmero. Cuidava da louça fina, da prataria. Escolhia com apuro a toalha de linho, o vinho, os cristais. Vestia-se impecavelmente, sem excessos. Esperava invariavelmente o relógio anunciar a hora do jantar. Sentava-se à mesa fingindo alegria. Servia a refeição, distribuindo sorrisos e mesuras.
Até que numa certa noite, cansou de tanta rotina, de tanto tédio, da elegância fria e incolor dos gestos, da conversa superficial e desinteressante. Levantou-se sem pedir licença, saiu e perdeu-se na neblina, confundindo-se à multidão inquieta e agitada.
A palavra perfeita?
Não ouso sequer pronunciar.
Ela deixa a garganta estreita
E esgarça as cordas ao vibrar.
As vozes?
Estão sempre à espreita,
Esperando o tempo certo de falar.

quinta-feira, novembro 25, 2004

Vocês conhecem o Jayme?
Eu o conheci quando vasculhava os blogs da vida. Deparei-me com esse cara articulado e de pena afiada.
Gosto do que ele escreve: artigos, opiniões, confissões... mas gosto ainda mais quando ele ficciona e produz histórias sensíveis como essa que trago para vocês.

Mini 49

Primeiro, ela me disse não. 1949, eu acho. Depois, ela me disse "quem é você?", duas ou três vezes, na metade dos anos 50. "Quem mesmo?" quando eu comemorava a copa de 62. "Ah, você. Eu não imaginava".

Me disse "talvez" em 64, ambos com 30 anos, em um jantarzinho no Le Coin. Casamos em 66, quando finalmente ela me disse "sim". Falamos pouco, daí em diante. Quando perdemos a copa de 82, ela veio me dizer que teria sido diferente se tivéssemos tido filhos. Mas que assim, compensação, era mais fácil ir embora. Não consegui lhe dizer "não".

De vez em quando ela liga.

quarta-feira, novembro 24, 2004

Aos poucos, ele se afasta.
Caminha por uma faixa estreita
Em direção às dunas
A procura de algo que não sabe o nome.
Eu não posso ajudá-lo.


Durante a espera
Ponho-me a escrever.
Escrevo muito.
Todo poema meu
É o mesmo e outro.
Repito-me, refaço-me.

Quando ele voltar,
Se voltar,
Oferecerei minhas mãos em concha
E meus braços em arcos simétricos.
Revestirei sua pele com a minha
E guardarei seu corpo no meu.

Assim como as palavras
Seremos os mesmos
Com novos sentidos.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Não sei quem é
(Mario Benedetti)

É provável que venha de muito longe
não sei quem é nem aonde vai
é só uma mulher que morre de amor
nota-se em suas pétalas de lua
em sua paciência de algodão
em seus lábios sem beijos ou outras cicatrizes
nos olhos de oliva e penitência
esta mulher que morre de amor
e chora protegida pela chuva
sabe que não é amada nem nos sonhos
leva nas mãos suas carícias virgens
que não encontraram pele onde pousar e
com o passar do tempo
sua luxúria derrama-se em um pote de cinzas.

quinta-feira, novembro 18, 2004

Num impulso, ela resolve telefonar.
Ele atende e os quase 2.500 km que os separam dissolvem-se no tempo.
Sua voz clara deixa transparecer a felicidade que sente ao ouvi-la. Felicidade compartilhada por ela.
Ele pede um minuto para fechar a porta do quarto. Ao fazê-lo um mundo paralelo se apresenta, transportando-os para um lugar secreto onde não podem ser alcançados.
Há algo de clandestino nesse encontro. Há também uma intenção velada que nenhum dos dois ousa mencionar para não correr o risco de ter a sintonia quebrada, a mágica desfeita, o amor revelado.
Algumas verdades não precisam ser ditas. Se proferidas, conspurcariam o espaço sagrado do encantamento.

quarta-feira, novembro 17, 2004

Tempo

SAUDADE

Não sinto dor nem saudade
apenas escuto os ponteiros do coração
batendo descompassado:
tic tac tic tac
Luís Duarte, Era uma vez...

quinta-feira, novembro 11, 2004

DESEJO

Eu queria o movimento das horas
Fazer parte do mundo como se fôssemos um.
E não como mera contempladora,
Aquela que assiste ao desfile do tempo.
Eu queria a dureza dos punhais.
Fincar forte no solo dos sonhos,
Sangrar na alma o cansaço e as desilusões
Para que eles não me dominem jamais.

Eu queria a delicadeza dos cristais.
Fruir rarefeita pelo espaço,
Preencher os pensamentos, poros, buracos,
Completar as lacunas da solidão.

quarta-feira, novembro 10, 2004

Silêncio – voz de todas as coisas.
Estou imune aos barulhos
Dos apitos, das ruas, buzinas.
Vago nas noites ermas,
Nas cinzas das horas vazias.

terça-feira, novembro 09, 2004

isto, aquilo e tudo o mais

Queria amar de modo comedido, falar só o necessário, não sentir os estremecimentos de sua ausência, não perceber a inquietação dos seus pensamentos.
Amar o bastante, amar apenas o suficiente.
Não, não sei responder se amor-bastante, amor-suficiente é amor, afinal, eu não conheço um conceito que tenha a capacidade de definir com precisão este sentimento, mas eu gostaria de poder experimentar esse outro lado.
Gostaria de não me sentir perdida, de não ser tomada de agonia e angústia quando detecto na pele as reticências e indefinições represadas no íntimo de quem amo, gostaria de poder passar placidamente por suas águas revoltas, não me turvar diante de sua imagem distante. Queria poder esperar sem limites...
Qual a medida, qual o ponto de equilíbrio?
Quando saber se " o respeito pelo silêncio do outro" virou abandono?; se "a não invasão ao espaço alheio" virou descaso e solidão?
Amar se aprende amando não é regra geral.
Eu particularizaria: amar João se aprende amando João; amar José se aprende amando José, amar Tereza se aprende amando Tereza...
Amar é verbo vago e cambiante. Toda pessoa é uma exceção e suas regras não se estendem a sujeitos vários.
Amar também é uma identidade: pessoal e intransferível.

segunda-feira, novembro 08, 2004

Inabilidade

Eu não sei cantar,
escrevo mal.
Preciso de quase nada.
Um pouco de liberdade
e um punhado de sonhos,
talvez.
Disto eu entendo –
Voar por espaços mágicos
E inatingíveis.
Meu lar é o infinito.

quinta-feira, novembro 04, 2004

BICHO-PAPÃO

Bastou amanhecer para que a criança sentisse o cheiro do perigo a rondar.

Farejou um pouco mais e descobriu suas formas.

O perigo é uma ave de rapina com sorriso de gato. Sua face sorridente oculta olhos vorazes e dentes fortes.

O aspecto doce não disfarça seu apetite selvagem por carnes tenras e lágrimas convulsas. Delicia-se quando nota o pavor, emanando o perfume enjoativo do medo.

A criança entende seu jogo: enxuga o orvalho da cara, engole o choro e desdenha de sua aparência medonha.

O perigo enfia o rabo entre as pernas, baixa as orelhas e dorme faminto.

O perigo, uma dia, vai morrer à míngua feito cão danado e sem dono, porque a criança vai crescer e descobrir que não existe bicho-papão.

quarta-feira, novembro 03, 2004

Perguntava-me freqüentemente o que realmente me importava. Perdida nessa procura, sem alcançar grandes respostas, voltava novamente a vagar por sentidos.
Li em algum lugar que os gregos, diante da morte, tinham uma única pergunta: viveu com paixão?
A paixão (ou pulsão, talvez dissesse Freud) move o mundo. Muito mais que um clichê, a frase remete às origens profundas da busca do conhecimento humano.
A paixão, numa visão ampla, pode ser entendida como o sopro criador, como o elemento motivador da vida. Ela nos remete à intricada e delicada arte da tapeçaria, dos vitrais, dos mosaicos.
A dissipação dos cristais, a trama dos fios, o contraste das cores e formas reproduz as ações e movimentos individuais para que mais adiante, no grande panorama da vida, vislumbremos o percurso da humanidade pelas realizações de seus anseios.
Recordando tudo isso, fica fácil responder a questão: importa-me a palavra que tudo nomeia e dá sentido.
Foi pela palavra que aprendi a ter tantas paixões.
Paixão pela noite que me abriga; paixão pela música que me transporta; pelos filhos que não tive e são tão meus; pelo homem que amo e contemplo, ainda que, por vezes, se distancie e isole sem anúncio ou cuidados.
Tendo todos esses elementos, risco meu bordado para depois cobri-lo com mil tramas, todas elas gestadas em e por mim.
Quando o trabalho estiver completo, a gravura surgirá em resposta à pergunta última: sim, viveu apaixonadamente.
Distraída, toco as estrelas que povoam nosso quarto e de repente sou luz vazando teus olhos.

Fluida, líquida, eu me derramo em ti feito enchente, preenchendo todos os seus espaços.

Pleno, você ofega ardências sutis, depois desfila suas mãos convulsas, numa procura febril pelo meu nascedouro, de onde jorro minha seiva vital.

Extenuado pela busca, afrouxa os dedos ágeis e deixa-se cair, ainda ignorante da minha gênese.
Tenta, em vão, balbuciar a pergunta-enigma; selo meus lábios nos seus e o mistério perpetua-se.
A Lua, de Hugo Neto