sexta-feira, setembro 19, 2008

IV

De todas as coisas que existem, sempre acreditei na redenção, na força de renovação de tudo aquilo que vive e pulsa. Os pequenos milagres sempre me causaram fascínio: um corte que sangra e depois sara, fechando a carne por si só, numa costura fina e imperceptível; a pele da grávida que se estica toda e logo após o parto retorna lentamente ao que era, regenerada. Pura mágica de um ágil prestidigitador.
A despeito de todas as misérias e catástrofes, eu sempre acreditei na redenção. Não sei se por hábito ou teimosia.
Ultimamente, os pequenos milagres estão cada vez menores. A minha capacidade de estupefação diante das surpresas e do ‘inesperado bom’, como diria a Clarice, está reduzida a proporções diminutas. Ela é quase um fiapo que se solta da roupa esgarçada, rota. Rotos são os despropósitos, os imbecis, a estupidez.
Há quem se exercite por uma questão estética, por puro narcisismo; há outros que o fazem por questão de saúde, bem-estar; outros ainda são atletas e o exercício é como um vício; há uma outra categoria que o faz como forma de terapia, talvez de terapêutica medicamentosa, porque precisam jorrar para fora do corpo tudo aquilo que incomoda ou envenena.
Eu sou assim em relação à escrita. Deve ser esse o motivo pelo qual ando tão mal humorada, quase venenosa; sinto-me intoxicada, tenho dores por todo o corpo, chovo pluviosamente, estou impaciente, mordaz, quase cruel: é a falta de tinta no papel, a ausência de calos nos dedos, a quantidade imensurável de palavras que percorrem as artérias, adentram células, mas não encontram lugar para desaguar, nem que seja a mais discreta fenda. Lá se vão novamente passear pelas minhas entranhas. De tanto represá-las – as palavras – entupiram as finas veias do meu coração, oxidaram minha saliva e tudo tem sabor de ferrugem.
Não há nada que um belo torniquete não cure. As palavras aos poucos gotejam do corte, ventilando o ar e trazendo certo frescor, algo semelhante ao cheiro da chuva, da terra molhada.
A despeito das misérias, queria ter escrito sobre a beleza oculta, quase violentada, do filme É proibido proibir, mas não o fiz, sabe-se lá a razão. Eu só queria registrar que apesar da violência, do mondo cane, da merda de vida que temos, há em algum lugar, ainda que remoto, um sopro de esperança.
Eu leio Clarice, Pessoa, Drummond... eu ouço Chico, Bach, Calcanhotto e o silêncio. Fico pensando nos motivos que me impelem a isso. Por que Clarice, Drummond, Chico, Cortázar, Osman Lins, Machado e não Joyce, Saramago, Ana Carolina? Por que vitrais, os labirintos, as perspectivas, o tempo psicológico e não o tempo cronológico, a narrativa encadeada, o discurso direto e plano? Por que os redemoinhos, as temáticas angustiantes, personagens comezinhos e humanos e não o romance de costumes, o herói mítico? Respostas? Nenhuma me satisfaz, então aceito o simples “porque sim”.
Lembrei agora do Chico, lindo em relato muito pessoal que não deixa de ser risível, mas eu não sorri, eu chorei doído e tive uma vontade louca de ser amiga dele, pegar o telefone e dizer: “Chico querido, a casa do Oscar não foi destruída, ela resistiu ao tempo. A casa do Oscar está construída em terreno sólido e preservou o traço peculiar do arquiteto, aquele traço que deixa a sensação de que tudo flutua, de que tudo tem asas. Nada nem ninguém podem destruir a casa do Oscar, porque ela foi construída num lugar para além do sonho e do desejo”. Mas eu não sou amiga do Chico, logo, não pude dizer nada. Então eu escrevo porque não dá para represar tudo o tempo todo.

“Quando eu morrer que me enterrem na beira do chapadão”...

Eu gosto de Chico porque ele é antes de tudo um ser literário, ele é dos detalhes, dos vitrais, dos mosaicos vertiginosos. O Chico é fã do Rosa, do samba, da bossa, do Tom.

“Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome”...

Eu gosto da Calcanhotto porque ela conhece a Frida Khalo e suas cores, porque ela escuta o mar e canta seus segredos, porque conhece poesia concreta, mas não é dura, engessada.

“Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro.”

Eu amo a Clarice porque ela é complicada, porque é mais Kafkaniana do que o próprio Kafka. Eu amo a Clarice porque tenho certeza que ela é a prova de que o abstracionismo tem tradução.
Osman, Cortázar, Machado... todos são pequenas peças do mosaico. Eles podem ser lidos sem manuais, porque transgridem regras, porque eu tenho uma queda pelo que é raro e pelo que está em vias de extinção, como a espécie do Homus caleidoscopicus.

Gosto de objetos estranhos com sons estranhos, mas imponentes e que por si só são uma sinfonia de fonemas. Eu gosto das palavras que nomeiam tais objetos.
G r a m o f o n e e s c a f a n d r o a l d r a v a p a l í n d r o m o.
Por quê? Deve ser porque um dia, um anjo torto disse: vai ser gauche na vida. Eu não dei ouvidos, mas um tal de Carlos não cometeu o mesmo erro.

quarta-feira, setembro 10, 2008

Das genialidades

Faça como se estivesse em casa

Um esperança construiu uma casa e colocou-lhe um azulejo que dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar.
Um fama construiu uma casa e não colocou azulejo nenhum.
Um cronópio construiu uma casa e seguindo o hábito colocou no vestíbulo diversos azulejos que comprou ou mandou fabricar. Os azulejos eram dispostos de maneira a que se pudesse lê-los em ordem. O primeiro dizia: Bem-vindos os que chegam a este lar. O segundo dizia: A casa é pequena, mas o coração é grande. O terceiro dizia: A presença do hóspede é suave como a relva. O quarto dizia: Somos pobres de verdade, mas não de vontade. O quinto dizia: Este cartaz anula todos os anteriores. Se manda, cachorro.


CORTÁZAR, Julio. A História de Cronópios e Famas.