sexta-feira, dezembro 30, 2005

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Quero as conchas – todas elas.
as dor mar – madrepérolas de delícias;
tuas mãos – cálice de promessas;
teus lábios – a casa dos meus sonhos.

Em troca dou-te meus ouvidos de indecifráveis segredos;
Minha vulva de tenras umidades.

Meus seios são tua casa, alimenta-te.
Regala-te. Suga-o prontamente,
Retira-lhe o mel.
E na hora do descanso, oferto-te meu ventre.
Vem, repousa.
Lança tuas sementes.

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Para os amantes do cordel

A editora cearense Tupynanquim faz dois lançamentos bastante expressivos.

Um é uma edição especial para colecionadores (apenas 500 exemplares) de uma amostra expressiva da obra de Leandro Gomes de Barros (1865, + 1918), em comemoração aos 140 anos do seu nascimento. São 12 folhetos, acondicionados em uma caixeta de papelão, com capa em preto e dourado contendo os seguintes títulos: Juvenal e o Dragão, O Cavalo que Defecava Dinheiro, O Testamento do Cachorro, A Vida de Pedro Cem, Casamento e Divórcio da Lagartixa, O Cachorro dos Mortos, Meia Noite no Cabaré, A Sogra Enganando o Diabo, A Donzela Teodora, A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento (em dois volumes), além do folheto Leandro Gomes de Barros – O Pioneiro da Literatura de Cordel. O Cavalo que Defecava Dinheiro e O Testamento do Cachorro inspiraram Ariano Suassuna na criação de três dos mais marcantes e engraçados episódios da sua obra-prima Auto da Compadecida. Já o personagem Cancão de Fogo faz parte da progênie de heróis picarescos, remotamente inspirados em “Ulisses” e da qual faz parte outro personagem de cordel, João Grilo, também aproveitado por Ariano.

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O outro é uma parceria da Tupynanquim com pernambucana Coqueiro e a também cearense Edições Livro Técnico. As Aventuras de Dom Quixote em versos de cordel – de Antônio Klévisson Viana – é uma adaptação, resumida, da novela cervantina, cantada em sextilhas e inserindo-se nas comemorações pela passagem dos seus 400 anos.

Canta o poeta:

“Quem ler este livro tira
Algumas boas lições:
Quão imutável é o sonho
Para muitas gerações!
Dirá: “Quixote está vivo
Em nossas vãs ilusões!”

Leandro Gomes de Barros – 140 anos, de Antônio Klévisson Viana, caixa com 12 folhetos, R$ 25,00.
As Aventuras de Dom Quixote em Versos de Cordel, de Antônio Klévisson Viana, 48 páginas, R$ 25,00.
Informações: (85) 3217.2891/9116.8296 e/ou kleviana@ig.com.br


P.S.:
A literatura de cordel é assim chamada pela forma como são vendidos os folhetos, dependurados em barbantes (cordão), nas feiras, mercados, praças e bancas de jornal, principalmente das cidades do interior e nos subúrbios das grandes cidades. Essa denominação foi dada pelos intelectuais e é como aparece em alguns dicionários. O povo se refere à literatura de cordel apenas como folheto.
A tradição dessas publicações populares, geralmente em versos, vem da Europa. No século XVIII, já era comum entre os portugueses a expressão literatura de cego, por causa da lei promulgada por Dom João V, em 1789, permitindo à Irmandade dos Homens Cegos de Lisboa negociar com esse tipo de publicação.
Esse tipo de literatura não existe apenas no Brasil, mas, também, na Sicilia (Itália), na Espanha, no México e em Portugal. Na Espanha é chamada de pliego de cordel e pliegos sueltos (folhas soltas). Em todos esses locais há literatura popular em versos.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

...é quase Natal

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E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita.
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o príncipe, estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda. - Ah! Desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- O que quer dizer cativar?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro amigos, disse. Que quer dizer cativar?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa criar laços...
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
Mas a raposa voltou a sua idéia:
- Minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música. E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o príncipe, mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me! Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas".


O pequeno príncipe, Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, dezembro 21, 2005

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A carta de Beatriz vazou-me o peito. Senti-me mutilada como se inadvertidamente pisasse numa mina e de repente – onde estão minhas pernas?

Pus-me de luto por ti e por todos os sonhos abortados. Pela primeira vez compreendi, na carne, a dor de não poder ter filhos. Senti que a vida escorria-me do ventre numa hemorragia doída e incontida. Sonhos que não vingam são como filhos abortados.

Invejo e admiro-te, minha querida amiga, mais do que qualquer pessoa que tenha conhecido, tu soubestes transformar morte em vida.

Na próxima semana embarco para Paris. Vou ao lançamento d’O diário, vou colher os frutos rubros e selvagens produzidos por tuas mãos.

Com esta, encerra-se a série Missivas

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Mini

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Aqui estou eu, sentado numa praça, tomando um café e fingindo serenidade, mas minhas mãos estão trêmulas e geladas. Ondas de calor e lufadas de ar frio revezam-se em mim como se quisessem espantar todas as indagações que pululam na minha mente.

"Como surgirá? O que estará vestindo? Serão ainda seus cabelos bichos ferozes a seduzir?"

Combinamos não nos descrevermos ou nos identificarmos. Somente trocamos número de telefone caso não sejamos mais capazes de nos reconhecermos, afinal a última vez que a vi foi há 30 anos, mas uma beleza como a dela, o tempo não apaga.

Lembro-me como era bela. Não falo dessa beleza plastificada, das passarelas, com prazo de validade, perecível.
Há mulheres que causam dor e cegueira, são tão escancaradamente belas que chegam a agredir os comuns, parecem gritar ao mundo, em sons estridentes, seus desenhos e contornos.

Hannah era bela de outra forma.
Sua beleza não desfilava por aí, nem se revelava a toda hora. Para vê-la era preciso um olhar atento, quase arqueológico. Por baixo daquele invólucro agradável havia uma outra camada a escandir.

Descobri sua beleza ao longo de três breves anos.

Era cinicamente bela quando estávamos rodeados de pessoas, mas era impossível um comentário, então ela arqueava a sobrancelha direita, ensaiava um sorriso que não se completava e tudo estava dito.

Como era linda quando se arrumava toda para uma ocasião especial! E a maneira como sentava-se? E quando folheava as páginas de um livro?
Existia algo etéreo quando conversava; se o tema era de seu interesse então, seus olhos faiscavam, abria um sorriso largo, gesticulava muito, assumia uma postura avantajada.

Mas ela era bonita mesmo quando durante uma única semana em todo o mês inventava que precisava fazer exercícios físicos. Acordava cedo e ia correr. Voltava atrasada e faminta. Tomava um banho rápido, mas tinha tempo para sentar-se à mesa, servir-se de capuccino e devorar um pão inteiro com requeijão e mortadela!
Depois vestia seus jeans e saía apressada e feliz, acreditando-se mais magra.

Aos domingos, costumava ela mesma fazer a faxina da casa. Algumas vezes cheguei intencionalmente sem aviso e flagrei-a descalça, de shorts, camiseta velha e num coque pra lá de desalinhado preso por um lápis. Ela olhava-me fingindo desaprovação, balançava a cabeça negativamente e dizia toda mandona: “veio atrapalhar ou ajudar? Se veio atrapalhar, se manda, mas se ficar com a segunda alternativa, na cozinha tem balde e vassoura te esperando”. Virava-se de uma só vez e quando eu voltava da cozinha, completamente munido, ela piscava o olho e gargalhava.
Ainda hoje escuto aquele som, a música...

Olhei para o relógio, meia hora se passara e ninguém se aproximou. Pensei em telefonar, mas desisti.
Olhei para os lados, reparei nas mesas e não vi ninguém que pudesse se parecer com ela.

Pedi outro café, começou a chover e resolvi entrar e sentar no balcão.
Ao lado, mas sentada de costas para mim, uma mulher de cabelos muito curtos – “não era ela, não com esses cabelos” – parecia tentar convencer a garçonete a trazer-lhe algo fora do cardápio. Para me distrair da longa espera, comecei a prestar atenção na conversa de ambas. A moça não brigava, não havia bate-boca, como uma criança que quer ser atendida, ela dizia com olhos pidões: “não quero croissant de ervas finas, para mim, o único acompanhamento que vai bem com capuccino é pão com mortadela!”

- Pão com mortadela?!?

A estranha virou-se, sorriu cinicamente e arqueou a sobrancelha direita.

Tudo estava dito.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

A.,

Tomei a liberdade de abrir as duas últimas cartas que você escreveu para V. Peço desculpas antecipadas, pois não tenho como hábito violar correspondências, como você bem sabe, mas o momento tornou tudo isso necessário. Senti-me aliviada por tê-lo feito, uma vez que se aproxima a data de sua viagem.

O que tenho para dizer-lhe é urgente demais, A. Seria mais fácil e rápido dar um telefonema, mas faltou-me coragem para pronunciar as palavras. De qualquer forma, minha filha sempre adorou escrever, devotava às palavras um amor profundo e delicado, então, acho que ela aprovaria minha iniciativa. Também sei que cultivava o hábito de escrever cartas a você, pessoa que ela amou verdadeiramente.

Ela tem duas gavetas repletas de cartas – todas suas – cuidadosamente amarradas e catalogadas por datas.

Lembro que eu dizia-lhe para telefonar, mas ela redargüia: “os manuscritos são insuperáveis, mama. Eles guardam a ansiedade da espera, o contato da mão com o papel, a caligrafia pessoal e intransferível. Cartas possuem identidade e alma... sem contar que sou uma pessoa fora de moda”.

Dizia-me sempre que a correspondência entre Mário de Andrade e Manoel Bandeira, bem como a de Pessoa com Mario de Sá-Carneiro perderiam toda a graça e paixão se, ao invés de cartas, eles trocassem e-mails frios e impessoais.

Eu ria dessa mania dela e hoje, depois de anos sem escrever uma linha, vejo que ela estava completamente certa. Dizia com aquele ar petulante: “um dia minha correspondência com A. dará um belo livro”.

Querida A., acho que gostará de saber que Um bonde chamado desejo foi sucesso absoluto durante toda a semana que esteve em cartaz em Paris. Nunca tive tanto orgulho de V! Ela estava radiante e jamais Blanche Dubois (Vivian Leigh que me perdoe!) pareceu-me tão real.

Na semana passada, nossa V. telefonou-me de Berlim e contou-me que retornariam mais cedo que o previsto, pois um dos rapazes adoecera, acho que o “Stanley Kowalski”.

Bem, há três dias atrás, na viagem de volta, houve um acidente na estrada e o ônibus da companhia de teatro tombou... nossa V. não resistiu.

Sei que não é a mesma coisa, mas se ainda desejar, terei imenso prazer em recebê-las em minha casa, você e sua pequena Tereza.

Sinceramente,
Beatriz

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Elogio à lucidez

Aos que não crêem na função social da Arte ou, pior, para os que acreditam que a Arte não tem qualquer função, que sua raison d'être é a estética, apresento o discurso do poeta e dramaturgo Harold Pinter proferido, em vídeo, na Academia Sueca, durante cerimônia de entrega do Premio Nobel de 2005.
Deliciem-se (ou não)!


"Em 1958, escrevi o seguinte:

"Não existem distinções concretas entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente ou verdadeira ou falsa; pode ser verdadeira e falsa a um só tempo".

Acredito que essa alegação continue a fazer sentido e continue a se aplicar à exploração da realidade por intermédio da arte. Portanto, como escritor eu reafirmo o que disse. Mas não posso fazê-lo como cidadão. Em minha condição de cidadão, me cabe perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?

A verdade na dramaturgia é sempre fugaz. Não é possível encontrá-la por inteiro, mas a busca por ela é compulsiva. É a busca que claramente propele a jornada. A busca é a sua tarefa. O mais freqüente é que você tropece na verdade em meio à escuridão, colida com ela ou capte simplesmente um vislumbre de uma imagem ou forma que parecem corresponder à verdade, muitas vezes sem compreender que o tenha feito. Mas a verdade real é que jamais existe algo como uma verdade a ser encontrada na arte dramática. As verdades são muitas. Essas verdades se contestam umas às outras, evadem umas às outras, refletem umas às outras, ignoram umas às outras, provocam umas às outras, não percebem umas às outras. Às vezes, você sente ter em mãos a verdade de um momento, e ela logo escapa por entre seus dedos e se perde.

Muitas vezes me foi perguntado de que maneira surgem as minhas peças. Não sei dizer. Nem sou capaz de resumi-las, sumarizá-las, exceto dizendo que foi aquilo que aconteceu. É aquilo que elas dizem. Foi aquilo que elas fizeram.

A maior parte das peças é engendrada por uma linha, uma palavra ou uma imagem. A palavra em questão é muitas vezes seguida, pouco depois, pela imagem. Vou lhes oferecer dois exemplos de linhas que me vieram à cabeça sem motivo aparente, seguidas de imagens, e mais tarde perseguidas por mim. As peças são The Homecoming [A volta para casa] e Old Times [Velhos tempos]. A primeira linha de The Homecoming diz "o que é que você fez com a tesoura?" A primeira linha de Old Times é "Escuro".

Em ambos os casos, eu não dispunha de quaisquer outras informações.

No primeiro caso, era evidente que alguém estava procurando uma tesoura, e indagava sobre seu paradeiro a outra pessoa de quem suspeitava pelo possível roubo do objeto. Mas eu de alguma forma sabia que a pessoa a quem a pergunta era dirigida não se importava nem um pouco com a tesoura, ou, aliás, com o sujeito que estava à procura dela.

"Escuro" eu decidi considerar como sendo a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e como resposta a uma pergunta. Em cada um dos casos, me vi compelido a investigar a questão mais a fundo. Isso aconteceu lentamente, por meio de uma dissolução muito lenta, da sombra para a luz.

Sempre começo uma peça dando aos personagens os nomes A, B e C.

Na peça que veio a se tornar The Homecoming, vi um homem entrar em uma sala decorada com parcimônia, e fazer a pergunta a um homem mais jovem, sentado em um sofá horroroso e lendo um jornal de turfe. Eu de alguma maneira suspeitava que A fosse um pai e B fosse seu filho, mas não tinha certeza. No entanto, a suspeita se confirmou pouco mais tarde quando B (que viria mais tarde a ganhar o nome Lenny) diz para A (que viria a se chamar Max): "Pai, você se incomodaria em mudar de assunto? Quero lhe perguntar uma coisa. O jantar, logo agora, o que era aquilo que comemos? Qual é o nome daquilo? Por que você não compra um cachorro? Sua comida só serve para cachorros. Sério. Dá pra imaginar que o senhor está cozinhando para um monte de cachorros". Assim, já que B chama A de "pai", me pareceu razoável presumir que fossem pai e filho. "A" era também, claramente, o responsável pela cozinha, e sua culinária não parecia ser levada em alta conta. Será que isso significava que não existia mãe na casa? Eu não sabia. Mas, como disse a mim mesmo então, os nossos inícios jamais conhecem os nossos finais.

"Escuro". Uma grande janela. Céu noturno. Um homem, A (mais tarde batizado como Deeley), e uma mulher, B (que se tornaria Kate), sentados, com drinques nas mãos. "Gorda ou magra?", pergunta o homem. Sobre quem eles estão falando? Mas a seguir vejo, de pé diante da janela, uma mulher, C (mais tarde, Anna), iluminada de maneira diferente, de costas para os dois, revelando seus cabelos escuros.

É um momento estranho, o momento de criar personagens que até aquele momento não existiam. O que vem a seguir é um procedimento espasmódico, incerto, até mesmo alucinatório, embora ocasionalmente ocorra como uma avalanche incontrolável. A posição do autor é incômoda. Em certo sentido, os personagens não o acolhem com agrado. Os personagens resistem a ele, a convivência nunca é fácil, defini-los é impossível. Mas você enfim descobre que tem em suas mãos pessoas de carne e osso, pessoas dotadas de vontade e de uma sensibilidade pessoal própria, feitas de componentes que é impossível alterar, manipular ou distorcer.

Assim, a linguagem, na arte, continua a ser uma transação altamente ambiciosa, uma areia movediça, um trampolim, uma piscina congelada que pode ceder sob seus pés, os pés do autor, a qualquer instante.

Mas, como eu disse, a busca pela verdade não pode parar. Não se pode postergá-la. Ela precisa ser encarada, naquele exato lugar, naquele exato momento.

O teatro político acarreta um conjunto completamente diferente de problemas. É preciso evitar a qualquer custo um tom de pregação. Objetividade é essencial. É preciso permitir que os personagens respirem um ar que lhes seja próprio. O autor não pode confiná-los e restringi-los a fim de satisfazer seu gosto, disposição ou preconceito. Deve estar preparado para abordá-los de diferentes ângulos, com um conjunto amplo e desinibido de perspectivas, tomá-los de surpresa, talvez, ocasionalmente, mas ainda assim dar-lhes a liberdade de seguir o caminho que preferirem. Isso nem sempre funciona. E a sátira política, evidentemente, não adere a qualquer desses preceitos, e na verdade age de maneira completamente oposta, o que está implícito em sua função.

Em minha peça The Birthday Party [A festa de aniversário], creio que permiti que uma ampla gama de opções operasse em meio a uma densa floresta de possibilidades, antes de finalmente me concentrar no ato de subjugação.

Mountain Language [Idioma da montanha] não pretendia atingir uma gama de operação tão ampla. É brutal, curta e feia. Mas os soldados da peça se divertem um pouco com ela. Às vezes é fácil esquecer que os torturadores se entediam com facilidade. Precisam de uma dose de riso para manter seu ânimo. Isso, evidentemente, foi confirmado pelos acontecimentos em Abu Ghraib e Bagdá. Mountain Language dura apenas 20 minutos, mas poderia se estender por hora após hora, interminavelmente, com o mesmo padrão repetido vezes sem conta, interminavelmente, hora após hora.

Ashes to ashes [Do pó ao pó], por outro lado, me parece transcorrer sob a água. Uma mulher que está se afogando, a mão que se ergue por sobre as ondas e volta a desaparecer, tentando encontrar outras pessoas mas sem achar ninguém ali, quer acima, quer abaixo da água. Existem apenas sombras, reflexos, flutuando. A mulher é uma figura perdida em uma paisagem afogada, uma mulher incapaz de escapar ao destino trágico que parecia caber apenas a outros.

Mas, da mesma forma como eles morreram, ela deve morrer.

A linguagem política, tal qual usada pelos políticos, não se aventura por qualquer parte desse território, já que a maioria dos políticos, pelos indícios de que dispomos, não estão interessados na verdade, e sim no poder, e na manutenção desse poder. Para manter o poder é essencial que as pessoas sejam mantidas na ignorância, que vivam ignorando a verdade, até mesmo a verdade de suas vidas. O que nos cerca, portanto, é uma vasta tapeçaria de mentiras, das quais nos alimentamos.

Como sabem todas as pessoas aqui presentes, a justificativa para a invasão do Iraque era o fato de que Saddam Hussein possuía um perigoso arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais podiam ser disparadas em prazo de apenas 45 minutos, e seriam capazes de causar chocante devastação. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque tinha um relacionamento com a rede Al Qaeda e era co-responsável pela atrocidade de 11 de setembro de 2001 em Nova York. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque representava uma ameaça para a segurança do mundo. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade.

A verdade é algo de inteiramente diferente. A verdade se relaciona à maneira pela qual os Estados Unidos compreendem seu papel no mundo, e escolhem personificá-lo.

Mas antes que eu retorne ao presente, gostaria de mencionar o passado recente, e com isso quero dizer a política externa dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Acredito que seja obrigatório, para nós, sujeitar esse período a pelo menos alguma forma de escrutínio limitado, que é tudo que o tempo disponível nos permitirá, aqui.

Todos sabem o que aconteceu na União Soviética em toda a Europa Oriental no período do pós-guerra: a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a supressão impiedosa do pensamento independente. Tudo isso foi amplamente documentado e comprovado.

Mas o que pretende defender aqui é que os crimes dos Estados Unidos no mesmo período só foram registrados de maneira superficial, quanto menos documentados, e ainda menos reconhecidos como crimes de qualquer ordem. Acredito que isso precise ser encarado, e que a verdade a esse respeito tenha considerável importância para a situação em que o mundo agora se encontra. Ainda que restringidas, em certa medida, pela existência da União Soviética, as ações dos Estados Unidos em todo o mundo deixavam claro que o país concluíra dispor de carta branca para fazer o que desejasse.

A invasão direta de um Estado soberano jamais foi o método predileto dos Estados Unidos, na realidade. No geral, os norte-americanos preferem o que costuma ser descrito como "conflitos de baixa intensidade". Um conflito de baixa intensidade significa que milhares de pessoas morrem, mas de maneira mais lenta do que se você lançasse uma bomba contra elas em uma ação rápida. Significa que você infecta o coração do país, estabelece um tumor maligno e assiste enquanto a gangrena se espalha. Quando a população foi subjugada ou espancada até a morte, e seus amigos – os militares e as grandes empresas – ocupam o poder confortavelmente, você convoca as câmeras e anuncia que a democracia prevaleceu. Essa era uma situação comum na política externa norte-americana, durante os anos aos quais me refiro.

A tragédia da Nicarágua é um caso altamente significativo. Eu decidi mencioná-la aqui como poderoso exemplo da visão norte-americana quanto ao papel de seu país no mundo, tanto então quanto agora.

Participei de uma reunião na embaixada norte-americana em Londres, no final dos anos 80.

O Congresso dos Estados Unidos estava se preparando para decidir se concederia mais dinheiro aos Contras em sua campanha contra o Estado da Nicarágua. Eu era membro de uma delegação que deporia em favor da Nicarágua, mas o mais importante integrante dessa delegação era o padre John Metcalf. O líder da equipe norte-americana era Raymond Seitz, então primeiro secretário da embaixada e mais tarde embaixador dos Estados Unidos em Londres. O padre Metcalf disse: "Senhor, cuido de uma paróquia no norte da Nicarágua. Os fiéis locais construíram uma escola, um centro de saúde, um centro cultural. Vivíamos em paz. Alguns meses atrás, uma força de Contras atacou a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro médico. Estupraram enfermeiras e professoras, massacraram médicos, da maneira mais brutal. Comportaram-se como selvagens. Por favor, exijam que o governo dos Estados Unidos retire seu apoio a essas chocantes atividades terroristas".

Raymond Seitz tinha ótima reputação como homem racional, responsável e altamente sofisticado. Era muito respeitado nos círculos diplomáticos. Ele ouviu, fez uma pausa e a seguir disse, de forma solene: "Padre, permita-me dizer-lhe uma coisa. Na guerra, pessoas inocentes sofrem". Surgiu um silêncio gélido. Nós o encaramos. Ele não mostrou qualquer hesitação.

As pessoas inocentes, de fato, sempre sofrem.

Por fim, alguém disse: "Mas nesse caso as 'pessoas inocentes' foram vítimas de uma atrocidade cruel subsidiada por seu governo, uma dentre muitas. Se o Congresso conceder mais verbas aos Contras, novas atrocidades como essas acontecerão. Não é verdade? O seu governo, portanto, não deveria ser considerado culpado por apoiar atos de assassinato e destruição praticados contra os cidadãos de um país soberano?"

Seitz se manteve imperturbável. "Não concordo que os fatos, tais como apresentados, sustentem essas asserções", afirmou.

Quando estávamos saindo da Embaixada, um dos assessores da delegação norte-americana disse que apreciava minhas peças. Eu não respondi.

Devo lembrá-los de que, naquele período, o presidente Reagan afirmou que "os Contras são o equivalente moral de nossos Pais Fundadores".

Os Estados Unidos apoiaram a brutal ditadura de Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. O povo nicaragüense, liderado pelos sandinistas, derrubou esse regime em 1979, em uma inspiradora revolução popular.

Os sandinistas não eram perfeitos. Eram dotados de dose considerável de arrogância, e sua filosofia política continha dose considerável de elementos contraditórios. Mas eram pessoas inteligentes, racionais e civilizadas. Decidiram estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses vítimas da pobreza foram resgatados, à beira da morte. Mais de 100 mil famílias receberam terras. Duas mil escolas foram construídas. Uma notável campanha de alfabetização reduziu o analfabetismo no país a menos de 15%. A educação gratuita foi estabelecida, bem como um serviço gratuito de saúde. A mortalidade infantil foi reduzida em um terço. A poliomielite foi erradicada.

Os Estados Unidos denunciaram essas realizações como subversão marxista/leninista. Na opinião do governo norte-americano, um exemplo perigoso estava sendo estabelecido. Se fosse permitido que a Nicarágua estabelecesse normas básicas de justiça social e econômica, se o país conseguisse elevar seus padrões de saúde e educação e obter unidade social e auto-respeito nacional, os países vizinhos talvez começassem a fazer as mesmas perguntas e a agir da mesma maneira. Existia, na época, uma feroz resistência ao status quo em El Salvador.

Falei anteriormente sobre uma "tapeçaria de mentiras" que nos cerca. O presidente Reagan usualmente se referia à Nicarágua como "calabouço totalitário". A mídia, e com certeza o governo, britânicos consideravam que a declaração representasse um resumo acurado e justo. Mas não existem, na verdade, registros de que esquadrões da morte estivessem em operação sob o governo sandinista. Não há histórico de tortura. Não há registro de brutalidade militar sistemática ou oficial. Nenhum religioso foi assassinado na Nicarágua. Na verdade, o governo contava com três religiosos em suas fileiras, dois padres jesuítas e uma missionária de Maryknoll. Os calabouços totalitários na verdade existiam nos países vizinhos, em El Salvador e na Guatemala. Os Estados Unidos derrubaram o governo guatemalteco democraticamente eleito, em 1954, e estima-se que mais de 200 mil pessoas tenham caído vítimas das ditaduras militares que se sucederam.

Seis dos mais distintos religiosos jesuítas do mundo foram assassinados cruelmente na Universidade Centro-Americana de El Salvador, em 1989, por um batalhão do regimento Alcatl, treinado em Fort Benning, Geórgia, EUA. O arcebispo Romero, homem de extraordinária coragem, foi assassinado enquanto celebrava a missa. Estima-se que 75 mil pessoas tenham morrido. Por que foram mortas? Foram mortas porque acreditavam que uma vida melhor era possível e devia ser conquistada. Essa crença as qualificava imediatamente como comunistas. Morreram porque ousaram se opor ao status quo, ao infinito platô de pobreza, doença, degradação e opressão que lhes cabia desde o nascimento.

Os Estados Unidos por fim conseguiram derrubar o governo sandinista. Demoraram alguns anos, mas perseguição econômica incansável e 30 mil mortes acabaram por solapar o espírito do povo nicaragüense. Eles estavam exaustos, e a pobreza voltou a atacar. Os cassinos se reinstalaram no país. A saúde e educação gratuitas não mais existiam. As grandes empresas voltaram a todo vapor. A "democracia" havia triunfado.

Mas essa "política" de forma alguma estava restrita à América Central. Foi aplicada em todo o mundo. Era incessante. E todos a tratam como se nunca tivesse acontecido.

Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras de direita surgidas no mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Basta citar Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, evidentemente, o Chile. Os horrores infligidos pelos Estados Unidos ao Chile em 1973 jamais poderão ser purgados, e não serão perdoados nunca.

Centenas de milhares de mortes aconteceram nesses países. Elas realmente aconteceram? E podem ser atribuídas, em todos os casos, à política externa norte-americana? A resposta é que sim, elas aconteceram, e podem ser atribuídas à política externa norte-americana. Mas é como se não tivessem ocorrido.

Jamais aconteceram. Nada aconteceu, em tempo algum. Mesmo quando estavam acontecendo, essas coisas não estavam acontecendo. Não importavam. Não mereciam interesse. Os crimes dos Estados Unidos foram sistemáticos, constantes, cruéis, impiedosos, mas pouca gente fala sobre eles. Temos de reconhecer o talento norte-americano. O país exerceu uma manipulação clínica do poder em todo o mundo, enquanto posava o tempo todo como força que deseja o bem universal. Foi um ato brilhante, e até mesmo sutil, de hipnotismo, que obteve imenso sucesso.

Eu gostaria de afirmar diante de vocês que os Estados Unidos são sem a menor dúvida o maior espetáculo do planeta. Ainda que sejam brutais, impiedosos, desdenhosos e indiferentes, são também muito espertos. Como vendedores, eles não têm rivais, e o produto que eles mais vendem é o amor pelos Estados Unidos, por eles mesmos. É uma idéia vencedora. Ouçam as palavras de qualquer presidente norte-americano, na televisão, quando afirma que "digo ao povo norte-americano que é hora de orar e de defender os direitos do povo norte-americano, e peço ao povo norte-americano que confie em seu presidente quanto à ação que ele está por executar em nome do povo dos Estados Unidos".

É um estratagema cintilante. A linguagem é empregada de maneira a impedir que o pensamento atue. As palavras "o povo norte-americano" oferecem uma almofada verdadeiramente voluptuosa de segurança, de confiança. Não é preciso pensar. Simplesmente recoste-se na almofada. A almofada talvez sufoque a sua inteligência e suas faculdades críticas, mas é muito confortável. Isso não se aplica, claro, aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza, ou aos dois milhões de homens e mulheres detidos no vasto gulag de penitenciárias que se estende ao longo do território norte-americano.

Os Estados Unidos agora nem se incomodam mais em usar a desculpa dos conflitos de baixa intensidade. Não vêem mais utilidade em usar a reticência ou a astúcia. Colocam as cartas na mesa sem medo e sem favor. Simplesmente não ligam a mínima para as Nações Unidas, a lei internacional ou os dissidentes e críticos, que consideram impotentes e irrelevantes. Além disso, dispõem de um cordeirinho na coleira, que os segue balindo alegremente, o patético, submisso Reino Unido.

O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Será que um dia ela existiu? O que quer dizer essa expressão? Refere-se a um termo raramente empregado nos nossos dias, a consciência? Uma consciência que se relaciona não apenas aos nosso atos mas à responsabilidade de que compartilhamos pelos atos alheios? Será que isso tudo morreu? Pensem na baía de Guantánamo. Centenas de pessoas detidas sem acusação por mais de três anos, sem direito a representação legal, sem direito a processos justos, tecnicamente detidas para sempre. Essa estrutura totalmente ilegítima é mantida em flagrante desafio à Convenção de Genebra. É não apenas tolerada mas raramente comentada pelo que costumamos designar como "comunidade internacional".

Esse ultraje criminoso está sendo cometido por um país que se declara "líder do mundo livre". Será que nós pensamos sobre os habitantes da baía de Guantánamo? O que a imprensa tem a dizer sobre eles? Surgem ocasionalmente em alguma pequena reportagem na página seis. Foram consignados a uma terra de ninguém da qual é de fato possível que nunca retornem. No momento, pode ser que estejam em greve de fome, e sendo alimentados à força. Há cidadãos britânicos entre eles. Não existe nada de sutil no procedimento usado para forçar um detento a se alimentar. Nenhum sedativo ou analgésico. Um tubo é inserido pelo nariz do prisioneiro, até sua garganta. A pessoa vomita sangue. Isso constitui tortura. O que o secretário do Exterior britânico tem a dizer sobre isso? Nada. O que o primeiro-ministro britânico tem a dizer sobre isso? Nada. Por que nada? Porque os Estados Unidos determinaram que criticar sua conduta na baía de Guantánamo constitui violação de aliança. Quem não está com eles, está contra eles. Por isso, Blair mantém a boca fechada.

A invasão do Iraque foi um ato de banditismo, um ato de gritante terrorismo de Estado, e demonstrou completo desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e mais mentiras, por absurda manipulação da mídia, e portanto do público; um ato cujo objetivo é consolidar o controle econômico e militar norte-americano sobre o Oriente Médio, disfarçado de ação de último recurso, já que todas as demais justificativas não conseguiram defender a idéia de que se trataria de um ato de libertação. Uma formidável afirmação de poderio militar, responsável pela morte e mutilação de milhares e mais milhares de pessoas inocentes.

Nós levamos tortura, munição fragmentável, projéteis de urânio, inumeráveis atos de homicídio aleatório, miséria, degradação e morte ao povo iraquiano, e a isso chamamos "levar liberdade e democracia ao Oriente Médio".

Quantas pessoas será preciso matar antes que o líder possa ser qualificado como assassino em massa ou criminoso de guerra? Cem mil? Mais que o suficiente, é o que eu imaginaria. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam indiciados diante do Tribunal Internacional de Justiça. Mas Bush foi esperto. Não ratificou o tratado que constitui o Tribunal Internacional de Justiça. Assim, se qualquer soldado, ou, aliás, político norte-americano for levado a julgamento, Bush já alertou que recorrerá à força para libertá-lo. Mas Tony Blair ratificou a constituição do tribunal, e portanto poderia ser processado. Podemos fornecer o endereço dele ao tribunal, caso exista interesse. É Downing Street, número 10, Londres.

A morte nesse contexto é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair dão importância muito pequena à morte. Pelo menos 100 mil iraquianos foram mortos por bombas e mísseis norte-americanos antes que a insurgência do Iraque começasse. Essas pessoas não importam. As mortes delas não existem. São um vazio. Não estão sequer sendo registradas como vítimas fatais. "Não contamos cadáveres", disse o general norte-americano Tommy Franks.

Nos primeiros dias da invasão, os jornais britânicos publicaram em suas primeiras páginas fotos de Tony Blair beijando um menininho iraquiano. "Uma criança agradecida", afirmavam as legendas. Poucos dias mais tarde, uma reportagem e foto publicadas em página interna mostravam um menino de quatro anos com os braços amputados. A casa de sua família foi destruída por um míssil. Todos morreram. "Quando vou ter meus braços de volta?", ele perguntava. Bem, Tony Blair não o estava abraçando, ou a qualquer outra criança mutilada, ou a qualquer cadáver ensangüentado. O sangue é sujo. Mancha a camisa e a gravata quando você está fazendo um discurso sincero na televisão. Os dois mil norte-americanos mortos são motivo de embaraço. São transportados para seus túmulos no escuro. Os funerais são discretos, realizados em locais distantes. Os mutilados apodrecem em suas camas, alguns pelo resto de suas vidas. Assim, mortos e mutilados apodrecem, em tipos diferentes de leito.

Eis um extrato de Estou explicando algumas coisas, poema de Pablo Neruda:

E certa manhã tudo estava queimando
uma manhã as fogueiras
saltaram da terra
devorando seres humanos
e depois disso o fogo,
a pólvora depois disso,
e depois disso o sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com monges encapuzados abençoando feridas
vieram pelo céu para matar crianças
e o sangue das crianças corria pelas ruas
sem ruído, como sangue de crianças.
Chacais que os chacais desprezariam
pedras que o musgo seco morderia e cuspiria longe
víboras que as víboras abominariam.
Face a face com você eu vi o sangue
da Espanha subindo qual maré
para afogá-lo em uma onda
de orgulho e facas.
Generaistraiçoeiros:
procurem minha casa morta,
olhem a Espanha morta:
de cada casa metal em chamas flui
em lugar de flores
de cada órbita ocular da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta um rifle com olhos
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão
o alvo de seus corações.
E vocês perguntarão: por que a poesia dele
não fala de sonhos e folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.
Venham e vejam o sangue nas ruas.
Venham e vejam
o sangue nas ruas.
Venham e vejam
o sangue nas ruas! *

Permitam-me deixar bem claro que ao citar um poema de Neruda não estou de maneira alguma comparando a Espanha republicana de Neruda ao Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em nenhum outro trabalho de poesia moderna li descrição tão poderosa e visceral do bombardeio a civis.

Eu afirmei anteriormente que os Estados Unidos são agora completamente francos quanto a colocar suas cartas na mesa. É esse o caso. É uma política oficialmente declarada, definida agora como "domínio completo do espectro". Não é um termo que eu tenha cunhado: eles o fizeram. "Domínio completo do espectro" quer dizer controle da terra, mar, ar e espaço, e todos os recursos subjacentes. Os Estados Unidos ocupam hoje 702 instalações militares em todo o mundo, em 132 países, com a honrosa exceção da Suécia, evidentemente. Não sabemos exatamente como eles chegaram lá, mas lá estão, sem dúvida.

Os Estados Unidos possuem oito mil ogivas nucleares ativas e operacionais. Duas mil delas estão em alerta imediato, prontas para lançamento em 15 minutos. O país está desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidos como "arrasa-bunkers". Os britânicos, sempre cooperativos, planejam substituir o míssil nuclear que empregam, o Trident. Contra quem, imagino, eles estão apontados? Osama bin Laden? Você? Eu? Joe Dokes? China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que essa infantil insanidade, a posse e ameaça do uso de armas nucleares, é o cerne da filosofia política atual dos Estados Unidos. Precisamos nos lembrar de que os Estados Unidos estão sempre em pé de guerra, e não mostram sinais de relaxar sua postura.

Muitos milhares, se não milhões, de pessoas nos Estados Unidos mesmos estão comprovadamente enojadas, envergonhadas e enraivecidas diante das ações de seu governo, mas sob a situação atual ainda não são uma força política coerente. Mas a ansiedade, incerteza e medo que podemos ver crescendo a cada dia nos Estados Unidos não devem diminuir.

Sei que o presidente Bush dispõe de muitos redatores de discursos extremamente competentes, mas eu gostaria de me oferecer como voluntário para o posto. Proponho o seguinte discurso, curto, a ser feito ao país em rede de televisão. Eu o vejo sério, com o cabelo cuidadosamente penteado, convincente, sincero, quase sedutor, ocasionalmente empregando um sorriso sardônico, estranhamente atraente, um homem másculo.

"Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é ruim. O Deus dele é ruim. O Deus de Saddam era ruim, mas ele não tinha Deus. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não arrancamos a cabeça das pessoas. Acreditamos na liberdade. Deus também. Não sou um bárbaro. Sou o líder democraticamente eleito de uma democracia que ama a liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Nós usamos eletrocuções compassivas e injeções letais compassivas. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou bárbaro. Ele é. E ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Está vendo esse punho? Ele é minha autoridade moral. E não se esqueça disso".

A vida de um escritor é altamente vulnerável, uma atividade quase nua. Não precisamos lamentar esse fato. O escritor faz sua escolha e tem de viver com ela. Mas é lícito dizer que você fica aberto a todos os ventos, alguns dos quais de fato gélidos. Você está por sua conta, isolado. Não encontra abrigo ou proteção a menos que minta, o que permite que você construa sua própria proteção e, poder-se-ia alegar, se torne político.

Eu me referi à morte algumas vezes, esta noite. Citarei agora um de meus poemas, chamado Morte.

Onde o corpo foi encontrado?
Quem encontrou o corpo?
O corpo estava morto quando encontrado?
Como o corpo foi encontrado?
Quem era o corpo?
Quem era o pai ou filha ou irmão
Ou tio ou irmã ou mãe ou filho
Do corpo morto e abandonado?
O corpo estava morto quando abandonado?
O corpo foi abandonado?
Por quem ele foi abandonado?
O corpo estava nu ou vestido para uma viagem?
O que faz com que o corpo seja declarado morto?
O corpo morto foi declarado morto?
Como você sabia que o corpo estava morto?
Você lavou o corpo
Fechou-lhe ambos os olhos
Enterrou o corpo
Deixou-o ao abandono
Você beijou o corpo

Quando nos olhamos no espelho acreditamos que a imagem que vemos seja acurada. Mas basta um movimento de um milímetro e a imagem muda. Na verdade, estamos olhando uma gama infinita de reflexos. Mas às vezes o escritor precisa quebrar o espelho porque é do outro lado do espelho que a verdade nos encara.

Acredito que a despeito das enormes dificuldades que existem, cabe-nos como cidadãos, com ferrenha, inamovível e feroz determinação intelectual, definir a verdade real de nossas vidas e nossas sociedades. Trata-se de uma obrigação crucial para todos nós. É de fato compulsória.

Se essa determinação não for incorporada por nossa visão política, não teremos esperança de restaurar aquilo que está quase perdido para nós: a dignidade do homem."

* Excerto de I'm Explaining a Few Things, de Pablo Neruda, traduzido por Nathaniel Tarn para o inglês, em Pablo Neruda: Selected Poems, Jonathan Cape, Londres, 1970. Uso licenciado pelo Random House Group.

Tradução: Paulo Migliacci

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Versejando

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Um prato, Emanuel Priolli

Sou muitas e várias
Por que nenhuma face me contenta?
O espelho não reflete minha alma,
O cansaço, as tormentas...

É preciso ter a mesa sempre posta
À espera das sutilezas, das flores frescas.
O que não tem definição
Não se traduz em indiferença.

Os textos falam, as trilhas fogem...
Mas o que fazer se nenhuma face me contenta?

terça-feira, dezembro 06, 2005

Minha A.,

Já é tarde aqui, mas não tenho sono. Acabei de chegar, tomei um banho e corri para o papel. Precisava te falar.
Como nossa correspondência andava tão íntima, acabei não te contando algumas coisas. Não, não foi esquecimento, apenas o momento não era oportuno.
Acabamos de ensaiar a peça, querida. Por sinal, hoje foi o último ensaio antes da pré-estréia que será amanhã.
Ficaremos apenas uma semana em cartaz em Paris, depois excursionaremos pela Europa.
Estou ansiosa, deve ser por isso que não tenho sono.
Ah! Consegui o papel da Blanche Dubois! Lembro de como adoravas esta personagem do Tenessee Williams. Ainda gostas, A?
É realmente incrível como vocês são parecidas. Já percebestes? Em todo o tempo de preparação, oficinas, marcação de texto, pude observar a semelhança. O processo de criação da personagem quase me esgotou porque foi um mergulho profundo em nossas vidas.
Queria dizer-te que suas últimas cartas foram cruciais para definir minha Blanche, A. Não tenho como te agradecer.
Estarei de volta à Paris no início da primavera. Aí abriremos para uma longa temporada.
Gostaria tanto que você viesse e ficasse o tempo que quisesse, A. Venha! Assista a peça e conte-me suas impressões. Descanse, dê um tempo para sua relação e, por favor, traga “nossa” filha para eu conhecer. Vai ser divertido. Mostraremos Amboise e seu jardim de delícias à nossa pétite. Quero que ela saiba da existência dos frutos rubros na mais tenra idade, assim ela entenderá que a felicidade é um fato.

Estás sentada?
Meu maior sonho – depois daquele que se mostrou impossível – vai ser realizado. O diretor da minha companhia topou encenar A paixão segundo G.H!
Dei-lhe o livro de presente. Ele leu. Gostou. Marcou um encontro comigo, conversamos sobre o texto, o enfoque, trocamos idéias e ele quer dirigir um monólogo baseado no texto dela, da nossa Clarice. E tem mais! Ele vai usar o material do meu livro, lembra d’O diário de G.H? Meus apontamentos sobre o livro da Clarice? Pois é, o texto finalmente ficou pronto e eu encontrei alguém louco o suficiente para experimentá-lo.
A estréia da peça será simultânea ao lançamento do livro.
Eu não abro mão da sua presença, A!

Acho que depois disso, eu já posso morrer, querida. Dificilmente eu serei mais feliz do que sou agora.

Beijos,

V.

P.S.: Dentro dos próximos dias, não terei tempo de postar a carta. Então pedirei à minha mãe que o faça assim que ela puder.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Vitrine #1

A partir deste mês, o Glossolalias apresenta Vitrine - um espaço de exposição.
Abrindo a nossa temporada,
Nálu Nogueira.

E então tanta coisa que eu diria
Fosse assim o contexto, o texto, a trilha.
Flores que eu daria. Meus sonhos bissextos
sutilmente apresentados em almofadas com acabamento
em passamanaria. Vestidos, guirlandas, anéis. Saia e dança, volteios
um chapéu coco para ficar divertido. Fraque.
Riso franco. Aberto. Promessas pra durar,
desenho tosco no céu. Luar. Amor
canhestro e tanto. Um texto.
E então.

Quase Luciana

quinta-feira, dezembro 01, 2005

N. da A.*

Resolvi postar esse texto do Betinho não para lembrar a dor, a morte... não.

Resolvi primeiro porque adoro o Betinho, ainda não me conformo de termos perdido um cidadão brasileiro como ele; segundo porque não é só um texto, é o depoimento emocionante de quem ama e luta pela vida; terceiro porque o tempo passou e a Aids ainda não tem cura, mas pode ser tratada.

Já não sinto tanto que as pessoas vivem sob o pânico da morte anunciada pela dor e abandono.

A ciência não pára de evoluir.
Quando penso que o AZT matou mais do que curou, lembro do Cazuza... ele poderia estar aqui cantando suas músicas e chocando as pessoas, se o tempo fosse outro... mas como ele disse: “ o tempo não pára”.

O texto do Betinho revela bem com o que essas pessoas tiveram que lidar há cinco, dez anos atrás. Elas conviveram com o terror, a falta de perspectiva, o derrotismo.

Frases como: “vou morrer”, “não sei o que me espera”... eram a tônica. Ora, ora e quem é que não vai morrer? Quem é que sabe?

Essas dúvidas não são privilégio de soropositivos, essas dúvidas são inerentes ao Ser Humano!

Eu também vou morrer! Eu não sei qual o futuro que me espera! Eu também sofro preconceitos de outras ordens.
Essas frases cabem perfeitamente no discurso de um soropositivo, de uma pessoa sem moléstia alguma, de um deprimido, de um suicida, de um faminto, de um desempregado, de um acidentado, de um pessimista...

Fica-me a pergunta: por quê? Por que estigmatizaram os doentes de aids como os paladinos dessas reflexões? Eles já têm que lidar com todos os fantasmas de uma nova realidade, isso não é suficiente?

Bem, deixo o texto do Betinho como uma mensagem de fé e de afeto, porque acredito em milagres, na transformação e nos recomeços!

Deus, em sua infinita bondade, concedeu-me a felicidade de presenciar dois milagres!
Ainda presenciarei outros. Não duvido.

* Nota da autora.

Dia Mundial de Luta Contra a Aids

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Numa manhã comum, como qualquer outra, abri o jornal e li a manchete: Descoberta a Cura da AIDS! A princípio fiquei deslocado na cama, como se a terra tivesse saído do lugar e meu quarto estivesse mais à esquerda do que de costume.

Fiquei por um tempo parado, sem saber qual deveria ser o primeiro ato de uma pessoa de novo condenada a viver. Primeiro, certificar-se. Telefonei para o meu médico. Realmente, a notícia era sólida, e o próprio presidente dava declarações na TV americana assumindo a veracidade do fato: dez pacientes em estado avançado da doença haviam tomado o CD2 e não apresentavam nenhum sinal ou sintoma da presença do vírus em seus organismos. Um eficiente viricida fora descoberto. As outras notícias seguiam o mesmo curso. O laboratório do CD2 tivera uma espetacular alta na bolsa de Nova Iorque. Na França, o Instituto Pasteur dizia que outra coincidência acompanhava os caprichos da ciência. Ali também o SD2 estava no forno, quase pronto para ser anunciado. Telefonei para o meu analista. Dei a notícia sobre a cura da AIDS e decidi que só enfrentaria a felicidade nas próximas sessões. Afinal me havia preparado tanto para a morte que a vida agora era um problema.

Do meu lado, Maria ainda dormia e não sabia que nossa vida havia mudado. Casados há 21 anos, os últimos tinham sido um tempo de tensão a cada gripe, mancha na pele, febre sem explicação. O amor feito durante tanto tempo e que havia sido interrompido pelo medo do contágio, do descuido, do imponderável, estava agora ao alcance da vida como um milagre, apesar de meus 56 anos, como costuma insistir um jornal paulista. Pensei comigo mesmo, camisinhas nunca mais! Maria dormia, ainda não sabia da novidade. Ela agora poderia ser viúva de outras coisas mais banais, mais correntes, mais normais. Ela não mais seria a viúva da AIDS. Grandes avanços. Tinha os filhos para avisar. Não mais seriam órfãos da AIDS. O pai agora tinha algo de imortal ou podia morrer como todo os mortais.

A TV continuava a mostrar cenas incríveis em Nova Iorque, e o meu telefone já começava a tocar. Afinal, eu havia sido, durante quase dez anos o entrevistado perfeito para o caso da AIDS: era hemofílico, contaminado e sociólogo. Podia desempenhar três papéis num só tempo e numa só pessoa. Eu era uma espécie de trindade aidética! Iam querer saber o que sentia, o que faria, meus primeiros atos, minhas emoções, minhas reações diante da vida e da normalidade. Imaginava as perguntas: como você se sente agora que é de novo um ser normal? O que vai fazer agora de sua vida? O que efetivamente mudou na sua vida? O que você aprendeu com a AIDS? Você continua a ter raiva do governo? Cheguei a pensar, como Chico Buarque, que daria minha primeira entrevista ao Jô Soares. Afinal, falaria da vida, tomando cerveja!

Ainda na cama, onde, de manhã, gosto de ficar, tive saudades do Henfil e do Chico, e em meio à alegria que já me contagiava, chorei. Por que haviam sofrido tanto e morrido tão fora de hora? Quanto sofrimento inútil, quanta dor que palavras não descrevem. O olhar parado de quem expira. O abandono sem remédio. A fatalidade que nem a morte enterra? Por que logo eles haviam morrido, se eram meus irmãos, a quem telefonava com a certeza de quem acreditava poder fazer isso séculos e séculos seguidos? De repente, ninguém do outro lado da linha. Números riscados numa agenda sem remédio. Ainda a lembrança do Chico no enterro do Henfil, dizendo para mim, entre espanto e humor: hoje é o Henfil, amanhã serei eu, e você irá daqui a 03 anos... Bem, digamos 05!

E hoje estou aqui passados 04 anos, quase 05, lendo essa notícia, e eles todos mortos antes do tempo. Não há remédio para a morte de meus irmãos, que são tantos.
De repente me dou conta de que houve realmente remédio para a AIDS. É hora de levantar, atender os telefonemas, reunir o pessoal da ABIA. Festejar com o pessoal do IBASE. Abrir um champanhe, ou uma cerveja. Telefonar para saber onde estava o tal remédio, como comprá-lo, o preço, o prazo da chegada. Estaria disponível quando, a que preço? Quem poderia comprá-lo?

Algo inusitado acontecia em paralelo. Amigos e amigas, que não suspeitava, me chamavam para dizer que eles também eram soropositivos, porque agora havia cura. Uns diziam que suas vidas sexuais eram um caos, mas que agora havia cura. Alguns me chamavam para dizer que iriam começar o tratamento, o controle e a pensar na vida, porque agora havia cura. E, finalmente, outros me diziam que agora poderiam revelar a imprensa sua condição de soropositivos, para servir de exemplo, porque agora havia cura.

De repente, dei-me conta de que tudo havia mudado porque havia cura. Que a idéia da morte inevitável paralisa. Que a idéia da vida mobiliza... Mesmo que a morte seja inevitável, como sabemos. Acordar, sabendo que se vai viver, faz tudo ter sentido de vida. Acordar pensando que se vai morrer faz tudo perder o sentido. A idéia da morte é a própria morte instalada.

De repente, dei-me conta de que a cura da AIDS existia antes mesmo de existir, e de que seu nome era vida. Foi de repente, como tudo acontece.

http://www.aids.gov.br/betinho/betinho.htm