quarta-feira, julho 13, 2011

Missivas

Aqui vai um fragmento de carta de Cortázar ao amigo, poeta e pintor, Eduardo Jonquières, no qual ele faz referência a duas de minhas muitas paixões na Literatura Brasileira: Clarice Lispector e Osman Lins.







Manágua

24 de fevereiro de 1983




Querido Eduardo:



Pode ser que esta carta chegue até você depois do meu regresso a Paris, considerando que o correio é muito lento nestas latitudes; em todo caso, vou enviá-la para agradecer a sua, que me alegrou receber aqui. Como em viagens anteriores, Tomasello [pintor e escultor argentino] tratou de me reenviar a correspondência e, de quebra, dar uma olhada no apartamento vazio há muito tempo. Volto no dia 10 de março, depois de viajar para o México daqui, via Havana.



Vou lhe falar pouco de mim, estou tão desolado que tenho dificuldade em me reconhecer toda vez que acordo. [Carol Dunlop, a última esposa de Cortázar, falecera em 2 de novembro de 1982.] Só o trabalho vem um pouco em minha ajuda, que não me faltou na Nicarágua. Entre outras coisas, esse loucos tão queridos decidiram me homenagear com a Ordem de Ruben Darío, o que me emocionou muito porque é a primeira vez que a concedem a um estrangeiro. Tive de preparar um discurso e ser protagonista de uma dessas cerimônias que a gente vê tantas vezes no cinema ou na televisão: mas, neste caso, havia tanto carinho por parte dos dirigentes e do público que o lado protocolar não me incomodou nem um pouco. Deram-me uma fita com a gravação do ato e dos discursos (Sergio Ramírez leu um que que reivindica a personalidade inteira de Darío, não somente os cisnes e o modernismo); se quiser podemos passá-la em Paris na casa de alguém que tenha o aparelho de vídeo, e você poderá vislumbrar uma das facetas deste país tão ameaçado, tão pobre e tão amável.



Afora isso, estive em expedições fronteiriças que me deixaram fraco e destroçado por mosquitos e outros insetos com uma clara vocação contrarrevolucionária. Tentando descansar dessa aventura, fui com os Flakoll a Corn Island, um pequeno paraíso à base de coqueiros e lagostas, a uma hora e meia de teco-teco de Manágua, na costa Atlântica. E justamente lá eu tive uma nova cólica renal, desta vez de matar, que me deixou só pele e osso pelas dores, vômitos e pedrinhas por fim expelidas. Não estou nada bem nessa ida para o México, e na volta consultarei Elmaleh para ver como dar a volta por cima. O que mais me custa é lutar contra uma espécie de atonia ou de indiferença que nunca fez parte de minha personalidade; mas hoje em dia a química sabe como injetar-nos ao menos um grau normal de vitalidade.



Alegra-me saber que você gostou tanto de Avalovara, pois ainda que eu não me lembre dele em detalhes, ficou em mim como uma grande experiência de leitura. Coisas como a imagem de "Cecília, rodeada de leões", perduram em minha má memória destes tempos. Às vezes penso que o que li de mais forte nos últimos 10 anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins; dá vontade, quase, de me aventurar ao português em busca de outras coisas que talvez existam.



Assim que eu voltar nos vemos. Um abraço bem forte,



Julio



Para os dias de chuva... e de sol!

http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt