sexta-feira, março 23, 2007

As matriarcas (7)

São Pedro amanheceu alvoroçada e monotemática. O eclipse dominou todas as conversas do povoado, do mais velho ao mais jovem.
Às 7 horas da manhã, o sino da igreja badalou anunciando a primeira missa do dia. Nem mesmo o sermão de Pe. Miguel escapou de referenciar o fenômeno. Por mais que ele tentasse explicar não havia jeito.
Os mais idosos estavam temerosos, pois ainda guardavam consigo antigas crendices escatológicas. A meninada queria ficar acordada para ver a lua tingir-se de vermelho.
Naquele dia, apenas eu e mamãe fomos à Igreja. Saímos cedo, sorrateiramente, para que a bisa não notasse. Mamãe não dava ouvidos às manias da cidade e para não exasperar a bisa e nem contrariar suas regras, preferiu não ser vista.
Quando voltamos da missa, a casa estava toda fechada. Apesar do imenso calor, as janelas estavam cerradas, as cortinas baixas, portas chaveadas. Diante do oratório, a bisa rezava o terço pedindo misericórdia à Virgem Maria para que “São Pedro não acabasse em chamas”. Tia Margarida andava de um lado para o outro da casa e atrás dela vovó Totonha com um copo de água com açúcar:
- Bebe, Guida, vai te acalmar.
Eu não entendia porque um simples eclipse causava tanto desequilíbrio na rotina de todos. Tudo o que eu mais queria era pegar minha bicicleta e rumar para a clareira quando chegasse a hora. Queria observar tudo de perto.
À noite, após o jantar, levantei-me depressa da mesa e fui caminhando em direção ao quintal. A bisa puxou meu braço e perguntou:
- Onde é que a mocinha vai?
- Guardar a bicicleta – respondi gaguejando, sinal evidente da minha mentira.
- Ninguém sai de casa hoje, Olívia.
- Mas bisa, eu combinei de encontrar a turma na clareira.
- Amanhã, Olívia. Amanhã.
Chateada, fui para o quarto. Foi assim que perdi o primeiro eclipse da minha vida.

domingo, março 18, 2007

Literaturas Comparadas

Eduardo Coutinho, doutor em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia (Berkeley), considera que a escritura brasileira ganha espaço no mundo e analisa questões como o ofício de escrever e o Pós-Modernismo

Por Luiz Carlos Monteiro*

Filho do grande crítico literário e introdutor do New Criticism no Brasil Afrânio Coutinho, Eduardo de Faria Coutinho tornou-se professor titular da UFRJ, onde já lecionava desde a sua formação. Apesar de grande admirador das letras brasileiras, enveredou pelas literaturas de vários países e a isso se deveu sua escolha por pesquisar e lecionar Literatura Comparada. O seu livro Literatura Comparada na América Latina: Ensaios, de 2003, trata exatamente de questões ligadas ao comparatismo no continente latino-americano.

O OFÍCIO DE ESCREVER
Uma Oficina Literária não ensina um indivíduo a escrever, no sentido de dar-lhe qualquer tipo de receituário, mas a desenvolver suas habilidades como escritor; daí ela designar-se “oficina” ou “laboratório”. A Oficina Literária é um lugar de treinamento, para onde o indivíduo leva seus textos e os vê discutidos por colegas e por profissionais da área que os vão ajudar a aprimorá-los. Esses textos são reescritos diversas vezes, à medida que as contribuições dos demais participantes vão atuando sobre o autor, e este vai gradativamente aprimorando sua escrita até chegar a uma forma que o satisfaça naquele momento. É um trabalho coletivo, de enriquecimento mútuo, porque todos os participantes apresentam textos que são constantemente reescritos e reelaborados, a partir das contribuições oriundas das discussões com os demais. A Oficina Literária Afrânio Coutinho foi uma experiência pioneira nesse sentido e que produziu grandes frutos. Diversos poetas e contistas, por exemplo, ganharam muita projeção depois que a freqüentaram. E ela marcou a vida cultural do Rio de Janeiro na década de 1980.

AFRÂNIO COUTINHO
O meu pai exerceu uma influência constante em minha vida, sobretudo pelo exemplo de grande intelectual, erudito, mas ao mesmo tempo simples, sem sofisticações, de extraordinário pensador, sempre inquieto, indagando sobre tudo, e pelo seu caráter de pioneirismo que o levou a construir coisas como a Faculdade de Letras da UFRJ, com seus cursos de pós-graduação, modelares durante tanto tempo, e uma obra crítica e ensaística sólida, que se ergueu contra a crítica puramente impressionista, introduzindo uma perspectiva mais científica na abordagem do fenômeno literário. Ele foi sem dúvida o introdutor do New Criticism no Brasil, mas o tipo de crítica que ele aqui desenvolveu diferiu também do New Criticism na medida em que nunca deixou de lado a importância do contexto. Dentre suas diversas obras, A Literatura no Brasil tem-se destacado pelo seu cunho de monumentalidade. É uma obra de história literária coletiva que ele idealizou e coordenou, tendo escrito inclusive muitos de seus capítulos, a maioria dos quais foi reunida em outro volume, publicado sob o título de Introdução à Literatura no Brasil. É uma obra em seis volumes, que abrange toda a produção literária canônica brasileira, desde suas primeiras manifestações até o período de sua produção (2ª metade do século 20), e que foi amplamente reeditada, achando-se já na 6ª edição, atualizada. Minha participação na obra restringe-se apenas às últimas edições, que eu ajudei a rever e atualizar, e para as quais contribuí também com um capítulo sobre o Pós-Modernismo.

LITERATURA BRASILEIRA
Acho que a literatura brasileira já construiu um espaço no cenário internacional, tanto que ela é estudada com interesse nas universidades de diversas partes do mundo, como nos EUA e na Europa Ocidental. Em alguns países, como, por exemplo, a França ou os EUA, há inclusive formação em Literatura Brasileira. Na América Hispânica ela está despertando um interesse cada vez maior e está penetrando cada vez mais os currículos universitários. No que diz respeito ao caráter estético-literário das obras, acho que a nossa produção não deixa nada a dever com relação às grandes literaturas do Ocidente. O que dificultou durante muito tempo o conhecimento de autores brasileiros no exterior foi a barreira idiomática, mas isso está sendo superado graças ao número cada vez maior de traduções que se têm feito de obras de nossa literatura. E essa quantidade de traduções demonstra, por sua vez, melhor do que qualquer outro aspecto, o interesse que há por tais obras.

PÓS-MODERNISMO
O que vem sendo designado de Pós-Modernismo no meio acadêmico atual é um movimento surgido nos Estados Unidos na década de 1960 como reação aos excessos do Modernismo anglo-saxão e das correntes teórico-críticas imanentistas, que haviam dominado o meio intelectual e artístico na década precedente. Surgiu com figuras como John Barth e Thomas Pynchon, no campo da literatura, e Andy Warhol na esfera das artes plásticas, e teve como uma de suas principais preocupações a crítica às chamadas “grandes narrativas da modernidade”, para empregar a expressão de Lyotard, um de seus mais destacados teóricos. O Pós-Modernismo cresceu e se espalhou bastante nas décadas seguintes, estendendo-se a outras partes do mundo e aos mais variados setores do conhecimento, e associando-se às lutas políticas que se vinham então desenvolvendo por parte dos grupos minoritários. Na literatura, ele foi amplamente marcado pela auto-referencialidade das obras e pela preocupação com a contextualização histórica, como reação à supervalorização do caráter autotélico do texto defendido pela estética anterior e pelos adeptos das correntes imanentistas. Na América Latina, a discussão sobre o pós-moderno chegou na década de 1980, dividindo a crítica entre os que aceitavam a designação e os que a consideravam mais uma importação forânea, pouco compatível com o nosso contexto. Deixando de lado as divergências e polêmicas que se desencadearam a partir daí, fato é que o termo hoje vem sendo aceito pela crítica acadêmica para designar, sobretudo, um tipo de produção que se diferencia da modernista em alguns aspectos significativos, dentre os quais a presença constante da mídia, a auto-referencialidade citada, os experimentalismos flagrantes e a necessidade premente de reler obras anteriores com o olhar do presente.

FUTURO DA LITERATURA
Eu não acredito que o mundo audiovisual venha a acabar com o livro ou com o prazer da leitura. São coisas diferentes que não me parecem incompatíveis. Ao contrário, acho até que as formas de expressão audiovisual podem contribuir para o interesse pelo livro, como é o caso dos filmes ou das novelas de televisão baseadas em obras literárias que têm contribuído bastante para a venda dessas obras. Não sou pessimista quanto ao futuro do livro.

* Luiz Carlos Monteiro é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon, Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.

Parabéns ao portuga

ANTONIO LOBO ANTUNES É O VENCEDOR DO PRÊMIO CAMÕES
LISBOA, 15 mar (AFP) - O Prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa, foi concedido na quarta-feira no Brasil ao português Antonio Lobo Antunes, informa o ministério da Cultura de Portugal.
Antonio Lobo Antunes, um dos escritores de língua portuguesa mais lidos e traduzidos no mundo, é uma das principais figuras da literatura de seu país.
Lobo Antunes pertence a uma família da grande burguesia portuguesa. Nasceu em 1942. Estudou Medicina e depois se especializou em psiquiatria. Trabalhou em um hospital de Lisboa antes de dedicar-se exclusivamente a escrever, a partir de 1985.
O serviço militar, que cumpriu em Angola de 1971 a 1973 durante as guerras coloniais portuguesas na África, inspirou vários romances.
Entre outros livros é autor de Memórias de Elefante, Os Cus de Judas , Conhecimento do Inferno, Boa Tarde Às Coisas Aqui Embaixo e O Manual dos Inquisidores.
O Prêmio Camões, que vale 100.000 euros, foi creado em 1988 por Portugal e Brasil para distinguir os autores de língua portuguesa que contribuem para o enriquecimento do patrimônio cultural deste idioma.

terça-feira, março 06, 2007

Por um país menos ordinário.

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Dom Ivo Lorscheiter (7/12/1927 - 05/03/2007)

As matriarcas (6)

Sobre a porta da loja lia-se a placa talhada na madeira: Oficina do Gegê. Como a porta estava aberta, fui entrando. Era um galpão de aproximadamente uns vinte metros quadrados sem qualquer organização. Havia pneus, câmaras de ar, remendos por toda a loja; pedaços de bicicleta – raios, pedais, selim, guidão – espalhados no chão. Era difícil caminhar por ali.

Já que não havia ninguém para atender, resolvi bater palmas – um velho hábito do interior – para pedir ajuda.

- Ô de casa!Nenhuma resposta.

- Ô de casa. Tentei novamente, mais forte dessa vez.

Lá do fundo da loja alguém respondeu:

- É já.

Em alguns segundos, surge uma figura simpática e bonachona. Entrou sorrindo largo, dentes branquíssimos, cara redonda. Não me restaram dúvidas. Só podia ser o pai de Tiziu, afinal, eram os mesmos olhos brilhantes.

- Bom dia, moça.

- Bom dia, Sr. Geraldo. Eu sou Olívia e...

- Ah! O Tiziu me falou da senhora. A professora lá da capital.

Segurei firme o riso. Fiquei imaginando como teria sido o relato daquele moleque. Ele viu os livros que trouxe e deduziu que sou professora. O que não deve ter sido muito animador, uma vez que a escola não é assunto que lhe pareça agradável.

- Isso mesmo. Ele disse-me que o senhor poderia conseguir uma boa bicicleta pra mim.

- Eu posso, mas é de segunda mão. Não se importa?

- De forma alguma. Como não vou ficar muito tempo, talvez um mês ou dois, pensei em alugar uma.

- Alugar? Nunca fiz isso, não senhora. Eu conserto, pinto, monto, desmonto, mas alugar... é novidade. Eu posso emprestar.

- Não, Sr. Geraldo. Veja aí uma bicicleta e diga o preço. Eu compro. Quando eu for embora, deixo para o senhor arrumar uma venda, um bom negócio.

Saí de lá montada numa bicicleta vermelha, com raios brilhantes, retrovisor e uma buzina de som extravagante.

É. Bicicleta é um meio de transporte sério em São Pedro das Missões.