quarta-feira, março 22, 2006

A arte engajada

Apenas um trechinho da entrevista que a Revista Continente fez com Luiz Ruffato

Você defende que a literatura é uma missão. Pode explicar melhor em que consiste essa missão e de onde vem sua outorga?

Acho que a Arte tem que transcender a realidade, tem que ser testemunha de uma época, de uma sociedade. Eu nasci no Brasil, falo português-brasileiro, venho de uma família de proletários... Ora, não dá para renunciar às minhas origens. A minha literatura é programática. Antes de começar a escrever, em 1996, eu me perguntei se valia a pena, porque não tenho vaidades mesquinhas de escrever para aparecer em jornais e revistas, ser conhecido, essas coisas. Tanto que minha literatura é totalmente dependente das minhas experiências pessoais. A literatura brasileira, com honrosas e raras exceções, não tem uma tradição de representar a classe média baixa (não digo o marginal, pois esse está bem retratado). Então, resolvi encarar esse problema. Me dispus a dar voz e rosto e vida àquelas pessoas todas que participaram da minha vida e que se afundaram no mais profundo anonimato, aquele de que fala Manuel Bandeira, dos que sequer possuem um nome inscrito na lápide. É um compromisso político meu... Quem me outorgou essa missão? Penso que da mesma maneira que nas tribos mais distantes da nossa história, onde cada um tinha uma função, havia também o contador de histórias, que funcionava como uma memória viva das tradições do povo. Não tenho talento para nada a não ser escrever. Então, a mim foi dada a missão de contar a História do Brasil do ponto de vista de quem nunca participou da festa
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segunda-feira, março 20, 2006

O diário de G.H. (5)

O reverso da medalha

Não sabia o que fazer. Estava em choque.
Preocupações menores acorreram ao pensamento: “ficarei com o corpo tatuado?”, “nunca mais poderei usar um decote?”.
O pranto explodiu, um medo repentino tomou-me de assalto, contudo, instantaneamente fui pensando em algo para me acalmar e comecei a cantarolar uma canção. Aos poucos já respirava normalmente.
Corri para a sala, procurei na estante o dicionário de mitos. Artêmis, Artêmis... Artêmis! Achei. A tal coisa havia grafado o nome de forma errada.

“Tida como virgem e defensora da pureza, era também protetora das parturientes e estava ligada a ritos de fecundidade; na Ática, enfatizou-se seu caráter de ‘senhora das feras’. Apesar dessa imagem protetora, Artêmis exibia facetas cruéis: matou o caçador Órion; condenou à morte a ninfa Calisto por deixar-se seduzir por Zeus; transformou Acteão em cervo para ser despedaçado por sua própria matilha e, com Apolo, exterminou os filhos de Níobe e Anfião, para vingar uma suposta afronta”.

Lembrava-me que a morte de Orion havia sido uma fatalidade, um ardil preparado por Apolo, mas isso não vinha ao caso agora. O que essa outra queria me dizer?
As costas voltaram a arder e busquei novamente o espelho.
Gritei para ela ouvir:
- Não quero que se acostume a isso. Meu corpo não é seu livro de cabeceira!
A ardência cedeu prontamente. Olhei através do espelho e minha pele estava novamente lisa, imaculada.
Vesti-me e saí de casa o mais rápido possível.
Entrei no carro, liguei o rádio e dei a partida. Distraí-me ouvindo as músicas e quando percebi já havia passado do bar. Olhei pelo retrovisor e... claro, a palavra era outra!

terça-feira, março 14, 2006

O diário de G.H (4)

As imagens

Há dias encaro esse band-aid com um misto de medo e curiosidade.Ando na casa inteira num vai-e-vem desmesurado, estou ansiosa e impaciente para as visitas. Receio que elas desconfiem do meu caráter duplo e comecem a me encarar com desconfiança.

É certo que não podia viver assim, prisioneira em meu próprio lar ou como um refém dando refúgio ao bandido. E por que eu acho que isso que está em mim é um inimigo? Como posso temer a mim mesma?

Fui até a gaveta da penteadeira e tirei um espelho desses que aumentam. Posicionei sua face em frente ao machucadinho e, de olhos fechados, puxei o band-aid de uma vez só. Abri os olhos e a feridinha tinha cicatrizado!Fiquei intragável por alguns dias, procurando no peito um vestígio do machucado que pudesse me revelar os tais olhos.

Vai ver a minha outra teve medo de mim e cimentou internamente as paredes para não ser mais incomodada. Sinto dizer que é uma bobagem, pois agora estou decidida a saber mais dessa criatura e não vou descansar enquanto não encontrá-la novamente.

Decidida a esquecer a obsessão, nem que fosse por um curto período, resolvi sair de casa e ver pessoas. Foi então que ao prender os cabelos num rabo de cavalo a fim de me maquiar, aproximei-me bem do espelho. Senti que por trás dos meus olhos um outro par de olhos me observava, atento. Puxei a cadeira para mais perto, mas eles já não estavam lá. De repente, uma ardência nas costas, virei-me abruptamente.

Estava lá grafado na pele: A I R T E M I S.

quinta-feira, março 02, 2006

O Diário de G.H. (3)

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Red dress, Michael Austin

A hora do susto

Surpreendentes eram seus olhos quando raspei com a minha unha a primeira camada de pele. Era uma feridinha besta, destas que a gente cutuca para se ver livre, mas eis que sob meu peito saltaram aqueles olhos persecutórios, loucos de vontade de saber quem quebrava a casca do ovo antes da hora.
Havia uma hora prevista para que ela nascesse? Saberia ela que estava escondida em mim ou seria sempre um embrião em gestação? Seu azar foi a tal feridinha causando um certo incômodo ao toque da minha mão e pontas de dedo.
Levei um susto, sem saber se continuava puxando a pele ou dava um jeito de devolver a casca ao lugar de onde tirei. Ali imóvel sob aquela cadeira, encarando os tais olhos, fiquei com essa indagação por muito tempo, até que sua mão abrupta empurrou-me por dentro, impelindo ao salto. Corri para o armário do banheiro: o band-aid dar-me-ia a trégua necessária para saber o que fazer com a tal descoberta.