sexta-feira, dezembro 30, 2005

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Quero as conchas – todas elas.
as dor mar – madrepérolas de delícias;
tuas mãos – cálice de promessas;
teus lábios – a casa dos meus sonhos.

Em troca dou-te meus ouvidos de indecifráveis segredos;
Minha vulva de tenras umidades.

Meus seios são tua casa, alimenta-te.
Regala-te. Suga-o prontamente,
Retira-lhe o mel.
E na hora do descanso, oferto-te meu ventre.
Vem, repousa.
Lança tuas sementes.

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Para os amantes do cordel

A editora cearense Tupynanquim faz dois lançamentos bastante expressivos.

Um é uma edição especial para colecionadores (apenas 500 exemplares) de uma amostra expressiva da obra de Leandro Gomes de Barros (1865, + 1918), em comemoração aos 140 anos do seu nascimento. São 12 folhetos, acondicionados em uma caixeta de papelão, com capa em preto e dourado contendo os seguintes títulos: Juvenal e o Dragão, O Cavalo que Defecava Dinheiro, O Testamento do Cachorro, A Vida de Pedro Cem, Casamento e Divórcio da Lagartixa, O Cachorro dos Mortos, Meia Noite no Cabaré, A Sogra Enganando o Diabo, A Donzela Teodora, A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento (em dois volumes), além do folheto Leandro Gomes de Barros – O Pioneiro da Literatura de Cordel. O Cavalo que Defecava Dinheiro e O Testamento do Cachorro inspiraram Ariano Suassuna na criação de três dos mais marcantes e engraçados episódios da sua obra-prima Auto da Compadecida. Já o personagem Cancão de Fogo faz parte da progênie de heróis picarescos, remotamente inspirados em “Ulisses” e da qual faz parte outro personagem de cordel, João Grilo, também aproveitado por Ariano.

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O outro é uma parceria da Tupynanquim com pernambucana Coqueiro e a também cearense Edições Livro Técnico. As Aventuras de Dom Quixote em versos de cordel – de Antônio Klévisson Viana – é uma adaptação, resumida, da novela cervantina, cantada em sextilhas e inserindo-se nas comemorações pela passagem dos seus 400 anos.

Canta o poeta:

“Quem ler este livro tira
Algumas boas lições:
Quão imutável é o sonho
Para muitas gerações!
Dirá: “Quixote está vivo
Em nossas vãs ilusões!”

Leandro Gomes de Barros – 140 anos, de Antônio Klévisson Viana, caixa com 12 folhetos, R$ 25,00.
As Aventuras de Dom Quixote em Versos de Cordel, de Antônio Klévisson Viana, 48 páginas, R$ 25,00.
Informações: (85) 3217.2891/9116.8296 e/ou kleviana@ig.com.br


P.S.:
A literatura de cordel é assim chamada pela forma como são vendidos os folhetos, dependurados em barbantes (cordão), nas feiras, mercados, praças e bancas de jornal, principalmente das cidades do interior e nos subúrbios das grandes cidades. Essa denominação foi dada pelos intelectuais e é como aparece em alguns dicionários. O povo se refere à literatura de cordel apenas como folheto.
A tradição dessas publicações populares, geralmente em versos, vem da Europa. No século XVIII, já era comum entre os portugueses a expressão literatura de cego, por causa da lei promulgada por Dom João V, em 1789, permitindo à Irmandade dos Homens Cegos de Lisboa negociar com esse tipo de publicação.
Esse tipo de literatura não existe apenas no Brasil, mas, também, na Sicilia (Itália), na Espanha, no México e em Portugal. Na Espanha é chamada de pliego de cordel e pliegos sueltos (folhas soltas). Em todos esses locais há literatura popular em versos.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

...é quase Natal

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E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita.
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o príncipe, estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda. - Ah! Desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- O que quer dizer cativar?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro amigos, disse. Que quer dizer cativar?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa criar laços...
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
Mas a raposa voltou a sua idéia:
- Minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música. E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o príncipe, mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me! Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas".


O pequeno príncipe, Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, dezembro 21, 2005

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A carta de Beatriz vazou-me o peito. Senti-me mutilada como se inadvertidamente pisasse numa mina e de repente – onde estão minhas pernas?

Pus-me de luto por ti e por todos os sonhos abortados. Pela primeira vez compreendi, na carne, a dor de não poder ter filhos. Senti que a vida escorria-me do ventre numa hemorragia doída e incontida. Sonhos que não vingam são como filhos abortados.

Invejo e admiro-te, minha querida amiga, mais do que qualquer pessoa que tenha conhecido, tu soubestes transformar morte em vida.

Na próxima semana embarco para Paris. Vou ao lançamento d’O diário, vou colher os frutos rubros e selvagens produzidos por tuas mãos.

Com esta, encerra-se a série Missivas

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Mini

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Aqui estou eu, sentado numa praça, tomando um café e fingindo serenidade, mas minhas mãos estão trêmulas e geladas. Ondas de calor e lufadas de ar frio revezam-se em mim como se quisessem espantar todas as indagações que pululam na minha mente.

"Como surgirá? O que estará vestindo? Serão ainda seus cabelos bichos ferozes a seduzir?"

Combinamos não nos descrevermos ou nos identificarmos. Somente trocamos número de telefone caso não sejamos mais capazes de nos reconhecermos, afinal a última vez que a vi foi há 30 anos, mas uma beleza como a dela, o tempo não apaga.

Lembro-me como era bela. Não falo dessa beleza plastificada, das passarelas, com prazo de validade, perecível.
Há mulheres que causam dor e cegueira, são tão escancaradamente belas que chegam a agredir os comuns, parecem gritar ao mundo, em sons estridentes, seus desenhos e contornos.

Hannah era bela de outra forma.
Sua beleza não desfilava por aí, nem se revelava a toda hora. Para vê-la era preciso um olhar atento, quase arqueológico. Por baixo daquele invólucro agradável havia uma outra camada a escandir.

Descobri sua beleza ao longo de três breves anos.

Era cinicamente bela quando estávamos rodeados de pessoas, mas era impossível um comentário, então ela arqueava a sobrancelha direita, ensaiava um sorriso que não se completava e tudo estava dito.

Como era linda quando se arrumava toda para uma ocasião especial! E a maneira como sentava-se? E quando folheava as páginas de um livro?
Existia algo etéreo quando conversava; se o tema era de seu interesse então, seus olhos faiscavam, abria um sorriso largo, gesticulava muito, assumia uma postura avantajada.

Mas ela era bonita mesmo quando durante uma única semana em todo o mês inventava que precisava fazer exercícios físicos. Acordava cedo e ia correr. Voltava atrasada e faminta. Tomava um banho rápido, mas tinha tempo para sentar-se à mesa, servir-se de capuccino e devorar um pão inteiro com requeijão e mortadela!
Depois vestia seus jeans e saía apressada e feliz, acreditando-se mais magra.

Aos domingos, costumava ela mesma fazer a faxina da casa. Algumas vezes cheguei intencionalmente sem aviso e flagrei-a descalça, de shorts, camiseta velha e num coque pra lá de desalinhado preso por um lápis. Ela olhava-me fingindo desaprovação, balançava a cabeça negativamente e dizia toda mandona: “veio atrapalhar ou ajudar? Se veio atrapalhar, se manda, mas se ficar com a segunda alternativa, na cozinha tem balde e vassoura te esperando”. Virava-se de uma só vez e quando eu voltava da cozinha, completamente munido, ela piscava o olho e gargalhava.
Ainda hoje escuto aquele som, a música...

Olhei para o relógio, meia hora se passara e ninguém se aproximou. Pensei em telefonar, mas desisti.
Olhei para os lados, reparei nas mesas e não vi ninguém que pudesse se parecer com ela.

Pedi outro café, começou a chover e resolvi entrar e sentar no balcão.
Ao lado, mas sentada de costas para mim, uma mulher de cabelos muito curtos – “não era ela, não com esses cabelos” – parecia tentar convencer a garçonete a trazer-lhe algo fora do cardápio. Para me distrair da longa espera, comecei a prestar atenção na conversa de ambas. A moça não brigava, não havia bate-boca, como uma criança que quer ser atendida, ela dizia com olhos pidões: “não quero croissant de ervas finas, para mim, o único acompanhamento que vai bem com capuccino é pão com mortadela!”

- Pão com mortadela?!?

A estranha virou-se, sorriu cinicamente e arqueou a sobrancelha direita.

Tudo estava dito.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

A.,

Tomei a liberdade de abrir as duas últimas cartas que você escreveu para V. Peço desculpas antecipadas, pois não tenho como hábito violar correspondências, como você bem sabe, mas o momento tornou tudo isso necessário. Senti-me aliviada por tê-lo feito, uma vez que se aproxima a data de sua viagem.

O que tenho para dizer-lhe é urgente demais, A. Seria mais fácil e rápido dar um telefonema, mas faltou-me coragem para pronunciar as palavras. De qualquer forma, minha filha sempre adorou escrever, devotava às palavras um amor profundo e delicado, então, acho que ela aprovaria minha iniciativa. Também sei que cultivava o hábito de escrever cartas a você, pessoa que ela amou verdadeiramente.

Ela tem duas gavetas repletas de cartas – todas suas – cuidadosamente amarradas e catalogadas por datas.

Lembro que eu dizia-lhe para telefonar, mas ela redargüia: “os manuscritos são insuperáveis, mama. Eles guardam a ansiedade da espera, o contato da mão com o papel, a caligrafia pessoal e intransferível. Cartas possuem identidade e alma... sem contar que sou uma pessoa fora de moda”.

Dizia-me sempre que a correspondência entre Mário de Andrade e Manoel Bandeira, bem como a de Pessoa com Mario de Sá-Carneiro perderiam toda a graça e paixão se, ao invés de cartas, eles trocassem e-mails frios e impessoais.

Eu ria dessa mania dela e hoje, depois de anos sem escrever uma linha, vejo que ela estava completamente certa. Dizia com aquele ar petulante: “um dia minha correspondência com A. dará um belo livro”.

Querida A., acho que gostará de saber que Um bonde chamado desejo foi sucesso absoluto durante toda a semana que esteve em cartaz em Paris. Nunca tive tanto orgulho de V! Ela estava radiante e jamais Blanche Dubois (Vivian Leigh que me perdoe!) pareceu-me tão real.

Na semana passada, nossa V. telefonou-me de Berlim e contou-me que retornariam mais cedo que o previsto, pois um dos rapazes adoecera, acho que o “Stanley Kowalski”.

Bem, há três dias atrás, na viagem de volta, houve um acidente na estrada e o ônibus da companhia de teatro tombou... nossa V. não resistiu.

Sei que não é a mesma coisa, mas se ainda desejar, terei imenso prazer em recebê-las em minha casa, você e sua pequena Tereza.

Sinceramente,
Beatriz

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Elogio à lucidez

Aos que não crêem na função social da Arte ou, pior, para os que acreditam que a Arte não tem qualquer função, que sua raison d'être é a estética, apresento o discurso do poeta e dramaturgo Harold Pinter proferido, em vídeo, na Academia Sueca, durante cerimônia de entrega do Premio Nobel de 2005.
Deliciem-se (ou não)!


"Em 1958, escrevi o seguinte:

"Não existem distinções concretas entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente ou verdadeira ou falsa; pode ser verdadeira e falsa a um só tempo".

Acredito que essa alegação continue a fazer sentido e continue a se aplicar à exploração da realidade por intermédio da arte. Portanto, como escritor eu reafirmo o que disse. Mas não posso fazê-lo como cidadão. Em minha condição de cidadão, me cabe perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?

A verdade na dramaturgia é sempre fugaz. Não é possível encontrá-la por inteiro, mas a busca por ela é compulsiva. É a busca que claramente propele a jornada. A busca é a sua tarefa. O mais freqüente é que você tropece na verdade em meio à escuridão, colida com ela ou capte simplesmente um vislumbre de uma imagem ou forma que parecem corresponder à verdade, muitas vezes sem compreender que o tenha feito. Mas a verdade real é que jamais existe algo como uma verdade a ser encontrada na arte dramática. As verdades são muitas. Essas verdades se contestam umas às outras, evadem umas às outras, refletem umas às outras, ignoram umas às outras, provocam umas às outras, não percebem umas às outras. Às vezes, você sente ter em mãos a verdade de um momento, e ela logo escapa por entre seus dedos e se perde.

Muitas vezes me foi perguntado de que maneira surgem as minhas peças. Não sei dizer. Nem sou capaz de resumi-las, sumarizá-las, exceto dizendo que foi aquilo que aconteceu. É aquilo que elas dizem. Foi aquilo que elas fizeram.

A maior parte das peças é engendrada por uma linha, uma palavra ou uma imagem. A palavra em questão é muitas vezes seguida, pouco depois, pela imagem. Vou lhes oferecer dois exemplos de linhas que me vieram à cabeça sem motivo aparente, seguidas de imagens, e mais tarde perseguidas por mim. As peças são The Homecoming [A volta para casa] e Old Times [Velhos tempos]. A primeira linha de The Homecoming diz "o que é que você fez com a tesoura?" A primeira linha de Old Times é "Escuro".

Em ambos os casos, eu não dispunha de quaisquer outras informações.

No primeiro caso, era evidente que alguém estava procurando uma tesoura, e indagava sobre seu paradeiro a outra pessoa de quem suspeitava pelo possível roubo do objeto. Mas eu de alguma forma sabia que a pessoa a quem a pergunta era dirigida não se importava nem um pouco com a tesoura, ou, aliás, com o sujeito que estava à procura dela.

"Escuro" eu decidi considerar como sendo a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e como resposta a uma pergunta. Em cada um dos casos, me vi compelido a investigar a questão mais a fundo. Isso aconteceu lentamente, por meio de uma dissolução muito lenta, da sombra para a luz.

Sempre começo uma peça dando aos personagens os nomes A, B e C.

Na peça que veio a se tornar The Homecoming, vi um homem entrar em uma sala decorada com parcimônia, e fazer a pergunta a um homem mais jovem, sentado em um sofá horroroso e lendo um jornal de turfe. Eu de alguma maneira suspeitava que A fosse um pai e B fosse seu filho, mas não tinha certeza. No entanto, a suspeita se confirmou pouco mais tarde quando B (que viria mais tarde a ganhar o nome Lenny) diz para A (que viria a se chamar Max): "Pai, você se incomodaria em mudar de assunto? Quero lhe perguntar uma coisa. O jantar, logo agora, o que era aquilo que comemos? Qual é o nome daquilo? Por que você não compra um cachorro? Sua comida só serve para cachorros. Sério. Dá pra imaginar que o senhor está cozinhando para um monte de cachorros". Assim, já que B chama A de "pai", me pareceu razoável presumir que fossem pai e filho. "A" era também, claramente, o responsável pela cozinha, e sua culinária não parecia ser levada em alta conta. Será que isso significava que não existia mãe na casa? Eu não sabia. Mas, como disse a mim mesmo então, os nossos inícios jamais conhecem os nossos finais.

"Escuro". Uma grande janela. Céu noturno. Um homem, A (mais tarde batizado como Deeley), e uma mulher, B (que se tornaria Kate), sentados, com drinques nas mãos. "Gorda ou magra?", pergunta o homem. Sobre quem eles estão falando? Mas a seguir vejo, de pé diante da janela, uma mulher, C (mais tarde, Anna), iluminada de maneira diferente, de costas para os dois, revelando seus cabelos escuros.

É um momento estranho, o momento de criar personagens que até aquele momento não existiam. O que vem a seguir é um procedimento espasmódico, incerto, até mesmo alucinatório, embora ocasionalmente ocorra como uma avalanche incontrolável. A posição do autor é incômoda. Em certo sentido, os personagens não o acolhem com agrado. Os personagens resistem a ele, a convivência nunca é fácil, defini-los é impossível. Mas você enfim descobre que tem em suas mãos pessoas de carne e osso, pessoas dotadas de vontade e de uma sensibilidade pessoal própria, feitas de componentes que é impossível alterar, manipular ou distorcer.

Assim, a linguagem, na arte, continua a ser uma transação altamente ambiciosa, uma areia movediça, um trampolim, uma piscina congelada que pode ceder sob seus pés, os pés do autor, a qualquer instante.

Mas, como eu disse, a busca pela verdade não pode parar. Não se pode postergá-la. Ela precisa ser encarada, naquele exato lugar, naquele exato momento.

O teatro político acarreta um conjunto completamente diferente de problemas. É preciso evitar a qualquer custo um tom de pregação. Objetividade é essencial. É preciso permitir que os personagens respirem um ar que lhes seja próprio. O autor não pode confiná-los e restringi-los a fim de satisfazer seu gosto, disposição ou preconceito. Deve estar preparado para abordá-los de diferentes ângulos, com um conjunto amplo e desinibido de perspectivas, tomá-los de surpresa, talvez, ocasionalmente, mas ainda assim dar-lhes a liberdade de seguir o caminho que preferirem. Isso nem sempre funciona. E a sátira política, evidentemente, não adere a qualquer desses preceitos, e na verdade age de maneira completamente oposta, o que está implícito em sua função.

Em minha peça The Birthday Party [A festa de aniversário], creio que permiti que uma ampla gama de opções operasse em meio a uma densa floresta de possibilidades, antes de finalmente me concentrar no ato de subjugação.

Mountain Language [Idioma da montanha] não pretendia atingir uma gama de operação tão ampla. É brutal, curta e feia. Mas os soldados da peça se divertem um pouco com ela. Às vezes é fácil esquecer que os torturadores se entediam com facilidade. Precisam de uma dose de riso para manter seu ânimo. Isso, evidentemente, foi confirmado pelos acontecimentos em Abu Ghraib e Bagdá. Mountain Language dura apenas 20 minutos, mas poderia se estender por hora após hora, interminavelmente, com o mesmo padrão repetido vezes sem conta, interminavelmente, hora após hora.

Ashes to ashes [Do pó ao pó], por outro lado, me parece transcorrer sob a água. Uma mulher que está se afogando, a mão que se ergue por sobre as ondas e volta a desaparecer, tentando encontrar outras pessoas mas sem achar ninguém ali, quer acima, quer abaixo da água. Existem apenas sombras, reflexos, flutuando. A mulher é uma figura perdida em uma paisagem afogada, uma mulher incapaz de escapar ao destino trágico que parecia caber apenas a outros.

Mas, da mesma forma como eles morreram, ela deve morrer.

A linguagem política, tal qual usada pelos políticos, não se aventura por qualquer parte desse território, já que a maioria dos políticos, pelos indícios de que dispomos, não estão interessados na verdade, e sim no poder, e na manutenção desse poder. Para manter o poder é essencial que as pessoas sejam mantidas na ignorância, que vivam ignorando a verdade, até mesmo a verdade de suas vidas. O que nos cerca, portanto, é uma vasta tapeçaria de mentiras, das quais nos alimentamos.

Como sabem todas as pessoas aqui presentes, a justificativa para a invasão do Iraque era o fato de que Saddam Hussein possuía um perigoso arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais podiam ser disparadas em prazo de apenas 45 minutos, e seriam capazes de causar chocante devastação. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque tinha um relacionamento com a rede Al Qaeda e era co-responsável pela atrocidade de 11 de setembro de 2001 em Nova York. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque representava uma ameaça para a segurança do mundo. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade.

A verdade é algo de inteiramente diferente. A verdade se relaciona à maneira pela qual os Estados Unidos compreendem seu papel no mundo, e escolhem personificá-lo.

Mas antes que eu retorne ao presente, gostaria de mencionar o passado recente, e com isso quero dizer a política externa dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Acredito que seja obrigatório, para nós, sujeitar esse período a pelo menos alguma forma de escrutínio limitado, que é tudo que o tempo disponível nos permitirá, aqui.

Todos sabem o que aconteceu na União Soviética em toda a Europa Oriental no período do pós-guerra: a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a supressão impiedosa do pensamento independente. Tudo isso foi amplamente documentado e comprovado.

Mas o que pretende defender aqui é que os crimes dos Estados Unidos no mesmo período só foram registrados de maneira superficial, quanto menos documentados, e ainda menos reconhecidos como crimes de qualquer ordem. Acredito que isso precise ser encarado, e que a verdade a esse respeito tenha considerável importância para a situação em que o mundo agora se encontra. Ainda que restringidas, em certa medida, pela existência da União Soviética, as ações dos Estados Unidos em todo o mundo deixavam claro que o país concluíra dispor de carta branca para fazer o que desejasse.

A invasão direta de um Estado soberano jamais foi o método predileto dos Estados Unidos, na realidade. No geral, os norte-americanos preferem o que costuma ser descrito como "conflitos de baixa intensidade". Um conflito de baixa intensidade significa que milhares de pessoas morrem, mas de maneira mais lenta do que se você lançasse uma bomba contra elas em uma ação rápida. Significa que você infecta o coração do país, estabelece um tumor maligno e assiste enquanto a gangrena se espalha. Quando a população foi subjugada ou espancada até a morte, e seus amigos – os militares e as grandes empresas – ocupam o poder confortavelmente, você convoca as câmeras e anuncia que a democracia prevaleceu. Essa era uma situação comum na política externa norte-americana, durante os anos aos quais me refiro.

A tragédia da Nicarágua é um caso altamente significativo. Eu decidi mencioná-la aqui como poderoso exemplo da visão norte-americana quanto ao papel de seu país no mundo, tanto então quanto agora.

Participei de uma reunião na embaixada norte-americana em Londres, no final dos anos 80.

O Congresso dos Estados Unidos estava se preparando para decidir se concederia mais dinheiro aos Contras em sua campanha contra o Estado da Nicarágua. Eu era membro de uma delegação que deporia em favor da Nicarágua, mas o mais importante integrante dessa delegação era o padre John Metcalf. O líder da equipe norte-americana era Raymond Seitz, então primeiro secretário da embaixada e mais tarde embaixador dos Estados Unidos em Londres. O padre Metcalf disse: "Senhor, cuido de uma paróquia no norte da Nicarágua. Os fiéis locais construíram uma escola, um centro de saúde, um centro cultural. Vivíamos em paz. Alguns meses atrás, uma força de Contras atacou a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro médico. Estupraram enfermeiras e professoras, massacraram médicos, da maneira mais brutal. Comportaram-se como selvagens. Por favor, exijam que o governo dos Estados Unidos retire seu apoio a essas chocantes atividades terroristas".

Raymond Seitz tinha ótima reputação como homem racional, responsável e altamente sofisticado. Era muito respeitado nos círculos diplomáticos. Ele ouviu, fez uma pausa e a seguir disse, de forma solene: "Padre, permita-me dizer-lhe uma coisa. Na guerra, pessoas inocentes sofrem". Surgiu um silêncio gélido. Nós o encaramos. Ele não mostrou qualquer hesitação.

As pessoas inocentes, de fato, sempre sofrem.

Por fim, alguém disse: "Mas nesse caso as 'pessoas inocentes' foram vítimas de uma atrocidade cruel subsidiada por seu governo, uma dentre muitas. Se o Congresso conceder mais verbas aos Contras, novas atrocidades como essas acontecerão. Não é verdade? O seu governo, portanto, não deveria ser considerado culpado por apoiar atos de assassinato e destruição praticados contra os cidadãos de um país soberano?"

Seitz se manteve imperturbável. "Não concordo que os fatos, tais como apresentados, sustentem essas asserções", afirmou.

Quando estávamos saindo da Embaixada, um dos assessores da delegação norte-americana disse que apreciava minhas peças. Eu não respondi.

Devo lembrá-los de que, naquele período, o presidente Reagan afirmou que "os Contras são o equivalente moral de nossos Pais Fundadores".

Os Estados Unidos apoiaram a brutal ditadura de Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. O povo nicaragüense, liderado pelos sandinistas, derrubou esse regime em 1979, em uma inspiradora revolução popular.

Os sandinistas não eram perfeitos. Eram dotados de dose considerável de arrogância, e sua filosofia política continha dose considerável de elementos contraditórios. Mas eram pessoas inteligentes, racionais e civilizadas. Decidiram estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses vítimas da pobreza foram resgatados, à beira da morte. Mais de 100 mil famílias receberam terras. Duas mil escolas foram construídas. Uma notável campanha de alfabetização reduziu o analfabetismo no país a menos de 15%. A educação gratuita foi estabelecida, bem como um serviço gratuito de saúde. A mortalidade infantil foi reduzida em um terço. A poliomielite foi erradicada.

Os Estados Unidos denunciaram essas realizações como subversão marxista/leninista. Na opinião do governo norte-americano, um exemplo perigoso estava sendo estabelecido. Se fosse permitido que a Nicarágua estabelecesse normas básicas de justiça social e econômica, se o país conseguisse elevar seus padrões de saúde e educação e obter unidade social e auto-respeito nacional, os países vizinhos talvez começassem a fazer as mesmas perguntas e a agir da mesma maneira. Existia, na época, uma feroz resistência ao status quo em El Salvador.

Falei anteriormente sobre uma "tapeçaria de mentiras" que nos cerca. O presidente Reagan usualmente se referia à Nicarágua como "calabouço totalitário". A mídia, e com certeza o governo, britânicos consideravam que a declaração representasse um resumo acurado e justo. Mas não existem, na verdade, registros de que esquadrões da morte estivessem em operação sob o governo sandinista. Não há histórico de tortura. Não há registro de brutalidade militar sistemática ou oficial. Nenhum religioso foi assassinado na Nicarágua. Na verdade, o governo contava com três religiosos em suas fileiras, dois padres jesuítas e uma missionária de Maryknoll. Os calabouços totalitários na verdade existiam nos países vizinhos, em El Salvador e na Guatemala. Os Estados Unidos derrubaram o governo guatemalteco democraticamente eleito, em 1954, e estima-se que mais de 200 mil pessoas tenham caído vítimas das ditaduras militares que se sucederam.

Seis dos mais distintos religiosos jesuítas do mundo foram assassinados cruelmente na Universidade Centro-Americana de El Salvador, em 1989, por um batalhão do regimento Alcatl, treinado em Fort Benning, Geórgia, EUA. O arcebispo Romero, homem de extraordinária coragem, foi assassinado enquanto celebrava a missa. Estima-se que 75 mil pessoas tenham morrido. Por que foram mortas? Foram mortas porque acreditavam que uma vida melhor era possível e devia ser conquistada. Essa crença as qualificava imediatamente como comunistas. Morreram porque ousaram se opor ao status quo, ao infinito platô de pobreza, doença, degradação e opressão que lhes cabia desde o nascimento.

Os Estados Unidos por fim conseguiram derrubar o governo sandinista. Demoraram alguns anos, mas perseguição econômica incansável e 30 mil mortes acabaram por solapar o espírito do povo nicaragüense. Eles estavam exaustos, e a pobreza voltou a atacar. Os cassinos se reinstalaram no país. A saúde e educação gratuitas não mais existiam. As grandes empresas voltaram a todo vapor. A "democracia" havia triunfado.

Mas essa "política" de forma alguma estava restrita à América Central. Foi aplicada em todo o mundo. Era incessante. E todos a tratam como se nunca tivesse acontecido.

Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras de direita surgidas no mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Basta citar Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, evidentemente, o Chile. Os horrores infligidos pelos Estados Unidos ao Chile em 1973 jamais poderão ser purgados, e não serão perdoados nunca.

Centenas de milhares de mortes aconteceram nesses países. Elas realmente aconteceram? E podem ser atribuídas, em todos os casos, à política externa norte-americana? A resposta é que sim, elas aconteceram, e podem ser atribuídas à política externa norte-americana. Mas é como se não tivessem ocorrido.

Jamais aconteceram. Nada aconteceu, em tempo algum. Mesmo quando estavam acontecendo, essas coisas não estavam acontecendo. Não importavam. Não mereciam interesse. Os crimes dos Estados Unidos foram sistemáticos, constantes, cruéis, impiedosos, mas pouca gente fala sobre eles. Temos de reconhecer o talento norte-americano. O país exerceu uma manipulação clínica do poder em todo o mundo, enquanto posava o tempo todo como força que deseja o bem universal. Foi um ato brilhante, e até mesmo sutil, de hipnotismo, que obteve imenso sucesso.

Eu gostaria de afirmar diante de vocês que os Estados Unidos são sem a menor dúvida o maior espetáculo do planeta. Ainda que sejam brutais, impiedosos, desdenhosos e indiferentes, são também muito espertos. Como vendedores, eles não têm rivais, e o produto que eles mais vendem é o amor pelos Estados Unidos, por eles mesmos. É uma idéia vencedora. Ouçam as palavras de qualquer presidente norte-americano, na televisão, quando afirma que "digo ao povo norte-americano que é hora de orar e de defender os direitos do povo norte-americano, e peço ao povo norte-americano que confie em seu presidente quanto à ação que ele está por executar em nome do povo dos Estados Unidos".

É um estratagema cintilante. A linguagem é empregada de maneira a impedir que o pensamento atue. As palavras "o povo norte-americano" oferecem uma almofada verdadeiramente voluptuosa de segurança, de confiança. Não é preciso pensar. Simplesmente recoste-se na almofada. A almofada talvez sufoque a sua inteligência e suas faculdades críticas, mas é muito confortável. Isso não se aplica, claro, aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza, ou aos dois milhões de homens e mulheres detidos no vasto gulag de penitenciárias que se estende ao longo do território norte-americano.

Os Estados Unidos agora nem se incomodam mais em usar a desculpa dos conflitos de baixa intensidade. Não vêem mais utilidade em usar a reticência ou a astúcia. Colocam as cartas na mesa sem medo e sem favor. Simplesmente não ligam a mínima para as Nações Unidas, a lei internacional ou os dissidentes e críticos, que consideram impotentes e irrelevantes. Além disso, dispõem de um cordeirinho na coleira, que os segue balindo alegremente, o patético, submisso Reino Unido.

O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Será que um dia ela existiu? O que quer dizer essa expressão? Refere-se a um termo raramente empregado nos nossos dias, a consciência? Uma consciência que se relaciona não apenas aos nosso atos mas à responsabilidade de que compartilhamos pelos atos alheios? Será que isso tudo morreu? Pensem na baía de Guantánamo. Centenas de pessoas detidas sem acusação por mais de três anos, sem direito a representação legal, sem direito a processos justos, tecnicamente detidas para sempre. Essa estrutura totalmente ilegítima é mantida em flagrante desafio à Convenção de Genebra. É não apenas tolerada mas raramente comentada pelo que costumamos designar como "comunidade internacional".

Esse ultraje criminoso está sendo cometido por um país que se declara "líder do mundo livre". Será que nós pensamos sobre os habitantes da baía de Guantánamo? O que a imprensa tem a dizer sobre eles? Surgem ocasionalmente em alguma pequena reportagem na página seis. Foram consignados a uma terra de ninguém da qual é de fato possível que nunca retornem. No momento, pode ser que estejam em greve de fome, e sendo alimentados à força. Há cidadãos britânicos entre eles. Não existe nada de sutil no procedimento usado para forçar um detento a se alimentar. Nenhum sedativo ou analgésico. Um tubo é inserido pelo nariz do prisioneiro, até sua garganta. A pessoa vomita sangue. Isso constitui tortura. O que o secretário do Exterior britânico tem a dizer sobre isso? Nada. O que o primeiro-ministro britânico tem a dizer sobre isso? Nada. Por que nada? Porque os Estados Unidos determinaram que criticar sua conduta na baía de Guantánamo constitui violação de aliança. Quem não está com eles, está contra eles. Por isso, Blair mantém a boca fechada.

A invasão do Iraque foi um ato de banditismo, um ato de gritante terrorismo de Estado, e demonstrou completo desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e mais mentiras, por absurda manipulação da mídia, e portanto do público; um ato cujo objetivo é consolidar o controle econômico e militar norte-americano sobre o Oriente Médio, disfarçado de ação de último recurso, já que todas as demais justificativas não conseguiram defender a idéia de que se trataria de um ato de libertação. Uma formidável afirmação de poderio militar, responsável pela morte e mutilação de milhares e mais milhares de pessoas inocentes.

Nós levamos tortura, munição fragmentável, projéteis de urânio, inumeráveis atos de homicídio aleatório, miséria, degradação e morte ao povo iraquiano, e a isso chamamos "levar liberdade e democracia ao Oriente Médio".

Quantas pessoas será preciso matar antes que o líder possa ser qualificado como assassino em massa ou criminoso de guerra? Cem mil? Mais que o suficiente, é o que eu imaginaria. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam indiciados diante do Tribunal Internacional de Justiça. Mas Bush foi esperto. Não ratificou o tratado que constitui o Tribunal Internacional de Justiça. Assim, se qualquer soldado, ou, aliás, político norte-americano for levado a julgamento, Bush já alertou que recorrerá à força para libertá-lo. Mas Tony Blair ratificou a constituição do tribunal, e portanto poderia ser processado. Podemos fornecer o endereço dele ao tribunal, caso exista interesse. É Downing Street, número 10, Londres.

A morte nesse contexto é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair dão importância muito pequena à morte. Pelo menos 100 mil iraquianos foram mortos por bombas e mísseis norte-americanos antes que a insurgência do Iraque começasse. Essas pessoas não importam. As mortes delas não existem. São um vazio. Não estão sequer sendo registradas como vítimas fatais. "Não contamos cadáveres", disse o general norte-americano Tommy Franks.

Nos primeiros dias da invasão, os jornais britânicos publicaram em suas primeiras páginas fotos de Tony Blair beijando um menininho iraquiano. "Uma criança agradecida", afirmavam as legendas. Poucos dias mais tarde, uma reportagem e foto publicadas em página interna mostravam um menino de quatro anos com os braços amputados. A casa de sua família foi destruída por um míssil. Todos morreram. "Quando vou ter meus braços de volta?", ele perguntava. Bem, Tony Blair não o estava abraçando, ou a qualquer outra criança mutilada, ou a qualquer cadáver ensangüentado. O sangue é sujo. Mancha a camisa e a gravata quando você está fazendo um discurso sincero na televisão. Os dois mil norte-americanos mortos são motivo de embaraço. São transportados para seus túmulos no escuro. Os funerais são discretos, realizados em locais distantes. Os mutilados apodrecem em suas camas, alguns pelo resto de suas vidas. Assim, mortos e mutilados apodrecem, em tipos diferentes de leito.

Eis um extrato de Estou explicando algumas coisas, poema de Pablo Neruda:

E certa manhã tudo estava queimando
uma manhã as fogueiras
saltaram da terra
devorando seres humanos
e depois disso o fogo,
a pólvora depois disso,
e depois disso o sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com monges encapuzados abençoando feridas
vieram pelo céu para matar crianças
e o sangue das crianças corria pelas ruas
sem ruído, como sangue de crianças.
Chacais que os chacais desprezariam
pedras que o musgo seco morderia e cuspiria longe
víboras que as víboras abominariam.
Face a face com você eu vi o sangue
da Espanha subindo qual maré
para afogá-lo em uma onda
de orgulho e facas.
Generaistraiçoeiros:
procurem minha casa morta,
olhem a Espanha morta:
de cada casa metal em chamas flui
em lugar de flores
de cada órbita ocular da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta um rifle com olhos
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão
o alvo de seus corações.
E vocês perguntarão: por que a poesia dele
não fala de sonhos e folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.
Venham e vejam o sangue nas ruas.
Venham e vejam
o sangue nas ruas.
Venham e vejam
o sangue nas ruas! *

Permitam-me deixar bem claro que ao citar um poema de Neruda não estou de maneira alguma comparando a Espanha republicana de Neruda ao Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em nenhum outro trabalho de poesia moderna li descrição tão poderosa e visceral do bombardeio a civis.

Eu afirmei anteriormente que os Estados Unidos são agora completamente francos quanto a colocar suas cartas na mesa. É esse o caso. É uma política oficialmente declarada, definida agora como "domínio completo do espectro". Não é um termo que eu tenha cunhado: eles o fizeram. "Domínio completo do espectro" quer dizer controle da terra, mar, ar e espaço, e todos os recursos subjacentes. Os Estados Unidos ocupam hoje 702 instalações militares em todo o mundo, em 132 países, com a honrosa exceção da Suécia, evidentemente. Não sabemos exatamente como eles chegaram lá, mas lá estão, sem dúvida.

Os Estados Unidos possuem oito mil ogivas nucleares ativas e operacionais. Duas mil delas estão em alerta imediato, prontas para lançamento em 15 minutos. O país está desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidos como "arrasa-bunkers". Os britânicos, sempre cooperativos, planejam substituir o míssil nuclear que empregam, o Trident. Contra quem, imagino, eles estão apontados? Osama bin Laden? Você? Eu? Joe Dokes? China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que essa infantil insanidade, a posse e ameaça do uso de armas nucleares, é o cerne da filosofia política atual dos Estados Unidos. Precisamos nos lembrar de que os Estados Unidos estão sempre em pé de guerra, e não mostram sinais de relaxar sua postura.

Muitos milhares, se não milhões, de pessoas nos Estados Unidos mesmos estão comprovadamente enojadas, envergonhadas e enraivecidas diante das ações de seu governo, mas sob a situação atual ainda não são uma força política coerente. Mas a ansiedade, incerteza e medo que podemos ver crescendo a cada dia nos Estados Unidos não devem diminuir.

Sei que o presidente Bush dispõe de muitos redatores de discursos extremamente competentes, mas eu gostaria de me oferecer como voluntário para o posto. Proponho o seguinte discurso, curto, a ser feito ao país em rede de televisão. Eu o vejo sério, com o cabelo cuidadosamente penteado, convincente, sincero, quase sedutor, ocasionalmente empregando um sorriso sardônico, estranhamente atraente, um homem másculo.

"Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é ruim. O Deus dele é ruim. O Deus de Saddam era ruim, mas ele não tinha Deus. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não arrancamos a cabeça das pessoas. Acreditamos na liberdade. Deus também. Não sou um bárbaro. Sou o líder democraticamente eleito de uma democracia que ama a liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Nós usamos eletrocuções compassivas e injeções letais compassivas. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou bárbaro. Ele é. E ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Está vendo esse punho? Ele é minha autoridade moral. E não se esqueça disso".

A vida de um escritor é altamente vulnerável, uma atividade quase nua. Não precisamos lamentar esse fato. O escritor faz sua escolha e tem de viver com ela. Mas é lícito dizer que você fica aberto a todos os ventos, alguns dos quais de fato gélidos. Você está por sua conta, isolado. Não encontra abrigo ou proteção a menos que minta, o que permite que você construa sua própria proteção e, poder-se-ia alegar, se torne político.

Eu me referi à morte algumas vezes, esta noite. Citarei agora um de meus poemas, chamado Morte.

Onde o corpo foi encontrado?
Quem encontrou o corpo?
O corpo estava morto quando encontrado?
Como o corpo foi encontrado?
Quem era o corpo?
Quem era o pai ou filha ou irmão
Ou tio ou irmã ou mãe ou filho
Do corpo morto e abandonado?
O corpo estava morto quando abandonado?
O corpo foi abandonado?
Por quem ele foi abandonado?
O corpo estava nu ou vestido para uma viagem?
O que faz com que o corpo seja declarado morto?
O corpo morto foi declarado morto?
Como você sabia que o corpo estava morto?
Você lavou o corpo
Fechou-lhe ambos os olhos
Enterrou o corpo
Deixou-o ao abandono
Você beijou o corpo

Quando nos olhamos no espelho acreditamos que a imagem que vemos seja acurada. Mas basta um movimento de um milímetro e a imagem muda. Na verdade, estamos olhando uma gama infinita de reflexos. Mas às vezes o escritor precisa quebrar o espelho porque é do outro lado do espelho que a verdade nos encara.

Acredito que a despeito das enormes dificuldades que existem, cabe-nos como cidadãos, com ferrenha, inamovível e feroz determinação intelectual, definir a verdade real de nossas vidas e nossas sociedades. Trata-se de uma obrigação crucial para todos nós. É de fato compulsória.

Se essa determinação não for incorporada por nossa visão política, não teremos esperança de restaurar aquilo que está quase perdido para nós: a dignidade do homem."

* Excerto de I'm Explaining a Few Things, de Pablo Neruda, traduzido por Nathaniel Tarn para o inglês, em Pablo Neruda: Selected Poems, Jonathan Cape, Londres, 1970. Uso licenciado pelo Random House Group.

Tradução: Paulo Migliacci

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Versejando

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Um prato, Emanuel Priolli

Sou muitas e várias
Por que nenhuma face me contenta?
O espelho não reflete minha alma,
O cansaço, as tormentas...

É preciso ter a mesa sempre posta
À espera das sutilezas, das flores frescas.
O que não tem definição
Não se traduz em indiferença.

Os textos falam, as trilhas fogem...
Mas o que fazer se nenhuma face me contenta?

terça-feira, dezembro 06, 2005

Minha A.,

Já é tarde aqui, mas não tenho sono. Acabei de chegar, tomei um banho e corri para o papel. Precisava te falar.
Como nossa correspondência andava tão íntima, acabei não te contando algumas coisas. Não, não foi esquecimento, apenas o momento não era oportuno.
Acabamos de ensaiar a peça, querida. Por sinal, hoje foi o último ensaio antes da pré-estréia que será amanhã.
Ficaremos apenas uma semana em cartaz em Paris, depois excursionaremos pela Europa.
Estou ansiosa, deve ser por isso que não tenho sono.
Ah! Consegui o papel da Blanche Dubois! Lembro de como adoravas esta personagem do Tenessee Williams. Ainda gostas, A?
É realmente incrível como vocês são parecidas. Já percebestes? Em todo o tempo de preparação, oficinas, marcação de texto, pude observar a semelhança. O processo de criação da personagem quase me esgotou porque foi um mergulho profundo em nossas vidas.
Queria dizer-te que suas últimas cartas foram cruciais para definir minha Blanche, A. Não tenho como te agradecer.
Estarei de volta à Paris no início da primavera. Aí abriremos para uma longa temporada.
Gostaria tanto que você viesse e ficasse o tempo que quisesse, A. Venha! Assista a peça e conte-me suas impressões. Descanse, dê um tempo para sua relação e, por favor, traga “nossa” filha para eu conhecer. Vai ser divertido. Mostraremos Amboise e seu jardim de delícias à nossa pétite. Quero que ela saiba da existência dos frutos rubros na mais tenra idade, assim ela entenderá que a felicidade é um fato.

Estás sentada?
Meu maior sonho – depois daquele que se mostrou impossível – vai ser realizado. O diretor da minha companhia topou encenar A paixão segundo G.H!
Dei-lhe o livro de presente. Ele leu. Gostou. Marcou um encontro comigo, conversamos sobre o texto, o enfoque, trocamos idéias e ele quer dirigir um monólogo baseado no texto dela, da nossa Clarice. E tem mais! Ele vai usar o material do meu livro, lembra d’O diário de G.H? Meus apontamentos sobre o livro da Clarice? Pois é, o texto finalmente ficou pronto e eu encontrei alguém louco o suficiente para experimentá-lo.
A estréia da peça será simultânea ao lançamento do livro.
Eu não abro mão da sua presença, A!

Acho que depois disso, eu já posso morrer, querida. Dificilmente eu serei mais feliz do que sou agora.

Beijos,

V.

P.S.: Dentro dos próximos dias, não terei tempo de postar a carta. Então pedirei à minha mãe que o faça assim que ela puder.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Vitrine #1

A partir deste mês, o Glossolalias apresenta Vitrine - um espaço de exposição.
Abrindo a nossa temporada,
Nálu Nogueira.

E então tanta coisa que eu diria
Fosse assim o contexto, o texto, a trilha.
Flores que eu daria. Meus sonhos bissextos
sutilmente apresentados em almofadas com acabamento
em passamanaria. Vestidos, guirlandas, anéis. Saia e dança, volteios
um chapéu coco para ficar divertido. Fraque.
Riso franco. Aberto. Promessas pra durar,
desenho tosco no céu. Luar. Amor
canhestro e tanto. Um texto.
E então.

Quase Luciana

quinta-feira, dezembro 01, 2005

N. da A.*

Resolvi postar esse texto do Betinho não para lembrar a dor, a morte... não.

Resolvi primeiro porque adoro o Betinho, ainda não me conformo de termos perdido um cidadão brasileiro como ele; segundo porque não é só um texto, é o depoimento emocionante de quem ama e luta pela vida; terceiro porque o tempo passou e a Aids ainda não tem cura, mas pode ser tratada.

Já não sinto tanto que as pessoas vivem sob o pânico da morte anunciada pela dor e abandono.

A ciência não pára de evoluir.
Quando penso que o AZT matou mais do que curou, lembro do Cazuza... ele poderia estar aqui cantando suas músicas e chocando as pessoas, se o tempo fosse outro... mas como ele disse: “ o tempo não pára”.

O texto do Betinho revela bem com o que essas pessoas tiveram que lidar há cinco, dez anos atrás. Elas conviveram com o terror, a falta de perspectiva, o derrotismo.

Frases como: “vou morrer”, “não sei o que me espera”... eram a tônica. Ora, ora e quem é que não vai morrer? Quem é que sabe?

Essas dúvidas não são privilégio de soropositivos, essas dúvidas são inerentes ao Ser Humano!

Eu também vou morrer! Eu não sei qual o futuro que me espera! Eu também sofro preconceitos de outras ordens.
Essas frases cabem perfeitamente no discurso de um soropositivo, de uma pessoa sem moléstia alguma, de um deprimido, de um suicida, de um faminto, de um desempregado, de um acidentado, de um pessimista...

Fica-me a pergunta: por quê? Por que estigmatizaram os doentes de aids como os paladinos dessas reflexões? Eles já têm que lidar com todos os fantasmas de uma nova realidade, isso não é suficiente?

Bem, deixo o texto do Betinho como uma mensagem de fé e de afeto, porque acredito em milagres, na transformação e nos recomeços!

Deus, em sua infinita bondade, concedeu-me a felicidade de presenciar dois milagres!
Ainda presenciarei outros. Não duvido.

* Nota da autora.

Dia Mundial de Luta Contra a Aids

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Numa manhã comum, como qualquer outra, abri o jornal e li a manchete: Descoberta a Cura da AIDS! A princípio fiquei deslocado na cama, como se a terra tivesse saído do lugar e meu quarto estivesse mais à esquerda do que de costume.

Fiquei por um tempo parado, sem saber qual deveria ser o primeiro ato de uma pessoa de novo condenada a viver. Primeiro, certificar-se. Telefonei para o meu médico. Realmente, a notícia era sólida, e o próprio presidente dava declarações na TV americana assumindo a veracidade do fato: dez pacientes em estado avançado da doença haviam tomado o CD2 e não apresentavam nenhum sinal ou sintoma da presença do vírus em seus organismos. Um eficiente viricida fora descoberto. As outras notícias seguiam o mesmo curso. O laboratório do CD2 tivera uma espetacular alta na bolsa de Nova Iorque. Na França, o Instituto Pasteur dizia que outra coincidência acompanhava os caprichos da ciência. Ali também o SD2 estava no forno, quase pronto para ser anunciado. Telefonei para o meu analista. Dei a notícia sobre a cura da AIDS e decidi que só enfrentaria a felicidade nas próximas sessões. Afinal me havia preparado tanto para a morte que a vida agora era um problema.

Do meu lado, Maria ainda dormia e não sabia que nossa vida havia mudado. Casados há 21 anos, os últimos tinham sido um tempo de tensão a cada gripe, mancha na pele, febre sem explicação. O amor feito durante tanto tempo e que havia sido interrompido pelo medo do contágio, do descuido, do imponderável, estava agora ao alcance da vida como um milagre, apesar de meus 56 anos, como costuma insistir um jornal paulista. Pensei comigo mesmo, camisinhas nunca mais! Maria dormia, ainda não sabia da novidade. Ela agora poderia ser viúva de outras coisas mais banais, mais correntes, mais normais. Ela não mais seria a viúva da AIDS. Grandes avanços. Tinha os filhos para avisar. Não mais seriam órfãos da AIDS. O pai agora tinha algo de imortal ou podia morrer como todo os mortais.

A TV continuava a mostrar cenas incríveis em Nova Iorque, e o meu telefone já começava a tocar. Afinal, eu havia sido, durante quase dez anos o entrevistado perfeito para o caso da AIDS: era hemofílico, contaminado e sociólogo. Podia desempenhar três papéis num só tempo e numa só pessoa. Eu era uma espécie de trindade aidética! Iam querer saber o que sentia, o que faria, meus primeiros atos, minhas emoções, minhas reações diante da vida e da normalidade. Imaginava as perguntas: como você se sente agora que é de novo um ser normal? O que vai fazer agora de sua vida? O que efetivamente mudou na sua vida? O que você aprendeu com a AIDS? Você continua a ter raiva do governo? Cheguei a pensar, como Chico Buarque, que daria minha primeira entrevista ao Jô Soares. Afinal, falaria da vida, tomando cerveja!

Ainda na cama, onde, de manhã, gosto de ficar, tive saudades do Henfil e do Chico, e em meio à alegria que já me contagiava, chorei. Por que haviam sofrido tanto e morrido tão fora de hora? Quanto sofrimento inútil, quanta dor que palavras não descrevem. O olhar parado de quem expira. O abandono sem remédio. A fatalidade que nem a morte enterra? Por que logo eles haviam morrido, se eram meus irmãos, a quem telefonava com a certeza de quem acreditava poder fazer isso séculos e séculos seguidos? De repente, ninguém do outro lado da linha. Números riscados numa agenda sem remédio. Ainda a lembrança do Chico no enterro do Henfil, dizendo para mim, entre espanto e humor: hoje é o Henfil, amanhã serei eu, e você irá daqui a 03 anos... Bem, digamos 05!

E hoje estou aqui passados 04 anos, quase 05, lendo essa notícia, e eles todos mortos antes do tempo. Não há remédio para a morte de meus irmãos, que são tantos.
De repente me dou conta de que houve realmente remédio para a AIDS. É hora de levantar, atender os telefonemas, reunir o pessoal da ABIA. Festejar com o pessoal do IBASE. Abrir um champanhe, ou uma cerveja. Telefonar para saber onde estava o tal remédio, como comprá-lo, o preço, o prazo da chegada. Estaria disponível quando, a que preço? Quem poderia comprá-lo?

Algo inusitado acontecia em paralelo. Amigos e amigas, que não suspeitava, me chamavam para dizer que eles também eram soropositivos, porque agora havia cura. Uns diziam que suas vidas sexuais eram um caos, mas que agora havia cura. Alguns me chamavam para dizer que iriam começar o tratamento, o controle e a pensar na vida, porque agora havia cura. E, finalmente, outros me diziam que agora poderiam revelar a imprensa sua condição de soropositivos, para servir de exemplo, porque agora havia cura.

De repente, dei-me conta de que tudo havia mudado porque havia cura. Que a idéia da morte inevitável paralisa. Que a idéia da vida mobiliza... Mesmo que a morte seja inevitável, como sabemos. Acordar, sabendo que se vai viver, faz tudo ter sentido de vida. Acordar pensando que se vai morrer faz tudo perder o sentido. A idéia da morte é a própria morte instalada.

De repente, dei-me conta de que a cura da AIDS existia antes mesmo de existir, e de que seu nome era vida. Foi de repente, como tudo acontece.

http://www.aids.gov.br/betinho/betinho.htm

quinta-feira, novembro 24, 2005

Querida V.,

Há quase dois meses enviei-te uma carta. Como não obtive respostas, fiquei sem saber se houve problemas com o serviço postal ou contigo. Espero que seja apenas uma banalidade, querida, um problema de extravio de correspondência.

Ando tendo sonhos estranhos, V., e aí lembro de ti dizendo-me para prestar muita atenção neles. Ah, V., você e suas manias! Posso ouvi-la, com ar muito sério: “somos cercados por sinais”.

Então, preste atenção nesse sinal: já é quase primavera. Não bastasse a profusão de cores e aromas que invadem Paris nessa época, vou levando uma flor muito rara para enfeitar ainda mais essa cidade – a minha Tereza.

Ligarei assim que o avião pousar.

Saudades,

A.

sexta-feira, novembro 18, 2005

Pense nisso!

Dica do meu amigo Vítor que hoje comemora dois grandes eventos.

"Feio é fumar, tu não comeces...!"
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Assista também ao vídeo!


quarta-feira, novembro 09, 2005

ESCREVER. Enganos profundos, debates e impasses que provocam o desejo de “exprimir” o sentimento amoroso numa criação (notadamente de escritura).

4. querer escrever o amor é entender a desordem da linguagem: essa região tumultuada onde a linguagem é ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva (pela expansão ilimitada do eu, pela submersão emotiva) e pobre (pelos códigos sobre os quais o amor a projeta e a nivela).


Relendo Fragmentos de um discurso amoroso do Roland Barthes, deparei-me no “verbete” ESCREVER. Refletindo um pouco e extrapolando os limites do discurso amoroso, sou capaz de generalizar que a necessidade de exprimir qualquer sentimento provoca o desejo da criação artística em suas mais diversas expressões e, no meu caso, o desejo é notadamente a de fiar escrituras.

***

Era uma vez uma história de amor e como tal pretendia-se linda, plena de significados e sintaxe perfeita, mas uma história de amor é bem mais (ou seria bem menos?) do que escrever uma história de amor.

Durante dias labutou sobre o papel, enervou-se, rasgou palavras, esmiuçou verbos. Na lixeira, jaziam infinitas possibilidades de dizer eu-te-amo: nenhuma resultou ser convincente.

Então, respirou fundo e resolveu esperar pela inspiração como o amante que, sentado ao lado do telefone, aguarda – excitado, mas fingindo paciência – os toques estridentes. Após um tempo, como o telefone não toca, a angústia toma conta.

Cansou de esperar e tolerar atrasos.

Chorou copiosamente por pouquíssimos segundos. Limpou o nariz na manga da camisa, amassou o papel entre as mãos e que era pra ser uma história de amor virou vinagre.

terça-feira, novembro 01, 2005

Existem alguns livros que conseguem manter o frescor das novas descobertas mesmo após muitas releituras.
A História de Cronópios e Famas, de Julio Cortázar é um desses livros. Não sei explicar direito, mas todas as vezes que releio esse trecho uma sensação estranha me invade. É como se chovesse dentro de mim.
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Gotas, Rui Vieira.

APLASTAMIENTO DE LAS GOTAS

Yo no sé, mira, es terrible cómo llueve. Llueve todo el tiempo, afuera tupido y gris, aquí contra el balcón con goterones cuajados y duros, que hacen plaf y se aplastan como bofetadas uno detrás de otro, qué hastío. Ahora aparece una gotita en lo alto del marco de la ventana; se queda temblequeando contra el cielo que la triza en mil brillos apagados, va creciendo y se tambalea, ya va a caer y no se cae, todavía no se cae. Está prendida con todas las uñas, no quiere caerse y se la ve que se agarra con los dientes, mientras le crece la barriga; ya es una gotaza que cuelga majestuosa, y de pronto zup, ahí va, plaf, deshecha, nada, una viscosidad en el mármol. Pero las hay que se suicidan y se entregan enseguida, brotan en el marco y ahí mismo se tiran; me parece ver la vibración del salto, sus piernitas desprendiéndose y el grito que las emborracha en esa nada del caer y aniquilarse. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adiós gotas. Adiós.

P.S1: Agradeço ao Pedro por ter me apresentado esse espetáculo pluvioso.
P.S2: Aqui tem mais Cortázar.

quinta-feira, outubro 20, 2005

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V.,

O que eu poderia esperar de você a não ser o melhor? Seu amor, paciência, generosidade... obrigada por não me julgar, minha querida, porque eu já faço bem o papel da juíza, minhas sentenças são severas demais, mas acredite, eu já posso soprar minhas feridas sem lambê-las.

Quando você me falou sobre as portas de seu castelo, lembrei-me imediatamente de sua mãe. Certa vez ela nos preparou um chá delicioso, muitos biscoitos e geléias. Você ficou calada a maior parte do tempo, olhos baixos e úmidos e quando finalmente resolveu falar foi pra pedir-lhe que me contasse a história tantas vezes repetidas a você quando criança.

Este foi o dia em que fiquei sabendo que seu pai tinha sido promovido e iria ocupar um cargo na França. Lembra V.? Tudo ainda está tão nítido na minha memória!

“Era uma vez uma ave muito rara, de plumagem exuberante. Todos os dias ela ia ao jardim da casa de Annie.
A menina observava-o da janela e já ensaiava uma aproximação. A cada dia, ela chegava mais e mais perto do bichinho até que teve uma idéia: foi à cozinha, esfarelou a casca do pão na palma de sua mão.
O pássaro vinha rápido, bicava os farelos e depois voava. Isso repetiu-se por semanas até que adquirida a confiança, ele pousou nas mãos de Annie para se alimentar sem pressa ou receios.
Ele voltava todos os dias e ambos deleitavam-se de prazer.
Um dia, a menina resolveu prolongar o encontro e assim que o pássaro pousou, ela fechou as mãos, prendendo-o e acariciando a sua plumagem.
Apesar de não ter se machucado, o pássaro ficou muito assustado e assim que Annie abriu as mãos, ele voou alto, muito alto.
No dia seguinte, ela foi esperá-lo no jardim, como sempre fazia, mas o pássaro nunca mais voltou.”

É isso o amor, não é V.? Um pássaro livre que ficará para sempre em nossas vidas se soubermos respeitar suas asas.

Todo esse tempo em que silenciei, V., foi para tomar coragem de abrir minhas mãos e libertar o pássaro que havia nelas. Resumindo: minha love story chegou ao fim. Tudo ainda é muito novo e dói terrivelmente, minha querida, ao mesmo tempo, nunca houve tanta serenidade nos meus movimentos.

Preciso te contar algo extraordinário, V! ando compulsiva com o lápis, tenho escrito qualquer coisa em qualquer pedaço de papel. Não existe muito nexo no que escrevo, mas tem sido uma descoberta deliciosamente egoísta.
Eis um mundo ao qual só a mim pertence!

Estive pensando em ir ao seu encontro.
Há quantos anos não nos vemos, V.? Seis, talvez sete? Meu Deus, minha Teresa fará quatro anos e é um absurdo que vocês não se conheçam!
Veja a sua agenda e me diga se posso chegar em Paris junto com a primavera.

Saudades,

A.

terça-feira, outubro 04, 2005

De Vitória de Santo Antão para o mundo

Dando uma barata de sebo, que não se conforma com as injustiças literárias, finalmente encontrei algo interessante, que vale a pena a visita.

Para quem, como eu, é apaixonada por ele, corra e delicie-se.

;))

quinta-feira, setembro 29, 2005

Confissões

“Tenho a minha vida nas mãos, Abel. Recebe-a.
Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo,
é cheio de botões secretos
e de facas que à mínima imperícia ou distração
saltam voando e lanham a carne”.

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José Sobral Negreiros

Eu amo-o. Isso não altera a ordem do universo. Amo-o. E amá-lo é um ato solitário, independe de sua vontade, do seu querer. Amor – uma seta que flui de mim em sua direção e é da minha natureza fluir, lançar setas.

Ninguém, nada pode impedir o fluxo que jorro abundantemente. Nem mesmo você ou sua ausência são capazes de estancar o sangue, o calor das minhas veias. Pensar que essa mágica poderia ter sido desfeita pela sua partida dói no meu corpo até os ossos, mas se este fosse o seu desejo, eu abriria minhas asas em vôo raso, porque sou pássaro visionário, possuo a força de amar e eu quero do amor tudo: a doçura, os sobressaltos, a febre, o delírio, a calmaria.

Repito. Amo-o. E o amor em nosso tempo parece-me rarefeito, em vias de extinção, uma moeda atribuída de valor de troca. Será que só a palavra AMOR sobreviverá como um registro gráfico ou sonoro ou uma peça de museu? Um objeto de recordação? O que será de tudo, de todos quando finalmente nos arrancarem a força de amar, a alegria de amar, a cólera de amar? Restauremos, então, o amor e através de nós que ele perdure.

Iniciamos novamente o nosso percurso. Deitados lado a lado somos reconduzidos, em silêncio, ao Éden, através das estrelas e do vento. Somos os protagonistas de um paraíso transfigurado porque renascemos caídos, expulsos, logo, responsáveis e cientes da porção humana. Estamos novamente de mãos dadas e a sua figura avança, amplia-se sobre mim, rompendo os limites do corpo, habitando minha carne intemporal. Repousa nos meus rios sua cabeça e sorve o mel das minhas coxas.

Calo minha boca na sua, beijo mansamente seus ombros, nuca, costas. Contraio meu corpo sobre o dele. Ele retesa-se. Mordo sua orelha e sussurro, entre dentes, uma, duas, dez, mil vezes a palavra amor na intenção de resgatar o sentido, o nexo, o som, a música. Meus seios roçam sua pele e fazemos o encaixe que começa pelos poros e atravessa o nosso centro nevrálgico. Sua mão procura minha entrada, não bate à porta, devassa meu interior, demarcando caminhos: não quer perder-se.

Olha-me do umbral da minha passagem secreta que só responde à tua senha. Não quero outras digitais tateando minhas umidades. Reconhece-me tua e descansa tranqüilo na bainha que preparei para ti. Nela só há espaço para a tua espada, forjada pelo fogo sagrado da noite. Tua lava incendeia sem queimar...guardo-a em mim, em mim... em ti, em ti somente o amor completo.


quarta-feira, setembro 28, 2005

Eu tenho essa mania de ser par.
O mundo não é par, as pessoas não o são, então, por que engendro no meu centro esse desejo?
Eu sou uma pergunta que nunca encontra resposta satisfatória. O silêncio não é bom companheiro nessas horas, ele estimula o interrogatório palavroso e eu... eu não ouso saber.
Eu tenho medo de descobrir que por baixo de tudo há o Nada, transparente e esmagador.
Talvez o Nada seja o elo arrebentado da corrente, ao partir-se, nos condenou à solidão.
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quarta-feira, setembro 21, 2005

O que ela não me pede chorando que eu não faço sorrindo?
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sexta-feira, setembro 16, 2005

Minha A.,


Eu também já tive profundas raízes, esqueces? Algumas ainda estão lá e não duvido que sempre estarão; outras eu tive que arrancar, lançar ao fogo, caso contrário, entranhariam tanto a terra... o que estou dizendo? As raízes adensaram-se demais em terras minhas, perfuraram-me quase ao ponto de morte, mas eu não queria morrer, A.

Desistir de você? Eu? O importante é que não desistas de ti!
Quantas pessoas, A., passaram por mim e partiram? Quantas? Quantas arrasaram os meus jardins, destruíram minhas rosas? Quantas temeram meus vendavais e preferiram não correr o risco? Ah, querida, eu cansei de tanta aridez, tanta covardia, rios rasos...

Cansar pode ser um bom sinal, então preste atenção aos teus sinais!
Quando eu cansei de entregar em outras mãos aquilo que só a mim pertencia, tornei-me senhora do meu castelo. Ao contrário do que imaginava, não era preciso fortificar suas estruturas, montar guarda, impedir entradas, não, nada disso... a minha maneira, escuta bem isso A., a MINHA maneira foi deixar todas as portas e janelas abertas para que as pessoas saíssem com a mesma facilidade que entravam, sem pensar que corriam riscos de serem pilhadas, encarceradas, roubadas em suas individualidades...

Um breve parêntese, querida, para uma gargalhada! O ser humano é tão tolo, A... quando vão entender que ninguém rouba a individualidade de ninguém, somos nós quem abrimos mão dela. O que a gente não suporta é ser responsável pela nossa infelicidade.

Voltemos...
Hoje, tenho uma meia dúzia de pessoas que escolheram ficar. Sim, são poucas, mas são as que importam, são as que fazem diferença, as que somam, as que amam intensamente, as que não se fartam de sobejo.

Fique tranqüila, querida. Não estou aqui para julgá-la. Não precisas provar absolutamente nada para mim, eu bem sei que não se trata de passividade. Tirando os casos patológicos, ninguém tem prazer em sofrer. Dê os passos que puderes, dentro de tuas medidas.

Eu estarei sempre aqui.

Outra coisa, antes que me esqueça. Eu comi do fruto rubro da árvore proibida, sim! E sabe o que aconteceu? Descobri um mundo vasto em dor e gozo, mergulhei nessa vastidão e Deus alegrou-se comigo.
O diabo? Ele fugiu. Não agüentou concorrência!

Tua V.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Os amigos são pessoas imprescindíveis mesmo! Não importa o vulcão que em nós germina e lança labaredas, eles invariavelmente conseguem nos emocionar.
Obrigada, Carlinhos!


Muito bonito, hein?
Retribuindo o presente (que foi muito inspirador):

Ela, o mistério em pessoa

Olhei-a intensamente.
Ofertei-lhe todo o tempo
Em sua inquietante infinitude,
E tentei plantar flores em seu Eu.

Hoje, devolveu-me o cofre
de promessas irrealizadas.
Não negocia seus mistérios.
E agora eu não sei se é por ela ou
por eles que eu estou apaixonado.

(Carlos Pereira)

sexta-feira, setembro 09, 2005

Eu, pessoa inalienável

Olhou-me diferente.
Ofertou-me o tempo
Em sua infinita relatividade,
Plantou orquídeas no meu coração.

Hoje, devolvo-lhes as chaves
De antigas promessas:
Não negocio meus mistérios,
Meus segredos são indevassáveis.

quarta-feira, agosto 31, 2005

Profissão de fé

Do ideal e da Glória

Que busca o escritor? O verdadeiro escritor, isto é: o que faz da palavra escrita sua razão de viver. Pois, como tudo, e do mesmo modo que existe, por exemplo, o mau sacerdote, também o escritor, tem os seus macacos. Os que imitam os gestos do escritor, publicando livros, discutindo sobre Joyce, dando entrevistas, e não são escritores. Estes buscam tão-somente o nome nos jornais, mais tarde as sinecuras, os postos bem pagos, as condecorações, tal ou qual prestígio social e, naturalmente, a Academia. Tais personagens não contam e não importa o que buscam: são segregados pelo mesmo chão que produz todas as outras espécies de embusteiros.

O que o escritor deseja é realizar e entregar, aos seus semelhantes, principalmente aos que falam a sua língua, obras às quais hajam consagrado o melhor de si mesmos. Trabalhar submisso a restrições, sob encomenda, é necessário em outros ofícios. No seu, a encomenda e a restrição correspondem exatamente à morte do ofício. A liberdade é seu clima.

A liberdade? De que natureza? Todas. A começar pela liberdade interior. Isto é, pelo arrefecimento, em seu íntimo, de ambições alheias à literatura e que possam desviá-lo, perdê-lo.
Essa liberdade, que, com maior ou menor esforço, pode ser alcançada em condições adversas, não basta. Uma série de fatores outros é exigida para que o ato de escrever, o ofício de escrever alcance a plenitude.
(Osman Lins. Do ideal e da glória - problemas inculturais brasileiros)

segunda-feira, agosto 22, 2005

"Amores serão sempre amáveis"

V., minha V...

Recebi seu presente. Tão delicadas as matryoshkas, querida. Não sei dizer-te se gostei mais delas ou de tua carta que li suspirando como quem lamenta o não vivido ou tem saudade do que não foi.

Eu sei que você enfrentaria todos os tormentos para deliciar-se, ainda que por uma única vez, com os frutos rubros e selvagens. Até já pensei, sorrindo sozinha, que você, tal como Eva, não hesitaria em comer da maçã mesmo que isso significasse ser banida do Paraíso.

Ah, minha V., não desistas de mim! Porque lá no fundo, eu também gostaria de poder, mas eu tenho tantos medos... por enquanto, saber da existência desse lugar tão colorido já é um grande avanço, saber que tenho para onde ir quando eu conseguir romper minhas amarras dá-me um alento enorme, mas V., aprendi a ter raízes profundas e de tanto convivermos, afeiçoei-me a elas. Eu sei quão difícil deve ser para você aceitar esse meu lado, que pode parecer passividade, mas não é, minha querida. Acredite, não é.

Eu tenho dificuldade de me desapegar e eu tomei apego até pelo que faz sangrar. Lembra que minha mãe, na sua bruta ingenuidade, nos dizia que o ser humano acostuma até com o que não presta? É, V., a gente também se acostuma às nossas próprias ruínas, às paredes caiadas, à velha e confortável poltrona de tecido puído. O baú de antiguidades também faz parte de mim.

Outras coisas também fazem parte de mim: orgulho exagerado, dificuldade em admitir um fracasso e uma boa dose de covardia, mas de tudo isso, o que mais me incomoda, querida, é saber que fracassei, que minha love story virou filme de terror, que todo o amor que tenho não é suficiente, não basta... “o amor tudo pode” é uma máxima frustrada, minha cara.

Uma hora eu vou aprender a transformar esse amor que sobra, que é resto em sementes. É preciso saber desistir, V. Deixar livre para que o que não floresceu em terras minhas, floresça em jardins outros.

Beijos,

A.

quarta-feira, agosto 17, 2005

Dos encontros

Hoje, o Glossolalias faz um ano de existência.

Meu Deus, esse blog tem exatamente um ano de palavras. Se eu pudesse encadeá-las uma após outra, qual seria o tamanho do percurso já feito?

O que escrevo tem algum valor? Faz alguma diferença? Serve para alguma coisa ou alguém?

No fundo, eu escrevo para mim, porque é vital à minha sobrevivência. Nem me lembro quando escrever tornou-se tão essencial. Parece-me que nasci assim, caneta e papel nas mãos. Às vezes é um presente, outras um fardo. Dar sentido a tudo que vaga pelo pensamento é a única maneira que encontrei de estabelecer alguma serenidade com meu interior tão caótico.

Escrevo para me justificar pessoa, para conquistar uma identidade que vai além do nome e cpf, algo que me relate, me delate. E quando eu escrevo não tenho necessidade de falar, tenho uma predisposição natural de ficar calada e isso me fez aceitar o silêncio e ser mais compreensiva com os sentidos das coisas e com a vaguidão das palavras e de seus significados que tento apreender ferozmente.

É preciso escrever assim, puro,sem truques. Meu texto é o que tenho e nele aprendo a viver, a amar, a fazer amigos, é minha realidade. É meu testemunho ainda que muitas vezes ele deponha contra mim. Depois que está pronto, ele vai viver independente, vai ter uma individualidade da qual não mais participo. Seguirá sozinho, fará seus (des)caminhos e eu? Vou gestar outros textos – filhos pródigos que jamais retornam.

De tempos em tempos, aportam nos cais, encontram pessoas que os acolhem, acrescentando-lhe novos sentidos e depois voltam a seguir viagem.

Na mágica da vida, acabo esbarrando com essas pessoas e é quando tenho notícia deles.

Confessar-me em público deu-me essa nova dimensão do texto, deu-me alguma generosidade de reconhecer que são meus sem que o pronome possessivo seja, de fato, uma posse, uma prisão.

Agradeço a todos vocês que participam e nos acolhem em seus cais.

terça-feira, agosto 16, 2005

Andei por aí perseguindo estrelas como quem caça borboletas... como se fosse possível apanhar nas mãos o brilho de quem já se apagou ou o vento sutil que o bater de asas proporciona.

Esbarrei nos impedimentos que nos separam – o espaço infinito e o balé das horas.

Tu sorrias, descrente, das minhas buscas.

Procurei gravar na areia toda a fome de mundo que eu sinto, toda essa urgência que motiva minhas entranhas, mas como demorastes, as espumas desmancharam os desenhos. Eles pareciam tão vívidos, mas já agora não resta sequer provas de sua existência.

Esperei pelo teu gesto...

O sol sangrou a tarde com seu aceno final. A noite trouxe a lua para fazer-me companhia. Logo mais a aurora veio avisar que já era tempo de despertar.

Esperei pela tua palavra...

Deixei bilhetes nos bolsos de tua roupa, olhei fixamente nos olhos teus, coloquei música, ensaiei dançar.

Não houve gesto, sequer palavra.

Hoje desfilo longe de teus olhos. Mudei a direção dos meus passos. Segui o mar que chamava pelo meu nome em sua concha. Existe um apelo em sua voz que é impossível ignorar. Não sei se é o movimento das ondas ou a força das marés... só sei que é um sussurro que lambe minhas pernas cheias de sal. E eu gosto de sua língua percorrendo minha pele.

Desejei inúmeras vezes que imitasses o mar, esperei pela arrebentação das tuas ondas para fertilizar meus sonhos, coloquei bóias indicando o caminho para que não te perdesses, para que não nos perdêssemos... mas nem o farol pode nos iluminar.

Hoje, da outra margem, observo teus movimentos e sou eu quem sorri.

Persegues estrelas como quem caça borboletas, como se fosse possível, como se fosse possível.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Quase

Há uma longa espera
No breve espaço em que
A mão antecede o gesto
E a boca anuncia o beijo.

Afago este intervalo amoroso,
Oculto profundos desejos.
Já no instante seguinte,
Transmuto.

Não faço pactos com a solidão.
Sigo na direção do que é meu.
Ainda que no fim sejamos
Só a noite escura e mais eu.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Matryoshka

A., minha querida, hoje compartilharei contigo um segredo de infância. Faço isso porque entendi ser a melhor maneira de responder tua carta tão vertiginosa e mágica. Acho que você finalmente está abrindo a primeira camada rumo ao seu centro.

Quando pequena, meu avô deu-me um presente num embrulho tosco, mal ajambrado. Notei que ele mesmo fizera o pacote com suas mãos enormes e desajeitadas. Antes, porém, de tomá-lo para mim, disse-me as seguintes palavras: "tens nas mãos a metáfora da essência humana. Se entenderes o segredo, entenderás o amor, que também responde pelo nome de vida".

Não entendi direito o que quis dizer, como não entendia muitas coisas que ele dizia. Vovô sempre falava cifrado, cheio de mistérios. Não era à toa que chamavam-no de excêntrico. Vivia entre aqueles livros enormes e pesados, colecionava miudezas, ficava dias sem sair de casa resolvendo enigmas ou criando palíndromos.

Sempre me diverti com suas esquisitices, A. Fui crescendo e ficando cada vez mais maravilhada com aquele velho. Somente hoje, querida, eu entendo que ele não era nem esquisito nem excêntrico. Acho que foi a pessoa mais lúcida que conheci.

Ah, o presente. Era uma legítima matryoshka, A. Herança de um parente russo. Devia ter uns 25 cm e dentro dela, havia outras seis iguaizinhas e menores.

Perguntas se lembro do jardim de Amboise… como eu o esqueceria, A, como? Foi em Amboise que entendi as palavras ditas por vovô. A primeira boneca, a maior, foi aberta diante daquele jardim de delícias. Lá eu tomei consciência que muitas de mim me habitavam.

Consegue me compreender, A? Abrir sua primeira matryoshka lhe proporcionou ver todo esse colorido que é a expressão da felicidade que li há pouco. Não sei o que você fará com essa descoberta, querida. Esta é uma decisão sua, solitária. A única coisa que posso lhe dizer é que abrir as bonecas seguintes significa estar diante de um outro espetáculo, uma efeméride! Mas não se iluda, a cada novo passo para dentro é uma dor, uma batalha entre quem você de fato é e as imagens distorcidas pelo espelho dos outros.

Amar – ou viver – é como brincar com as bonequinhas russas – sempre tem outra e mais outra e mais outra e é sempre a mesma bonequinha. Redescobrir-se é voltar à gênese, à primeira bonequinha que deu feição a tantas outras As que convivem em você.

E quando alcançamos o centro, ainda não é o fim. O percurso de volta à boneca maior, também tem seus tormentos.

Eu enfrentaria qualquer tormento pelos frutos rubros e selvagens, A! E você?
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quinta-feira, julho 28, 2005

Querida V.,

Eu sei que demorei a responder-te, mas não peço desculpas porque a culpa é toda sua. Sim, sua. Foste tão eloqüente na última carta que me senti contagiada pela tua febre hemorrágica. Senti-me indigna de tuas confissões, minha querida, uma vez que estava eu mesma imersa numa grande mornidão.

Foi, então, que permiti que suas palavras entranhassem na corrente sangüínea e resolvi fazer as malas.

Fartei-me de música e bons vinhos. Reatei relações com Rimbaud, Auden, Drummond, Dorothy Parker… antigos amigos que iluminaram noites frias e tardes chuvosas. Quantas vezes a companhia deles salvou-me da solidão!

Estive em tantos lugares. Vi tantos rostos, V! Mas preciso dizer-te que estive novamente em Amboise, querida. Senti uma necessidade, uma urgência em manter contato com o nosso Éden.

Voltei àquele belo jardim. Lembras dele? Frutas silvestres manchavam o chão de um vermelho caudaloso e apesar de singelas, elas me pareciam tão selvagens. Morangos, cerejas, framboesas... selvagens.

O vermelho intenso das frutas chegava a ser ofensivo, ele desafiava a palidez de tantos rostos inexpressivos, parecia gritar para que se rebelassem e também fossem selvagens.

V., depois de muito tempo, eu senti novamente que tocava o barro do qual somos feitos, senti a argila fresca e úmida ali, pronta para ser moldada ao meu bel prazer.

A vida invadiu-me.

Obrigada, V., pelo sopro regenerador.

Amor,

A.

terça-feira, julho 26, 2005

Olhar-se no espelho e perceber, sem subterfúgios, que as mudanças ocorrem. Olhar-se e não sentir dor, apenas ter a serenidade de constatar que as transformações não param de acontecer.

Foi assim com ela.
Acordou hoje pela manhã e olhou-se no espelho. Encantou-se com aquela marquinha de expressão quando sorriu; apreciou o contorno do seu rosto do jeito que é agora; redescobriu o prazer de passar o batom pelos lábios, até achou charmoso aquele sulco suave no canto dos olhos.

Sua fome de mundo já é outra ou, pelo menos, manifesta-se diferentemente.

Contemplou a si mesma com doçura e pensou: “adeus afobações e ansiedades” .
Fez tudo mansamente, tateando a tez, distraída.

Beijou o espelho, marcando-o de vermelho, como quem deixa um lembrete de algo que não pode ser ignorado ou negligenciado.

- Não posso esquecer de mim. Feliz ano novo!

sábado, julho 23, 2005

A "Lua em Libra"

Ela voltou. Finalmente voltou para preencher espaços incompletos, esculpir formas nas areias do tempo.

Lia, minha Lia, tenho um orgulho absurdo de poder te ler assim tão carne, tão sangue, tão nua.
Gosto das suas palavras que parecem delicadas, mas que no fundo escondem punhais.

sexta-feira, julho 15, 2005

Refrão

"A originalidade é impossível. No máximo, podemos variar muito ligeiramente o passado, dar-lhe um novo matiz, uma nova entonação. Cada geração escreve o mesmo poema, conta o mesmo conto. Com uma pequena diferença: a voz."
Jorge Luís Borges


Ajudo a dar os últimos retoques numa mala que parece mínima diante da infinidade de coisas sem serventia que precisam nela caber. Empurra daqui, empurra dali e um caderninho salta do canto. Puxo-o na intenção de recolocá-lo em um lugar mais apropriado, mas ele tomba e ínúmeras fotos espalham-se sobre o lençol.

Junto-as, uma a uma, e rostos jovens e prazenteiros – uma meia dúzia deles – revelam-se.



Mal podia conter a excitação de viajar sem os meus pais.
Seríamos apenas eu e minhas três amigas durante todo um final de semana. Nada de proibições, dormir e acordar cedo, olhares interrogativos.

No sítio da avó de Ana, ficaríamos todas no mesmo quarto e poderíamos conversar a noite inteira, fofocaríamos até o sono nos vencer. Nenhum adulto (sim, porque avós não são adultos. Eles fazem parte de um universo inclassificável de pessoas) por perto para dizer: “desliga a TV”, “olha esse telefone”, “não coma besteiras”.

Mamãe é que não parecia muito animada. Estava sempre com os olhos brilhando e com a boca cheia de recomendações.

Toda hora entrava no quarto para ver se não havia esquecido de colocar na sacola o remédio, o agasalho, as meias, aquele par de tênis confortáveis...

“Se sentir saudades ou não estiver bom é só ligar que vamos te buscar!”

Como não seria bom ficar um final de semana inteirinho sem regras e com minhas melhores amigas? E se eu sentisse saudades era só ligar. Sem contar que ‘vó’ Celina ia estar por perto! Mãe tem umas coisas meio inexplicáveis, parece que tem hora que fica boba, mais infantil que os próprio filhos!



- Marina, D. Marina! Oh, mãe! O ônibus da escola já está buzinando lá fora!

Limpei as lágrimas rapidamente e falei com o meu melhor sorriso:

- A mala está prontinha! Divirta-se muito, querida!

Jogou um beijo no ar e saiu na carreira.

quinta-feira, julho 14, 2005

Criaturas, vocês já tinham conhecimento disto aqui?
E por que não me disseram nada?

Visitem, visitem!

EntreLivros

terça-feira, julho 12, 2005

O Banquete

Nas horas desertas de uma sala escura, vislumbra-se apenas o halo de seu rosto. As cortinas pesadas ocultam ainda mais as formas da noite.
Perdido em pensamentos vãos, as órbitas de seus olhos saltam e iluminam-se. Contraste com a escuridão densa e opaca. Podia-se tocar o breu da noite, sentir sua espessa camada negra, fria e gelatinosa.
Tateia distraidamente os objetos sobre a mesa com a precisão de quem acerta as horas em seus milésimos de segundo.
Sua mão toca a espátula pontiaguda e, então, começa a abrir, uma por uma, as cartas guardadas no fundo da gaveta. Com destreza, enfia a ponta no canto do envelope e sai rasgando o papel firmemente num só movimento.


Seu coração ficou pesado como se a poeira do tempo tivesse se depositado nele, formando uma crosta tão dura que lhe impedia de respirar livremente.
Por muitos anos sua covardia adiou a leitura das cartas. Temia as palavras mais do que o próprio abandono ao qual se lançou. Duplo abandono.
Vivia de forma miserável, se arrastando pela casa como um pobre diabo, tinha aquela cara sempre macerada revestida de uma palidez angustiante. Seu andar era oblíquo, típico de quem se esconde de si mesmo.


Decidido a mudar, ele espera a noite chegar para encobrir-lhe as fraquezas. Tira as cartas do fundo da gaveta. Abre-as pausadamente como se prestasse um culto às palavras reclusas.
Olha aquele monte de papel e vai até a cozinha. Traz uma vela, uma bela garrafa de cabernet e um prato – a mais fina porcelana chinesa. Pica as cartas em pequenos bilhetes e serve-se deles.
Come cada pedacinho com a solenidade pedida nos banquetes e depois vai dormir.
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sexta-feira, julho 08, 2005

Novo blog no ar

Após alguns invernos, um amigo reencontrou-me através do Glossolalias.
Fiquei duplamente feliz porque além de trazê-lo de volta ao meu convívio, o Glossolalias ainda o inspirou a fazer o seu próprio blog.
Quando tiverem tempo, visitem o Beco da Ficção.