quarta-feira, agosto 03, 2005

Matryoshka

A., minha querida, hoje compartilharei contigo um segredo de infância. Faço isso porque entendi ser a melhor maneira de responder tua carta tão vertiginosa e mágica. Acho que você finalmente está abrindo a primeira camada rumo ao seu centro.

Quando pequena, meu avô deu-me um presente num embrulho tosco, mal ajambrado. Notei que ele mesmo fizera o pacote com suas mãos enormes e desajeitadas. Antes, porém, de tomá-lo para mim, disse-me as seguintes palavras: "tens nas mãos a metáfora da essência humana. Se entenderes o segredo, entenderás o amor, que também responde pelo nome de vida".

Não entendi direito o que quis dizer, como não entendia muitas coisas que ele dizia. Vovô sempre falava cifrado, cheio de mistérios. Não era à toa que chamavam-no de excêntrico. Vivia entre aqueles livros enormes e pesados, colecionava miudezas, ficava dias sem sair de casa resolvendo enigmas ou criando palíndromos.

Sempre me diverti com suas esquisitices, A. Fui crescendo e ficando cada vez mais maravilhada com aquele velho. Somente hoje, querida, eu entendo que ele não era nem esquisito nem excêntrico. Acho que foi a pessoa mais lúcida que conheci.

Ah, o presente. Era uma legítima matryoshka, A. Herança de um parente russo. Devia ter uns 25 cm e dentro dela, havia outras seis iguaizinhas e menores.

Perguntas se lembro do jardim de Amboise… como eu o esqueceria, A, como? Foi em Amboise que entendi as palavras ditas por vovô. A primeira boneca, a maior, foi aberta diante daquele jardim de delícias. Lá eu tomei consciência que muitas de mim me habitavam.

Consegue me compreender, A? Abrir sua primeira matryoshka lhe proporcionou ver todo esse colorido que é a expressão da felicidade que li há pouco. Não sei o que você fará com essa descoberta, querida. Esta é uma decisão sua, solitária. A única coisa que posso lhe dizer é que abrir as bonecas seguintes significa estar diante de um outro espetáculo, uma efeméride! Mas não se iluda, a cada novo passo para dentro é uma dor, uma batalha entre quem você de fato é e as imagens distorcidas pelo espelho dos outros.

Amar – ou viver – é como brincar com as bonequinhas russas – sempre tem outra e mais outra e mais outra e é sempre a mesma bonequinha. Redescobrir-se é voltar à gênese, à primeira bonequinha que deu feição a tantas outras As que convivem em você.

E quando alcançamos o centro, ainda não é o fim. O percurso de volta à boneca maior, também tem seus tormentos.

Eu enfrentaria qualquer tormento pelos frutos rubros e selvagens, A! E você?
Image hosted by Photobucket.com

3 comentários:

Vítor Leal Barros disse...

eu também... (dei-me o direito de responder)


a imagem das matryoshkas russas é muito interessante

Anônimo disse...

e um dia encontramos A espécie original- e seremos apenas nós, mas ainda assim em busca daquela parte que desconhecemos.

é curioso viver.

Camila
eloquencia.blogger.com.br

Lu disse...

Leal, conquistates o direito de dialogar com A., logo, opine, quem sabe ela não te escuta?
Pois é, descobri que existem outras gêneses. Diga a a.g que temos novo ponto de convergência ;o)// Ah, Camila, parece que essa busca é uma espécie de missão, Atlas carregando o mundo nas costas. Concordo contigo, é curioso viver.// Beijos