domingo, junho 17, 2007

Onde falta memória, sobra imaginação.

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Fonte: Revista Caros Amigos


Estou feliz de poder testemunhar o aniversário de 80 anos de Ariano Suassuna. Não é sempre que podemos celebrar ainda em vida uma referência que admiramos.
Sim, ele vive "lúcido" e "louco" no Recife. Ele inscreve na história da nossa literatura sua assinatura peculiar e poderosa. É, sem dúvida nenhuma, nosso cancioneiro popular. Obteve êxito na sua busca por uma estética genuinamente nacional com a brasilidade de nossa diversidade.
Ariano trabalha há mais de meio século por uma linguagem de unidade profunda, com raízes míticas, diria mesmo demiúrgicas. Sua obra caminha para uma cosmogonia, unindo teatro, poesia e romance. Soube como pouco pincelar sua ficção com notas biográficas que lhe marcaram a história pessoal e transformou-o em quem ele é.
Lembro, há alguns anos atrás, com muito entusiasmo e emoção de quando falou sobre O Romance da Pedra do Reino, esse que segundo o próprio Suassuna, é o grande romance representativo de sua literatura. Lembro de sua voz trêmula dizendo do medo que sentia de morrer, porque ele achava que não poderia terminar sua jornada antes de concluir a Pedra do Reino e agora que percebia que ela estava definitivamente escrita, talvez o sentido de sua vida tivesse chegado ao fim.
Para nossa felicidade - a minha em particular - sua vida está longe de perder o sentido. Ariano é ainda um jovem, tem grande fome de escrever e prazer em ministrar suas aulas, mesmo que este não seja mais o seu ofício... se é que quem tem compromisso com a cultura algum dia deixe de ter o ensino como ofício.
Ariano inspirou, na década de 70, o Movimento Armorial que tinha por objetivo valorizar a cultura popular do nordeste brasileiro e estava interessado na pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema. São também importantes para o Movimento Armorial, os espetáculos populares do Nordeste, encenados ao ar livre, com personagens míticas, cantos, roupagens principescas feitas a partir de farrapos, músicas, animais misteriosos como o boi e o cavalo-marinho do bumba-meu-boi.O mamulengo ou teatro de bonecos nordestino também é uma fonte de inspiração para o Movimento, que procura além da dramaturgia, um modo brasileiro de encenação e representação.

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos "folhetos" do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus "cantares", e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.
Ariano Suassuna, Jornal da Semana, Recife, 20 maio 1975.

Acho que não é muito devaneio de minha parte dizer que a Pedra do Reino está para Ariano assim como D. Quixote está para Cervantes. A Pedra do Reino é a epopéia brasileira, o romance de cavalaria nordestino e Pedro Quaderna nosso mito Sebastianístico:

Aqui morava um rei

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

sábado, junho 09, 2007

As matriarcas (9)

Semana Santa na cidade do interior é um acontecimento. Tudo se volta para o evento, todos se agitam para que não haja falhas.
A fé se evidencia, as pessoas tornam-se mais solidárias, a cidade ferve. Todos colaboram de alguma forma.
As crianças enfeitam as ruas com bandeirolas coloridas. Ficamos dias recortando papéis e enfileirando-os em barbantes muito compridos, depois cruzamos as ruas desenhando os caminhos da procissão do Senhor Morto.
Antes da grande festa, acontecem novenas e via-sacra. As pessoas reúnem-se nas casas com muita reza e cantoria. As salas ficam lotadas, com gente sentada até no chão. No começo, a concentração é grande, mas passada a primeira meia hora, as crianças tornam-se inquietas como se estivessem sentadas sobre formigueiros, os mais velhos adormecem e a cada instante são acordados aos cutucões.
Lá em casa é sempre uma comédia. Vovó Totonha puxa a reza. Vovô, nas poucas ocasiões em que me recordo de sua presença, dorme e quando começa a roncar, vovó belisca seu braço, o que faz com que desperte assustado. Tia Margarida, mamãe e eu não agüentamos a cena e damos muita risada. Os olhos da vovó e da bisa faíscam e rapidamente fazemos cara de sérias.
O que compensa os mais de sessenta minutos de castigo é certamente o lanche. Sempre tem comidas deliciosas ao término das novenas. Que Deus me perdoe, mas acho – com raras exceções – que aquele povaréu só aparece para comer.
Estava tudo pronto para a procissão da quarta-feira de cinzas. Eu jamais me esquecerei disso enquanto eu viver.
Tia Margarida caiu doente com uma gripe forte e por isso não participaria. Ela estava visivelmente chateada porque não poderia fazer o papel de Verônica. Foi preciso que vovó lhe desse um calmante. Somente depois que ela adormeceu é que saímos para a rua.
Tudo ia bem, mas de repente o céu ficou fechado, muito cinza e uma chuva torrencial começou a cair. Foi bem na hora em que Verônica enxugaria a face de Jesus.
Lá no fim da rua, um vulto todo vestido de branco vinha gritando: era Tia Margarida. Ela vestia sua camisola de linho e trazia um lençol nas mãos. Aproximou-se de “Jesus” e começou a enxugar seu rosto.
Vovó Totonha ficou paralisada.
A chuva molhou a camisola de tia Margarida e todos podiam ver seus seios.
Do mesmo jeito que chegou, ela foi embora: correndo e gritando.
Saímos atrás dela e quando chegamos à casa, ela estava no quintal, dançando e cantando em êxtase, num transe total.
Olhei para vovó Totonha e foi a primeira vez que a vi chorar. Suas lágrimas confundiam-se com as gotas da chuva.