sexta-feira, dezembro 31, 2004

Mini de Ano Novo

Fogos, luzes, vozerio, gargalhadas.
Hoje o mundo todo está barulhento e iluminado, com exceção daquele apartamento no quinto andar: luzes apagadas, silêncio, quietude.
Samuel é um homem discreto, monossilábico. Do seu apartamento emana mornidão: as luzes, a música, o som da televisão. Tudo é abafado e opaco.
Hoje, em especial, enquanto todos estão febris e velozes, Samuel medita na escuridão do seu apartamento, protegido pelo seu silêncio interno e pelas cortinas cerradas.
O estado é de catatonia.
A única coisa que vive e pulsa é a sua memória. Lá dentro, a construção tempo/espaço/imagens é elaboradíssima. Tudo está intacto – pessoas, lugares, sabores, texturas, odores.
A memória de Samuel resiste à poeira e às ranhuras. Ela é uma marca indelével que lhe resgata uma parte da vida. A outra é um cotidiano aborto.
Meia noite! Samuel ergue sua taça e balbucia: “Feliz Ano Velho”.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Mini de Natal

Todo ano era a mesma coisa.
Ela chegava com aqueles imensos olhos negros, fundos. Colava o rosto sujo no vidro, embaçando, com seu hálito, a vitrine.
De todos os brinquedos da loja, ela cismou com aquela boneca: rosto de porcelana, roupas finas, estilo século XVIII, cabelos louros e muito cacheados.
Entrava ano, saía ano, surgiam novos brinquedos, mas seus olhos pidões só enxergavam a boneca de porcelana.
Do lado de dentro, eu observava aquele romance sem palavras. Ela jamais ousou cruzar a soleira da porta, nunca ensaiou um pedido sequer. Chegava, olhava a boneca por um longo tempo.
Algumas vezes, eu trazia-lhe um lanche; ela recebia sem dizer nada, mas a expressão do seu rosto era de agradecimento. Comia, grudava de novo o rosto na vitrine e quando me dava conta, já tinha desaparecido.

***

Por um ano economizei dinheiro para comprar-lhe a tal boneca.
O Natal chegou e com ele, a garotinha.
Fiquei atenta aos seus movimentos, não podia perdê-la de vista, se não quisesse entregar-lhe o presente no próximo ano.
Pedi a uma colega para me substituir por uns instantes.
Saí e convidei a garotinha para lanchar. Ela balançou a cabeça em negativa.
Perguntei - por que não?
Pela primeira vez em quatro anos, ouvi sua voz.
- Não vão me deixar entrar.
- Vão, sim. Você entrará comigo.
Balançou novamente a cabeça:
- Todos vão ficar me olhando.
Não insisti. Notei que vestia mulambos. Eu não a constrangeria ainda mais.
Então sentamos na calçada e comemos cachorro-quente com refrigerantes.
Ela devorou o lanche como quem tem pressa, como quem tem medo de acordar de um sonho bom antes dele chegar ao fim.
Conversando, descobri que ela se chamava Dorothy. Ironia ou não, era esse o seu nome.
Levantamos. Não podia me dar ao luxo de demorar a voltar ao trabalho num período tão movimentado do ano.
Ela agradeceu muito e muitas vezes e foi se despedindo.
Pedi que esperasse um pouco.
Voltei com a caixa nas mãos embrulhada com um lindo papel de presente enfeitado com fitas vermelhas. Entreguei-lhe.
Ela ficou paralisada por uns minutos. Depois abriu o embrulho cheia de cuidados para não danificar o papel. Ela não queria rasgá-lo, queria conservar os sonhos em cada dobra que ia desfazendo.
Nunca vi alguém se iluminar tanto diante de um presente. De repente ela cresceu, suas roupas nem pareciam rotas, seu rosto ficou corado e seus olhos que eram fundos, ficaram rasos d'água.
Ela me abraçou forte, chorou aos soluços e depois me beijou.
Entrei na loja, mas fiquei observando ela indo embora, chispando, atravessando a rua feito raio ou trovão.
Vi o carro esporte se aproximando. Mal pude gritar seu nome.

Dorothy jazia no cruzamento da Alameda das Flores com Cristo Rei.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Sophia de Mello

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita

Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rastro
Que o não-vivido deixa
António Henriques

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Fuligem

O cansaço sobre mim se abate com sua mão pesada, seu sono profundo, com sua impiedosa apatia.
Os dias são de pouquíssimas palavras até mesmo porque tudo o que falo é incompreendido, ou pior, mal compreendido.
O tempo é de fragilidade e retaliação.
Busco refúgio em mim e isso é perigoso, sedutoramente perigoso.
Gosto da minha escuridão, dos meus escombros, eles não me horrorizam, não sinto sua fealdade. Como um cego, eu gosto do que conforta e não do que deslumbra.

terça-feira, dezembro 14, 2004

A gente já se acostumou (mas não devia) com a violência em todas as suas formas e graus.A gente constata, se entristece, mas não tanto a ponto de rodar a baiana.A violência circula pelos ambientes sem o menor constrangimento, até ganhou lugar na sala de estar.A gente se acostumou a acordar, dormir, trabalhar, conviver com a violência em todos os níveis: criança que sofre maus tratos dos pais, que é explorada sexualmente, mulher que toma porrada de marido, menino de rua que é espancado pela polícia, político metendo a mão na grana do povo, lesando a pátria. Sem contar a violência indireta à qual somos submetidos constantemente: somos obrigados a trabalhar com gente vil, mesquinha e burra, gente que usa a hierarquia para humilhar seus subalternos, gente incompetente para as suas atividades, mas bastante competente para criar desarmonia, enfim, a lista é grande.

Fico observando a época da barbárie e vejo que as coisas não mudaram muito. A gente saiu do domínio do confronto violento direto e se sofisticou.

Ontem tive um dia sofrível, a violência mais uma vez me esbofeteou.É a contra-gosto que escrevo o post de hoje, mas não fazê-lo me tornaria um ser humano pior.

Fiz meu segundo grau no Colégio Marista de Brasília. Foram anos ótimos, cheios de descobertas, transformações, inquietações.Alguns professores foram cruciais na minha vida, estimularam minhas habilidades, foram referência para minhas escolhas e posicionamento no mundo.Eu era um fiasco nas matérias exatas. Detestava os números e as equações. Sempre desconfiei dos resultados absolutos: dois mais dois igual a quatro, pau é pau, pedra é pedra, x = a 11, etc.Apesar dessa briga com os números, eu sempre fui fascinada por Física e Química. Como aquilo tudo era belo, filosófico e “viajante”, meu Deus!

Lembro com muito carinho de um professor de Química. Ele dava aulas práticas no laboratório – espaço tão mágico, repleto de misturas e poções.Posteriormente, ele “deixou de lecionar” para assumir o cargo de diretor do Colégio. Foi/ainda é um ótimo diretor. Diferente dos padres, que tinham aquela cara meio sisuda, ele era compreensivo, e sua experiência como professor facilitou o contato com os alunos, aproximando-nos, permitindo uma relação mais direta.Lembro de tê-lo visto com sua família, em duas ou três ocasiões – provavelmente nas festas do Colégio. E isso já tem uns 15 anos.

Pois bem, ontem, depois de tanto tempo, voltei a ter notícias deste professor.Na primeira página do jornal, li que sua filha foi brutalmente assassinada em sua casa no Lago Sul por um empregado. O caseiro não satisfeito em violentá-la, ainda a espancou, desfigurou seu rosto, estrangulou, esfaqueou e a enterrou no jardim de inverno de sua casa. Depois continuou trabalhando como se nada tivesse acontecido.Isso tudo aconteceu na sexta-feira e apenas no domingo ela foi descoberta porque seu corpo exalava mau cheiro.O crime foi premeditado. A história é muito mais cruel, cheia de requintes de maldade, envolve uma cúmplice... não vou me exceder nisto. Não é esta a minha intenção.

Desde ontem estou mal, imaginando a dor desses pais, o desespero de rever a filha desaparecida em condições tão aviltantes.Instantaneamente, reativei os vínculos afetivos de 15 anos atrás e senti muita dor, uma dor profunda e incomunicável.O rosto do meu professor não me sai da cabeça, os flahes falhos surgem a todo momento na minha memória: sua família nas festas do Colégio, uma garotinha de 3 anos de contornos indefinidos.Que porra de mundo é esse que a gente vive? Quais são os nossos valores? Existem valores? Que garantias tenho que vou voltar pra casa e encontrar tudo no lugar?

Tô passada.Eu tinha que usar o blog para denunciar isso, pra desabafar, pra prestar minha homenagem e solidariedade a essa pessoa que foi tão presente durante um período da minha vida.
Não sei se adianta, provavelmente não, mas aqui dentro de mim, eu precisava.
Não tem poema, conto, palavra que dê conta do amor.
Não tem fonema, pontuação que expresse sua inteireza, até porque o amor não quer pausas, lapsos ou intervalos. O amor, este que me habita, é coisa corridinha, encadeada, anda de mãos dadas, não suporta exílios.
O amor quer ser incluído nas mãos, coxas, braços, boca; quer obter formas tantas e outras; ser variado como o verbo.
Mas quando o amor pede pausa, (e a pausa no nosso amor é um terrível não estar em ti e em mim), apresso-me para preencher os espaços.
É quando nascem os poemas - quando vejo a cama vazia.
Uma cama vazia é como o papel frio, em branco, sem palavras. Não aquece, não transforma, não têm forma.
Descansado, o amor retorna e então as palavras cessam, se calam, vão fazer ecos em outra morada

terça-feira, dezembro 07, 2004

CONFRONTO

A palavra me toma,
Semitona.
Mastiga minhas parcas letras,
Engole outras que a alimentam
E cospe meu bolo apoético.

Ela corta tudo que sobra,
Eu soçobro...
Ela amalgama,
Eu despedaço...
Ela enovela,
Eu resvalo...
Ela finaliza,
Eu? Arre! Mato!

sexta-feira, dezembro 03, 2004

UMA ARTE

(Elizabeth Bishop - Tradução de Horácio Costa)

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.
Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.
Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.
Perdi o relógio de minha mãe. A última,
ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.
Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.
- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.