quinta-feira, junho 26, 2008

Da Amizade

(Para Camila)


Flora: Melhor da gripe?
Aurora: Melhorando, querida. E você, tá boa?
Flora sorrindo: Tô sim. Peguicinha e estranhas sensações sobre o mundo.
Aurora: Preguicinha é coisa boa, já estranhas sensações sobre o mundo... não sei, não.
Flora: Nem eu sei.
Aurora: Who knows?
Flora: Ninguém, Aurora... mas a vida tá na cara, sabe? Tudo assim muito explícito. Eu tenho enxergado demais e pra quem tem muitos sonhos isso é um horror.
Aurora: Enxergar demais não é muito legal: mata a fantasia e o sonho - ambos essenciais pra continuarmos acreditando em algo. Não é um conselho ou nada do gênero, é apenas uma observação de quem compartilha contigo toda essa limpidez de retina. Eu sou muito melhor hoje, mas em alguns aspectos sou bem pior, porque fiquei cética em relação a alguns assuntos.
Flora: Sim, é completamente isso, Aurora.
Aurora: O mesmo velho papo: enxergar demais é como amar demais, ser inteligente, ser gente demais. Demais, nessa acepção, é algo que o mundo desconhece.
Flora: Sim. E o "demais" é sempre muito, demasiado, é passar do limite necessário. A gente não precisava disso.
Aurora: That's the point! A gente não precisa, Flora! Ontem, uma amiga do trabalho veio me falar de uma relação que teve - a última - e de como o cara foi um sacana de merda, de como ele foi um puto, sem necessidade porque ela era uma pessoa que deixava o terreno aberto para ele cair fora sem mentiras, sem cascata. Palavras dela: "não precisava ser assim".
Flora: Nunca "precisava ser assim".
Aurora: Eu suspirei fundo, ri e disse apenas: não precisa, mas vai acontecer mais um montão de vezes, querida, porque você é mulher demais para esses homens de menos que estão por aí. Gente que quer viver o show de Truman e nós queremos viver amor à flor da pele.
Sendo bem pragmática, Flora. Sem elaborações românticas ou emotivas. Além da perpetuação da espécie, eu não vejo lógica na relação homem/mulher. Nós somos seres muito distintos. Nós sentimos diferente.
Flora rindo: Ontem numa conversa mega franca com uma amiga eu disse o seguinte: não tenho mesmo pressa em "encontrar" o amor da vida. Nem pressa nem necessidade disso. Mas pode ser que aconteça, e se acontecer – amém. E vou seguindo. Pode ser até que eu ainda me engane algumas vezes. Percebe, Aurora?
Aurora: Sim.
Flora: "Me engane". AURORA, A GENTE SE ENGANA ÀS VEZES PORQUE QUER.
Aurora: A gente se engana porque tem um lusco-fusco de esperança, porque quer... acreditar! Hoje está muito claro pra mim, nega. Eu vou ser feliz apesar de.
Flora: Lusco-fusco, uma tia sessentona diz isso e eu gargalho sempre
Aurora: Eu sou quase sessentona, Flora! De alma.
Flora: Eu Também. Tenho 123 anos.
Aurora: Eu já entendi que a felicidade não é algo extrínseco a mim. Eu não posso ser feliz por causa de fulano, de um carro, de uma casa... pessoas morrem, carros batem, casas caem e a gente continua.
Flora: Escreva isso num livro, AURORA!
Aurora: Vou escrever, nega; mas eu quero mesmo é (ins)escrever na vida, em neón vermelho!
Flora: ADORO. Lúcida Aurora.
Aurora: Aqui jaz alguém que continou, SEMPRE.
Flora: Ohhhhhhhhh. Que linda.
Aurora: Eu tenho observado: a mãe da Isabela, a daquele garoto que foi arrastado pela rua. Não deve existir dor pior que essa. Nenhum amor romântico é capaz. Elas perderam um pedaço delas literalmente, mas continuaram, nega, porque é assim.
Flora: Siiiiim. Ontem vi 3 coisas assim boas de pensar. Vi O clube do livro, de Jane Austen; Os Maias e Lavoura Arcaica. E terror é isso, sabe? É ver a vida projetada em filme, em noticiário de tv, em foto no jornal, vidarealnanossacara!! E depois de tudo ainda tem mais, porque não dá pra dar um tiro na cabeça como fez a tia da minha mãe e dizer "acabou".
Aurora: Oooooooh! Caralho. Não sabia.
Flora: Né isso, Aurora? "Era a morte, eu escolhi a vida", diz uma personagem daquele filme As horas. A morte permeia sempre, seja figurativa ou não. A escolha é nossa.
Aurora: É isso aí, amada. Sou feliz por poder presenciar teu eterno crescimento. Como escritora, como mulher e como pessoa que você é. Se para isso for preciso perder um pouco da inocência, acho que vale a pena. A gente é indivíduo e como tal, completo. É claro que o papo de ninguém ser uma ilha é superverdade, mas o pulo do gato é exatamente isso: viver com, não viver em.
Flora: Urrul!!! Viver com o que se tem. Ponto final. E isso não é conformismo, é maturidade.
Aurora: Eu era a vida e já quis a morte, diz Aurora. Direto de sua alma para a alma de Flora.
Flora: "já quis" - salve as conjugações no passado.
Aurora: And I wanted it so badly! Não há pior lugar para se estar do que na morte. Sim, porque a morte também é um lugar.
Flora: Se É lugar, Aurora! Concordo MUITO.
Flora pega o livro: Pra gente o meu autor: R. Nassar.

"o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide por isso a quem me curvo cheio de medo erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixaram de ser simplesmente vida corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória...”

Aurora: lindolindolindo. Verdadeverdadeverdade. Sempre que falo com você me emociono. Tô aqui secando a lagriminha no canto do olho, mas é um choro bom, nega. É um choro ancestral, um choro de identificação, de quem encontra o outro depois de mil anos no deserto e diz: “Eu sabia! Eu sabia que tinha mais gente como eu. Não estou só”.
Flora: O "eu sabia" é pra essa merdinha de esperança que a gente guarda no peito. A gente vive pra isso, Aurora, para os encontros grandiosos que salva essa merdinha que a gente chama "esperança".
Aurora: E é por isso que pessoas como nós não têm pares por perto, Flora. Eu também já entendi isso. Somos poucos, pouquíssimos em nossa espécie e seria muita sacanagem vivermos num resort!
Flora ri: Seria o PARAÍSO vivermos num resort.
Aurora: Não é a gente que precisa desse bando de zumbi que só vaga pelo mundo; são eles que precisam de nós! Somos o "eu sabia!" deles, "essa merdinha de esperança que eles (sic) guardam no peito."
Flora: sim, a gente dá vida, afinal. Fico me achando quase Madre Tereza. Tipo "Oh oh oh que missão".
Aurora: Pois é. Mas no meio dessa missão sagrada, eu quero um pouquinho de sexo!
Flora: Aurora, os caras depois de mim casam. Repito: CASAM. Têm filhos, constroem, ficam lindos e felizes.
Aurora explode numa gargalhada: Ca-ce-te. Ca-ce-te.
Flora continua: E eu olho e penso: éééééé Flora, vá se fudê!
Aurora: Esse discurso é meu!
Flora: É nosso, então. Em breve, não me espantarei se Carlos me escrever dizendo: "casei".
Aurora: Nega, eu posso dar testemunho em qualquer templo.
Flora rindo muito: Ai que heresia.
Aurora: Heresia é o cacete! É uma verdade linda, tão verdadeira que dói! Eu sou a escada, o remédio, a terapia. Aí eles se curam e quando se curam, eles batem a porta e no caminho acham a mulher perfeita e têm filhos perfeitos, casas perfeitas igualzinho ao comercial de margarina. E eu digo: Ponto pra Aurora. Se fodeu novamente.
Flora: S-I-M. Nadam e a gente fica.
Aurora: Não tem um cartão de agradecimento, flores, nada. Nem pagam a porra da conta!
Flora: Pô, deveriam pagar mesmo. Ontem falei pra minha amiga que conselho pra burro, por exemplo, eu vou cobrar.
Aurora: E caro! Porque jogar pérola aos porcos é foda.
Flora: Ah, eu hein? Gasto meu latim e nada. Vácuo.
Aurora: Hello? Is there anybody here?
Flora: As pessoas se repetem, sabe? Gostam do problema, mas não das soluções. Credo!
Aurora: Pra quê solução? Quando a solução chega é hora de partir. Enquanto tão doentes, recebem agrados, mimos, fazem beicinho.
Flora: Ui que sério: "quando a solução chega é hora de partir"
Aurora: "Arrumar outra otária pra ter pena de mim".
Flora: Ó nós aí, geeeeente!
Aurora: Mas não é? Gente, eu vou ter um orgasmo! Eu sou phoda com PH, honey.
Flora: PH DYHSOIVFTCMDE... o alfabeto todo.
Aurora: isso isso.
Flora: Caraça, mané. Vamos montar uma barraquinha no centro da cidade e cobrar para dizer essas coisas.
Aurora: Vamos! Eu topo. Seguinte, se depois da consulta, o/a mané voltar, tem direito à porrada.
Flora: Siiiim, adoro a idéia de bater em alguém porque é idiota.
Aurora: Bom, o título de madre tereza... acabamos de perder, dear.
Flora: Sim, depois disso já era. Tem problema, não.
Aurora: Tu nem queria mesmo, né?

6 comentários:

Anônimo disse...

sem fronteira.
repito: amor & amizade sem fronteiras.

Lu disse...

Mila,
a delicadeza e os mistérios desse amor & amizade sem fronteiras...

bete p.silva disse...

Lu!! Cadê você??!!! Não sei porque mas imagino que você foi a Paraty...

bete p.silva disse...

Lu!! Cadê você??!!! Não sei porque mas imagino que você foi a Paraty...

Lu disse...

Bete querida! Saudades. Tudo bem?
Ai como eu queria ter estado em Paraty, nega. Mas meu chefe jamais me daria uma semana para cheirar as páginas dos livros e me alimentar de palavras!
O sumiço foi acúmulo de trabalho mesmo. Não sei se te disse, mas sou revisora e nessa última semana foi período de fechamento de edição de algumas revistas.
Ano que vem vai ser batata: Paraty que me aguarde.
Beijos

dade amorim disse...

Oi, Lu, por onde você anda, menina?
Beijo pra você.