quinta-feira, junho 26, 2008

Da Amizade

(Para Camila)


Flora: Melhor da gripe?
Aurora: Melhorando, querida. E você, tá boa?
Flora sorrindo: Tô sim. Peguicinha e estranhas sensações sobre o mundo.
Aurora: Preguicinha é coisa boa, já estranhas sensações sobre o mundo... não sei, não.
Flora: Nem eu sei.
Aurora: Who knows?
Flora: Ninguém, Aurora... mas a vida tá na cara, sabe? Tudo assim muito explícito. Eu tenho enxergado demais e pra quem tem muitos sonhos isso é um horror.
Aurora: Enxergar demais não é muito legal: mata a fantasia e o sonho - ambos essenciais pra continuarmos acreditando em algo. Não é um conselho ou nada do gênero, é apenas uma observação de quem compartilha contigo toda essa limpidez de retina. Eu sou muito melhor hoje, mas em alguns aspectos sou bem pior, porque fiquei cética em relação a alguns assuntos.
Flora: Sim, é completamente isso, Aurora.
Aurora: O mesmo velho papo: enxergar demais é como amar demais, ser inteligente, ser gente demais. Demais, nessa acepção, é algo que o mundo desconhece.
Flora: Sim. E o "demais" é sempre muito, demasiado, é passar do limite necessário. A gente não precisava disso.
Aurora: That's the point! A gente não precisa, Flora! Ontem, uma amiga do trabalho veio me falar de uma relação que teve - a última - e de como o cara foi um sacana de merda, de como ele foi um puto, sem necessidade porque ela era uma pessoa que deixava o terreno aberto para ele cair fora sem mentiras, sem cascata. Palavras dela: "não precisava ser assim".
Flora: Nunca "precisava ser assim".
Aurora: Eu suspirei fundo, ri e disse apenas: não precisa, mas vai acontecer mais um montão de vezes, querida, porque você é mulher demais para esses homens de menos que estão por aí. Gente que quer viver o show de Truman e nós queremos viver amor à flor da pele.
Sendo bem pragmática, Flora. Sem elaborações românticas ou emotivas. Além da perpetuação da espécie, eu não vejo lógica na relação homem/mulher. Nós somos seres muito distintos. Nós sentimos diferente.
Flora rindo: Ontem numa conversa mega franca com uma amiga eu disse o seguinte: não tenho mesmo pressa em "encontrar" o amor da vida. Nem pressa nem necessidade disso. Mas pode ser que aconteça, e se acontecer – amém. E vou seguindo. Pode ser até que eu ainda me engane algumas vezes. Percebe, Aurora?
Aurora: Sim.
Flora: "Me engane". AURORA, A GENTE SE ENGANA ÀS VEZES PORQUE QUER.
Aurora: A gente se engana porque tem um lusco-fusco de esperança, porque quer... acreditar! Hoje está muito claro pra mim, nega. Eu vou ser feliz apesar de.
Flora: Lusco-fusco, uma tia sessentona diz isso e eu gargalho sempre
Aurora: Eu sou quase sessentona, Flora! De alma.
Flora: Eu Também. Tenho 123 anos.
Aurora: Eu já entendi que a felicidade não é algo extrínseco a mim. Eu não posso ser feliz por causa de fulano, de um carro, de uma casa... pessoas morrem, carros batem, casas caem e a gente continua.
Flora: Escreva isso num livro, AURORA!
Aurora: Vou escrever, nega; mas eu quero mesmo é (ins)escrever na vida, em neón vermelho!
Flora: ADORO. Lúcida Aurora.
Aurora: Aqui jaz alguém que continou, SEMPRE.
Flora: Ohhhhhhhhh. Que linda.
Aurora: Eu tenho observado: a mãe da Isabela, a daquele garoto que foi arrastado pela rua. Não deve existir dor pior que essa. Nenhum amor romântico é capaz. Elas perderam um pedaço delas literalmente, mas continuaram, nega, porque é assim.
Flora: Siiiiim. Ontem vi 3 coisas assim boas de pensar. Vi O clube do livro, de Jane Austen; Os Maias e Lavoura Arcaica. E terror é isso, sabe? É ver a vida projetada em filme, em noticiário de tv, em foto no jornal, vidarealnanossacara!! E depois de tudo ainda tem mais, porque não dá pra dar um tiro na cabeça como fez a tia da minha mãe e dizer "acabou".
Aurora: Oooooooh! Caralho. Não sabia.
Flora: Né isso, Aurora? "Era a morte, eu escolhi a vida", diz uma personagem daquele filme As horas. A morte permeia sempre, seja figurativa ou não. A escolha é nossa.
Aurora: É isso aí, amada. Sou feliz por poder presenciar teu eterno crescimento. Como escritora, como mulher e como pessoa que você é. Se para isso for preciso perder um pouco da inocência, acho que vale a pena. A gente é indivíduo e como tal, completo. É claro que o papo de ninguém ser uma ilha é superverdade, mas o pulo do gato é exatamente isso: viver com, não viver em.
Flora: Urrul!!! Viver com o que se tem. Ponto final. E isso não é conformismo, é maturidade.
Aurora: Eu era a vida e já quis a morte, diz Aurora. Direto de sua alma para a alma de Flora.
Flora: "já quis" - salve as conjugações no passado.
Aurora: And I wanted it so badly! Não há pior lugar para se estar do que na morte. Sim, porque a morte também é um lugar.
Flora: Se É lugar, Aurora! Concordo MUITO.
Flora pega o livro: Pra gente o meu autor: R. Nassar.

"o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide por isso a quem me curvo cheio de medo erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixaram de ser simplesmente vida corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória...”

Aurora: lindolindolindo. Verdadeverdadeverdade. Sempre que falo com você me emociono. Tô aqui secando a lagriminha no canto do olho, mas é um choro bom, nega. É um choro ancestral, um choro de identificação, de quem encontra o outro depois de mil anos no deserto e diz: “Eu sabia! Eu sabia que tinha mais gente como eu. Não estou só”.
Flora: O "eu sabia" é pra essa merdinha de esperança que a gente guarda no peito. A gente vive pra isso, Aurora, para os encontros grandiosos que salva essa merdinha que a gente chama "esperança".
Aurora: E é por isso que pessoas como nós não têm pares por perto, Flora. Eu também já entendi isso. Somos poucos, pouquíssimos em nossa espécie e seria muita sacanagem vivermos num resort!
Flora ri: Seria o PARAÍSO vivermos num resort.
Aurora: Não é a gente que precisa desse bando de zumbi que só vaga pelo mundo; são eles que precisam de nós! Somos o "eu sabia!" deles, "essa merdinha de esperança que eles (sic) guardam no peito."
Flora: sim, a gente dá vida, afinal. Fico me achando quase Madre Tereza. Tipo "Oh oh oh que missão".
Aurora: Pois é. Mas no meio dessa missão sagrada, eu quero um pouquinho de sexo!
Flora: Aurora, os caras depois de mim casam. Repito: CASAM. Têm filhos, constroem, ficam lindos e felizes.
Aurora explode numa gargalhada: Ca-ce-te. Ca-ce-te.
Flora continua: E eu olho e penso: éééééé Flora, vá se fudê!
Aurora: Esse discurso é meu!
Flora: É nosso, então. Em breve, não me espantarei se Carlos me escrever dizendo: "casei".
Aurora: Nega, eu posso dar testemunho em qualquer templo.
Flora rindo muito: Ai que heresia.
Aurora: Heresia é o cacete! É uma verdade linda, tão verdadeira que dói! Eu sou a escada, o remédio, a terapia. Aí eles se curam e quando se curam, eles batem a porta e no caminho acham a mulher perfeita e têm filhos perfeitos, casas perfeitas igualzinho ao comercial de margarina. E eu digo: Ponto pra Aurora. Se fodeu novamente.
Flora: S-I-M. Nadam e a gente fica.
Aurora: Não tem um cartão de agradecimento, flores, nada. Nem pagam a porra da conta!
Flora: Pô, deveriam pagar mesmo. Ontem falei pra minha amiga que conselho pra burro, por exemplo, eu vou cobrar.
Aurora: E caro! Porque jogar pérola aos porcos é foda.
Flora: Ah, eu hein? Gasto meu latim e nada. Vácuo.
Aurora: Hello? Is there anybody here?
Flora: As pessoas se repetem, sabe? Gostam do problema, mas não das soluções. Credo!
Aurora: Pra quê solução? Quando a solução chega é hora de partir. Enquanto tão doentes, recebem agrados, mimos, fazem beicinho.
Flora: Ui que sério: "quando a solução chega é hora de partir"
Aurora: "Arrumar outra otária pra ter pena de mim".
Flora: Ó nós aí, geeeeente!
Aurora: Mas não é? Gente, eu vou ter um orgasmo! Eu sou phoda com PH, honey.
Flora: PH DYHSOIVFTCMDE... o alfabeto todo.
Aurora: isso isso.
Flora: Caraça, mané. Vamos montar uma barraquinha no centro da cidade e cobrar para dizer essas coisas.
Aurora: Vamos! Eu topo. Seguinte, se depois da consulta, o/a mané voltar, tem direito à porrada.
Flora: Siiiim, adoro a idéia de bater em alguém porque é idiota.
Aurora: Bom, o título de madre tereza... acabamos de perder, dear.
Flora: Sim, depois disso já era. Tem problema, não.
Aurora: Tu nem queria mesmo, né?

sábado, junho 21, 2008

Acabei de chegar do cinema.
Há muito tempo não entro numa sala de cinema para ver um filme de conteúdo “adulto”. A lista atualizada consta filmes dos estúdios Disney, Pixar e demais da mesma seara. Isso não significa, é claro, um martírio ou tortura, porque eu sou fã de animação, mas quem tem crianças por perto, sabe do que estou falando.
Minha intenção era ver a produção francesa La vérité ou presque (ou A quase verdade), mas cedi ao pedido de uma amiga de trabalho e fomos assistir Sex and the City.
Apesar de previsível, consegui me divertir porque aprendi encarar as crônicas de Carry Bradshaw como mera ficção.
Eu costumava ver o seriado até que enchi, cansei de ser iludida. Quando Sex and the city surgiu como seriado, tinha a pretensão de tratar do universo feminino e suas conturbadas relações de uma maneira bastante realista, uma vez que as histórias giravam em torno de mulheres que há muito deixaram de ser jovenzinhas sonhadoras e românticas. Eram mulheres de trinta, quarenta, cheia de histórias, decepções, alegrias, perdas, futilidades, papo-cabeça, ou seja, gente como a gente.
A protagonista/narradora é Carry Bradshaw, jornalista com uma coluna cativa que tratava das relações amorosas, sob a ótica feminina, na cidade Nova York. Carry é solteira, independente, dona de um discurso moderno, mas em busca de um grande amor.
Charlotte é a típica heroína dos romances do século XIX: bonita, delicada, feminina que sonha com a família perfeita. Aquela dos comerciais de margarina.
Miranda é a personificação dos ideais feministas, em outras palavras, ela é um homem de saias: é uma vencedora da batalha dos sexos no competitivo universo profissional: inteligente, racional, metódica, bem-sucedida. Um bom exemplo de que para ser bom profissional é preciso esquecer que a vida também é feita de emoção.
Por fim, Samantha. Make love not war é literalmente o seu lema.
Com o tempo descobri que Carry é uma farsa. Das quatro mulheres, ela é a única personagem absolutamente incoerente. No desespero de encontrar o “homem da sua vida” (que lá pelas tantas aparece), ela não percebe que perpetua os padrões da “mulherzinha”. Entre Aidan e Mr. Big, ela não tem dúvidas: Mr. Big, o estereótipo do solteirão convicto.
Carry deseja o que tanto rejeita, porque como uma boa Polyanna, ela acha que pode mudar o amado. Tira onda do amor romântico ao fazer piada de Aidan que ajoelhado pede sua mão em casamento, mas não hesita em dizer sim ao pedido de Big, tão clichê quanto o de Aidan, mesmo depois de ser por ele abandonada pela enésima vez. É preciso ter uma auto-estima muito baixa para continuar investindo 10 anos da vida em um cara como Big, mas tem gente que ainda rima amor com dor e tem um apego inexplicável à infelicidade.
Mas o filme tem algo que continua muito positivo, que na minha singela opinião, é o melhor. Sex and the city é mais do que histórias de balzaquianas em busca da felicidade amorosa. Sex and the city é sobre a relação de amor que liga quatro mulheres, sobre a amizade, que está acima de todos os clichês.
Valeu a pena ver uma Carry emocionalmente ferrada levantar numa noite fria e correr para abraçar uma amiga triste e solitária do outro lado da cidade; ou ver três amigas transformando uma fracassada viagem de lua-de-mel em momentos de solidariedade e espera paciente e silenciosa; ou ainda, constatar que apesar das crises, maridos, filhos, os amigos sempre terão o espaço sagrado que merecem em nossas vidas.

Ainda Machado


Diferente do último texto (xenofóbico) publicado neste blogue acerca de Machado de Assis, de quem esta humilde pessoa é fã incondicional (para desespero e prováveis surtos psicóticos de alguns), trago hoje uma resenha de Milton Hatoum, publicada na EntreLivros.

Machado para o jovem leitor

O texto inaugural desta coluna na EntreLivros intitula-se “A parasita azul e um professor cassado”. Nessa crônica, escrevi: “Dois acasos foram decisivos na minha juventude: o primeiro me conduziu à obra de Machado de Assis; o segundo, a uma biblioteca vasta e sombria, escondida numa sala subterrânea”.
Mais de dois anos depois, volto aos contos de Machado para dialogar com os professores.
Uma das questões sobre o ensino de literatura brasileira para jovens estudantes (da primeira à terceira série) diz respeito aos critérios da seleção bibliográfica. Infelizmente, prevalece a idéia de que os alunos não têm condições de ler textos complexos. Um texto complexo não é necessariamente pesado, chato, algo que se lê com extrema dificuldade. Para um jovem do nosso tempo, não deve ser fácil nem prazeroso ler um romance de Coelho Neto ou A bagaceira, de José Américo de Almeida. Esses, sim, são textos pesados, que carregam na ênfase e no vocabulário precioso. Confesso que, na minha juventude, penei para ler esses autores. E quando li dois romances extraordinários de prosadores nordestinos – O quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas secas, de Graciliano Ramos – o romance de José Américo tornou-se, por contraste, ainda mais enfadonho.
Mesmo Os sertões e O Ateneu – livros fundamentais da nossa literatura – são difíceis de ser assimilados por um jovem do ensino médio.
Passei por essa provação como se fosse uma penitência. De fato, minha leitura de trechos da obra-prima de Euclides da Cunha foi conseqüência de uma punição coletiva, um castigo imposto por um professor que não descobriu o culpado de uma infração grave, cometida no colégio onde eu estudava. Nessa mesma época, ganhei as obras completas de Machado de Assis e li o conto “A parasita azul”. Depois li os outros contos do volume Histórias da meia-noite. Gostava desse título, que me remetia a histórias de suspense, horror e mistério. Havia algum mistério e suspense nos contos, mas não da maneira que eu esperava. Lembro que os li com prazer, e me perguntei por que um dos professores de português nos obrigava a ler Coelho Neto e José de Alencar e não Machado de Assis. Por que Iracema e não Dom Casmurro? E, nesse caso, por que não ler ambos?

II

Havia – como ainda há – imposições curriculares, mas penso que isso é um equívoco, pois o leitor jovem e inexperiente pode odiar para sempre a literatura brasileira, pode pensar que só existem textos ásperos, cuja leitura é sinônimo de suplício. É inadmissível que tantos jovens desperdicem a oportunidade de ler “A causa secreta”, “O enfermeiro”, “Missa do galo”, “O espelho”, “Uns braços”, “Um homem célebre”, “Terpsícore”, “A cartomante”, “Evolução” e outros contos do Bruxo, um verdadeiro mestre da narrativa breve, que se situa no mesmo patamar de excelência de seus contemporâneos europeus.
É muito provável que esses contos sejam lidos e comentados sem enfado. Porque uma leitura enfadonha e arrastada é, para o leitor jovem – e talvez para todo leitor –, um ato de flagelação do espírito. Claro que há textos intricados e nada tediosos, que são imprescindíveis para quem gosta de literatura. Quem não se deleita com a leitura dos romances Grande sertão: veredas e O século das luzes? São livros para quem já passou por uma experiência de leitura e não se sente inibido diante de obras cuja linguagem enfatiza um notável trabalho de estilização. Mas um iniciante certamente encontrará dificuldade para ler esses romances.
Nos contos de Machado ocorre algo diferente. Com um estilo muito elaborado, mas pouco ou quase nada rebuscado, o narrador machadiano explora em poucas páginas a complexidade das relações humanas. Sua linguagem é densa sem ser retórica, e os contos são exemplos perfeitos de complexidade concentrada num texto conciso e exato.
Um exemplo é “A causa secreta”, publicado em 1885 na Gazeta de Notícias e incluído em Várias histórias (1895). Eis aí uma aula sobre o conto enquanto gênero literário. Logo no primeiro parágrafo, depois de apresentar as três principais personagens numa cena que poderia ser filmada, o narrador escreve: “Tempo é de contar essa história sem rebuço”. Ou seja, é tempo de ir diretamente ao miolo da questão. E a questão é, na verdade, um feixe de questões machadianas: o adultério, as relações sociais, a violência, a loucura, o amor, a dor moral. Em menos de 15 páginas, o narrador constrói uma das personagens mais terríveis da nossa literatura: um homem (Fortunato) que se ocupava “nas horas vagas em envenenar e rasgar gatos e cães”.
Fortunato revela o lado mais obscuro e violento do ser humano. Já é clássica a cena em que ele mutila e queima um rato “com um sorriso único” no rosto, “uma serenidade radiosa da fisionomia” ou “um vasto prazer, quieto e profundo”. No fim, a dor física dos animais é substituída pela dor moral de Garcia, quando este tentar beijar pela segunda vez Maria Luísa, já morta. Fortunato, o esposo e agora viúvo, “saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral, que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”.

III

Os professores que comentam esse conto em sala de aula sabem que os estudantes se interessam pelo texto. A leitura no cabresto é inconseqüente, pois o maior estímulo para um jovem reside no prazer da leitura. Há, sem dúvida, outros grandes autores cuja obra é estimulante. Os contos de Insônia e Laços de família são apenas dois exemplos, entre muitos da literatura brasileira. Mas os de Machado não podem ser esquecidos, porque estão no centro da nossa modernidade e irradiam uma das visões mais críticas e inteligentes sobre o ser humano e a sociedade brasileira.

segunda-feira, junho 09, 2008

(II)

“Tudo é inútil. Estar aqui deitada e entregue a um estranho também é inútil, uma perda de tempo. O que quero descobrir que ainda não sei? Não há nada que já não saiba há um milhão de anos, um milhão de vidas. É o peso do tempo que carrego sobre os ombros. O peso de ter me visto de fora, ver em mim o que toda a gente vê: o Nada, um imenso tédio, a constatação de que não sirvo para nada, fracassei. Fracassei em não ambicionar dinheiro, objetos, títulos. Fracassei por não ter par, por mais vil que fosse. Ver em mim o que os outros vêem é uma experiência de morte. Mas como, se já nascemos mortos?
Eu queria fugir só para não ser quem sou. Ir para onde não me conhecem, para não mais encontrar os rostos conhecidos que sempre expressam nas suas feições a incompreensão diante da minha dor, ma eu nunca sairei daqui. Então, eu sonho em ser outra e isso é mais verdadeiro do que qualquer realidade.
Já faz algum tempo que me despedi da vida, porque descobri que viver e morrer não são tão diferentes. Há tantos que vivem, mas já estão mortos! E eu não enxergo nessa gente senão desprezo. Quem sente demais encerra em si a impossibilidade de tocar o outro e é esta solidão que torna tudo inútil”.

Festa Literária de Paraty



Bem-vindo à FLIP
20082 a 6 de julho



Programação
A partir de hoje a programação completa da Festa Literária Internacional de Paraty, com biografias dos autores convidados e resumo das mesas está disponível no site da FLIP. São 41 autores convidados vindos da América do Norte, da Europa, da África e de vários países da América do Sul, além dos 22 autores nacionais.


Homenagem a Machado
Abrindo a FLIP, Roberto Schwarz, um dos mais destacados intérpretes da obra de Machado, discutirá o livro Dom Casmurro, por ele considerado o "romance possivelmente mais refinado e composto da literatura brasileira". Em outra mesa, "Papéis Avulsos", Flora Süssekind, Luiz Fernando Carvalho e Sergio Paulo Rouanet falam sobre suas diferentes experiências com a obra machadiana.
A homenagem a Machado se estende também pela programação do FLIP ETC. com adaptações da obra do autor para o cinema, teatro, e uma exposição sobre o Rio de Janeiro do fim do século XIX.


Show de Abertura
Luiz Melodia é o convidado desta sexta edição para o show de abertura, que acontecerá na quarta-feira, dia 2/7.


Ingressos
Os ingressos estarão à venda a partir do dia 10/6. A compra pode ser feita pela internet, por telefone, ou em pontos de venda de Ingresso Rápido. Para detalhes clique aqui.

- Tenda dos Autores (mesas e conferência de abertura): R$ 25 cada
- Show de abertura na Tenda do Telão: R$ 25
- Tenda do Telão (transmissão das mesas e da conferência de abertura): R$ 8


Patronos
Estão abertas as inscrições para Patronos e Amigos FLIP. Para cada categoria há uma série de benefícios.
Conheça detalhes acessando o site da FLIP.

quarta-feira, junho 04, 2008

Davi X Golias

Hoje pela manhã, ao chegar ao trabalho, fiz o de sempre. Acessei o e-mail da empresa para verificar se já havia algum texto para revisar. Nenhum, mas tinha uma mensagem da minha chefe. Ela também escreve e sabendo que amo o Machado de Assis de paixão, enviou-me esta carta-bomba para atiçar meus ânimos.
Depois de ler e responder, pensei que seria interessante fazer um post sobre o assunto.
Bom, aí está.

Ah, o texto é do Daniel Lopes e pode ser encontrado no Digestivo Cultural.


Não gostar de Machado

Não gostar de Machado de Assis, no Brasil, é arriscado. Quero dizer, se você sair por aí dizendo que não gosta. Mesmo se lhe foi pedida uma opinião. Você não corre o risco de ser surrado (não sei se essa garantia serve caso você esteja nos corredores da ABL), mas com certeza receberá aquele olhar de piedade que apenas os seres superiores sabem produzir.
Você é criticado por não gostar de Machado mesmo por quem nunca o leu, ou, ainda pior, por quem o leu e também não gostou, mas ainda assim... patrimônio nacional é patrimônio nacional. Mexer com Machado é quase como mexer com a Amazônia. Quase, nada, é pior, muito pior. Se Al Gore quer saber o que é realmente bom pra tosse, que experimente, em vez de dizer que a Amazônia é do mundo, declarar que Machado é "um escritor de segunda", como já opinou Millôr Fernandes.
Há pouco tempo, um leitor do Digestivo, comentando no meu perfil, se revoltou contra o fato de eu ter escrito que "ainda no colégio, nunca consegui gostar de Machado de Assis, e apenas quando já havia entrado na universidade pude compreender que não perdera nada". Também concorreu para aumentar a indignação do leitor o fato de eu ocupar espaço no Digestivo com textos sobre livros de autores estrangeiros, insignificâncias como J. M. Coetzee e Nathaniel Hawthorne: "Não gostar do Machado e gostar de escritores estrangeiros bem traduz esta juventude de hoje influenciada pela cultura americana e outras, que entram nos nossos ouvidos diariamente pela mídia e também por livros".
O autor da mensagem assinou como Delton. Eu lhe enviei uma resposta, mas esta voltou, acusando e-mail inválido.
Seja como for, assim que li seu comentário lembrei de algo que me ocorreu logo que entrei no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Foi em 2003. Certo dia, entre uma aula e outra, estou a folhear no corredor um livro de George Orwell, quando um rapaz mais ou menos da minha idade pára sua caminhada simplesmente para dizer que eu sou um alienado. Eu levanto os olhos e o vejo erguendo um livro de José de Alencar. "Já leu isso?", perguntou. Sou um sujeito muito tímido, não gosto de discutir nem com gente inteligente. Disse apenas que "já, é um livro muito ruim". Nem vi direito o título, mas se era José de Alencar só podia ser algo chato, e eu queria me livrar do rapaz o mais rápido possível. Ele resmungou e foi embora.
Hoje penso que ele devia ser um desses membros do movimento estudantil que gastam mais tempo se movimentando do que estudando. Não sei se ele viu que o livro do Orwell era em inglês, pois eu estava começando a estudar inglês. Acho que não viu. Se tivesse visto, a bronca poderia ter sido maior. Com certeza, ele não sabia da história de vida de George Orwell. Tomara que, de 2003 para cá, a militância do jovem fã de Alencar em um partido político ou outro lhe tenha deixado algum tempo de sobra para aprender sobre a participação de Orwell na Guerra Civil espanhola, do lado dos republicanos e contra os fascistas ― experiência que gerou o livro Homage to Catalonia.

Nacionalismo literário

"Triste do povo que precisa de heróis". O que diria então Bertold Brecht da carolice de uma intelectualidade nacional que precisa de heróis para se sustentar?
Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira.
É verdade que Machado de Assis não é tão ruim quanto José de Alencar. Se, conforme disse em recente entrevista ao jornal Rascunho o professor e escritor sergipano Antonio Carlos Viana, "dar Machado de Assis para um menino de 15 anos é querer que ele não goste de literatura, nunca mais", o que dizer do trauma gerado em um jovem que é forçado a ler coisas como Senhora? Viana diz ter acabado de escrever um livro em que indica 45 autores indispensáveis para que alunos do segundo grau tomem gosto pela leitura ― entre os quais, Franz Kafka e John Fante. Estou com ele.
Aliás, por que mesmo nossas crianças e jovens são torturados com obras monstruosas da literatura brasileira e portuguesa, ao mesmo tempo em que são privados dos grandes clássicos da literatura universal? É claro que existem excelentes obras brasileiras ― é difícil, por exemplo, imaginar um estudante não se divertindo e se comovendo com Memórias de um sargento de milícias ou Triste fim de Policarpo Quaresma. Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?
Mas enquanto a função principal dos nossos professores de literatura for fazer os alunos detestarem a literatura, o tipo de produto literário nacional que os estudantes irão comprar em sua vida adulta será, no máximo, as obras completas de Paulo Coelho, empilhadas estrategicamente na estante da sala, unicamente para fins de enfeite.
De cada 100 jovens que entram na universidade (tendo feito belos pontos nas provas de literatura), quantos se tornarão adultos apreciadores da literatura relevante, nacional e internacional? Sejamos benevolentes, suponhamos que esse número seja de 10. Desses 10, quantos devem à escola essa dádiva? 1. Podem sair pesquisando por aí. Os outros 9 se comportaram de forma rebelde na juventude, fingindo que liam poesia parnasiana, apenas para fazer a média na prova, enquanto que, na surdina, encontravam em sebos e bibliotecas o que realmente lhes dava prazer e o que de fato os transformou em leitores maduros ― alguns, até, apreciadores de Machado de Assis.
E para constar. O que respondi ao leitor Delton no e-mail que não foi entregue, em resumo, foi que
― é verdade, não gosto de Machado de Assis. E não é porque nunca o li, ou não entendi as estórias. Sim, li algumas e as compreendi, mesmo as que abandonei pela metade. O que não quer dizer que no futuro, em novas leituras, não possa vir a gostar dele. Mas não sinto a menor obrigação de fazê-lo;
― é uma besteira achar que se alguém não gosta de Machado ou qualquer outro escritor é porque tem que crescer mais "literaturalmente". Claro, eu tenho muito que evoluir, e espero evoluir sempre. Mas quem garante que, lá pelos 140 anos, tendo evoluído continuamente, ainda assim eu não vá gostar de Machado? Ou será que se o sujeito tem 100 anos e não gosta de Machado é porque ele não evoluiu o suficiente? E quem gosta de Machado aos 15 anos já atingiu o ápice de sua vida "literatural"? Que bobagem, não é mesmo?
― eu lhe asseguro que é muito bom ser influenciado por culturas de fora, dos EUA, da Europa, Oriente, África, Marte... Tão bom quanto ser influenciado pela cultura local. Acredite, há porcaria escrita em todo lugar, e em todo lugar há coisa boa à nossa espera. Pergunte a Machado, que era fã de carteirinha de Montaigne e Laurence Sterne.


Chefe, o texto é muito bom. Bem escrito e tal...
Concordo com algumas coisas, discordo de outras. Bom mesmo é chegar numa idade em que essas farpas já não são combustíveis para o meu espírito. Bom mesmo é ler e dar gargalhadas por ver pessoas chovendo no molhado ou, num português bem chulo que não deixa margem a dúvidas, cagando regras.
Em parte, eu entendo a crítica porque sou sócia do pequeno grupo que odeia Joyce. Tadinho, não é odiar. Eu não o odeio, mas eu acho o Ulisses um porre, chato pra chuchu, de lascar. Outro escritor que não me causa sequer cócegas é o Jorge Amado (salvo O gato Malhado e a andorinha Sinhá, Capitães de areia e A morte de Quincas...). Eu acho a literatura dele morna, repetitiva. A Zélia sempre me pareceu melhor, não sei, eu acho que ela tratou de temáticas mais interessantes. Mas, contudo, entretanto, todavia, por mais que eu pense isso – e eu penso – respeito e não nego a importância desses autores para a literatura.
Eu não acho Freud essa Brastemp toda, comparado a outros da área, mas eu seria louca em negar que tudo começou com ele. Se gosto mais de Jung do que de Freud, a culpa é do próprio Freud, sem seus estudos, Jung não poderia ter ido além.

“Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira”.

Afirmações desse tipo não tornam o autor do texto diferente daqueles que critica. O fato de ele não ter prazer na leitura Machadiana não lhe dá o direito de julgar que outros o tenham.

PS: O autor não pode mesmo descriminar, uma vez que não existe crime. O máximo que ele pode é não discriminar.

Bem, isso é uma coisa.
Outra coisa é propor Gogol, Tolstoi, Kafka (!!), e acrescento, Proust, Tchecov ao invés de Machado. Pirou? Só porque são estrangeiros? Essa é a única diferença que consigo identificar, em minha modesta opinião. Esses autores são tão “difíceis” de deglutir quanto um Machado! Pelo amor dos meus filhinhos.
Que existe um estrangeirismo exacerbado e mal camuflado, existe. O que é uma bobagem. Apenas diga: prefiro literatura estrangeira à brasileira. É mais simples, direto e menos falso.
O currículo escolar brasileiro precisa ser revisto. E não é de hoje!
Acho realmente muito difícil que estudantes de quinta série apreciem Memórias Póstumas. Se já era difícil para a minha geração, imagine para essa que tem todas as facilidades visuais das novas tecnologias. Essa afirmação também se aplica aos estrangeiros que o autor tanto ufana. Imagina a geração videoclip lendo A metamorfose, do Kafka ou O estrangeiro, do Camus? Ia ter suicídio coletivo, minha filha!
O que pode ser bem aproveitado de Machado para essa garotada são os contos e seus dois romances, Helena (romântico) e Iaiá Garcia (de transição). Os romances realistas precisam de uma apresentação, um flerte.
Outra coisa ainda:

“Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?”.

Eu não acredito que estou respondendo a isso, chefe! Kkkkkkkkk
Essa pessoa não é burra, né!? Pode ser reacionária ou sofrer de brasofobia. Brasofobia?
Sim, cara pessoa, é para valorizar o que é nosso! A grade curricular BRASILEIRA pretende que nós BRASILEIROS conheçamos os expoentes da nossa literatura que é BRASILEIRA. Elementary, my dear Watson!
Eu duvido que na Rússia, as escolas incluam na grade curricular de literatura russa um romance francês ou brasileiro. O mesmo vale para a França, Estados Unidos, etc.
Literatura comparada fica para a universidade. Lá, as pessoas matarão a vontade insana de ler Moby Dick, essa obra imprescindível para a formação literária de um ser superior.
E outra coisa: A AMAZÔNIA É PATRIMÔNIO NACIONAL! DO MUNDO É O CARALHO!

Beijo,
Lu

quarta-feira, maio 28, 2008

Descobri assim por acaso e me apaixonei.



Let it go - Fauxliage

I'll begin to let you go
When the sunlight melts the snow
Every night i drive away from you
I see the mountains i have to move

And you there
You don't care
I wonder if you

Wanted me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you
And you sure can't change me

It's hard to hell tonight to sleep
To close my eyes would admitting my defeat

And you there
You don't care
I wonder if

Wanted me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you
And you sure can't change me

Are you
Wanting me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you

And you there
You don't care
I wonder if

You wanted me like i wanted you
It's a lonely truth
That i can't change you
Wanted me like i wanted you

It's a lonely truth
That i can't change you
And you sure can't change me

(I)

“Não sei bem explicar o motivo, mas este é o processo: nos momentos de crise, meus movimentos são cíclicos. Primeiro me afasto de todos, busco o silêncio e a solidão. Sem isso sou incapaz de me ouvir. Depois me jogo nos livros. Não, não são aqueles que compõem a famosa lista os livros que preciso ler. São os mesmos de outrora. Releituras. É mais ou menos como visitar parentes, entende? Nunca é aleatório. Também não é leitura de entretenimento para burlar a angústia ou distrair os pensamentos. É sempre uma inquieta Clarice, um desassossegado Pessoa, um decadente Schoppenhauer. São palavras que habitam as profundezas. Simultaneamente escolho a trilha sonora. Enquanto leio, escuto Bach. É como voltar a um local especial e muito belo. Os afrescos da Sistina. Essa é a guerra. Enquanto desço aos meus porões, Bach trabalha secretamente rumo a uma ascese. Quem vence? Se ainda estou aqui, está claro que Bach tem se saído bem. Até agora ele foi sempre vencedor. Contudo, isso nunca me impediu, enquanto tateava o porão escuro, de colecionar cicatrizes. O que não é privilégio meu. As ostras estão aí para provar.”

terça-feira, maio 20, 2008

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vida, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da consciência.


PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. Cia. das Letras, 2006.

terça-feira, maio 13, 2008

Homem pode, mulher não!

Citando Eco

Eu sou suspeita para falar de Umberto Eco.
Simplesmente adoro a maneira como escreve; sou apaixonada pelo seu trabalho como crítico; acho seus textos teóricos muito leves e sem aquela carga academicista; aprecio a sua "frouxidão", sua largueza italiana e principalmente, admiro sua capacidade de interpretar o mundo.
O Caderno Mais da Folha de São Paulo publicou a matéria intitulada "Professor Aloprado". Por ser extensa, compartilho com vocês as partes mais interessantes.


Admito que na vida existem felicidades que duram dez segundos ou meia hora, como quando nasceu meu primeiro filho - naquele instante, eu estava feliz. Mas são momentos muito breves. Alguém que é feliz a vida toda é um cretino. Por isso, antes de ser feliz, prefiro ser inquieto.

Algo de muito bonito que ocorre ao envelhecermos é que nos recordamos de uma multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas (...) Por isso, vou ao encontro de minha velhice com muito otimismo, porque, quanto mais envelheço, mais recordações tenho de minha infância.

Minha relação com os alunos sempre foi uma relação de aprendizagem, porque, ensinando, eu também aprendia (...) Uma relação erótica, porque a relação de um professor com um aluno é como a relação de um ator com seu público: quando você aparece em cena, é como se o estivesse fazendo pela primeira vez, e você tem a sensação de que, se não tiver conquistado o público nos primeiros cinco minutos, o terá perdido. É isso o que eu chamo de uma relação erótica, no sentido platônico do termo. Além disso, há uma relação canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua experiência. Há pessoas infelizes que passam os primeiros anos de sua vida com pessoas mais jovens, para poder dominá-las, e, quando envelhecem, estão com pessoas mais velhas. Comigo aconteceu o contrário: quando eu era jovem, estava com pessoas mais velhas que eu, para aprender, e agora, tendo alunos, estou com jovens, o que é uma maneira de manter-se jovem. É uma relação de canibalismo; comemos um ao outro. Por isso não deixei de ter relação com a universidade, apesar de ter me aposentado.

Cinqüenta por cento dos italianos votam em Silvio Berlusconi, o que é indicativo de uma profunda imaturidade política. É um momento extremamente triste, em que os elementos de esperança e entusiasmo são muito poucos.

Estamos em velocidade tão grande que não existe nenhuma bibliografia científica americana que cite livros de mais de cinco anos atrás. O que foi escrito antes já não conta, e isso é uma perda também quanto à relação com o passado.

Essa velocidade vai provocar a perda de memória. E isso já acontece com as gerações jovens, que já não recordam nem quem foram Franco ou Mussolini! A abundância de informações sobre o presente não lhe permite refletir sobre o passado. Quando eu era criança, chegavam à livraria talvez três livros novos por mês; hoje chegam mil. E você já não sabe que livro importante foi publicado há seis meses. Isso também é uma perda de memória. A abundância de informações sobre o presente é uma perda, e não um ganho.

Esse é um de nossos problemas contemporâneos. A abundância de informação irrelevante, a dificuldade em selecioná-la e a perda de memória do passado -e não digo nem sequer da memória histórica. A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe alma; você é um animal. Se você bate a cabeça em algum lugar e perde a memória, converte-se num vegetal. Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma.Vamos à internet para tomar conhecimento das notícias mais importantes. A informação dos jornais será cada vez mais irrelevante, mais diversão que informação. Já não nos dizem o que decidiu o governo francês, mas nos dão quatro páginas de fofocas sobre Carla Bruni e Sarkozy. Os jornais se parecem cada vez mais com as revistas que havia para ler na barbearia ou na sala de espera do dentista.

Hoje, emergem muitas posições anticlericais, e muitas pessoas se declaram atéias. Ninguém estava pensando nisso antes. Subiu ao trono um papa que pensa como um papa do século 19.

sexta-feira, maio 09, 2008

Literatura

Oficina literária no Ar

As aulas do romancista Raimundo Carrero, agora transmitidas também pelas ondas do rádio, são um incentivo à paixão pela literatura.

Por Rafael Dias

Dez para as três da tarde. Toca o celular, interrompendo a entrevista. Com voz grave e tom rouco onipresente, Raimundo Carrero atende à chamada: do outro lado da linha, alguém deseja confirmar um compromisso importante para logo mais, dali a pouco mais de uma hora. Alarme falso. Impaciente, o autor de Somos pedras que se consomem não esconde o frio na barriga como um novato prestes a sucumbir à ameaça do futuro desconhecido. Cruza as pernas, sacode o pé esquerdo, pede um cafezinho, “faz tempo que não tomo café”, solta ele. Outras vezes, tem aparência serena, um olhar firme que dá a impressão de perscrutar o interlocutor. Mal termina a ligação, o aparelho toca de novo. Agora, sim, a produção da rádio JC/CBN Recife informa que, dentro de instantes, ele entrará ao vivo para apresentar o quadro Momento literário, do programa CBN Total.

O esquete de apenas 10 minutos, veiculado de segunda a sexta-feira, sempre ao vivo, no “nobre” horário vespertino de uma FM (90,3 MHz), é o ponto de encontro religioso de um contingente de público que deseja ouvir as dicas preciosas de um romancista consagrado, como um grupo de discípulos reunidos numa ágora, diante do sábio grego. Estudantes, donas-de-casa, advogados, médicos, políticos, intelectuais, funcionários em sua sagrada hora de sesta, literatos ou não, todos estão ao alcance dos ensinamentos de Carrero. Basta um radinho de pilha em mãos ou sintonizar a freqüência no som do carro e a vontade, ainda que furtiva, de aprender a escrever bem. Literatura, quem diria, tornou-se artigo pop. Não só isso, discutir o fazer literário deixou de ser um tabu. Do terreno sacrossanto, desce das nuvens até nós, mortais. A iniciativa foi do jornalista e apresentador Aldo Vilela, que convidou o romancista, em fevereiro do ano passado, para que reproduzisse a sua famosa oficina literária na rádio. Hoje a atração é fenômeno de audiência, dando oportunidade de desvendar os meandros da escrita na companhia do escritor – agora também pela internet, pelo link do JC/CBN, no site do JC Online.


Leia a matéria na íntegra, na edição nº 89 da Revista Continente Multicultural. Já nas bancas

terça-feira, maio 06, 2008

Espasmos # 9

As bóias indicadoras de segurança parecem-me distantes demais, ainda assim eu busco alcançá-las. Quero saber como é o mar além dos limites do permitido, do aconselhável. Que segredos guardam suas profundezas?
Não tenho medo de ser devorada por nenhum leviatã. O que eu temo é ser lentamente consumida pelos vermes da agonia e do tédio.
O tombadilho agora clama por mim.
Fim da série Espasmos.
B side

sábado, maio 03, 2008

Recadinho da doutora

P.S.

Publicação

Amigos,
A Editora Komedi publicou um conto meu na revista eletrônica "Literatura".
Quem quiser conferir, é só clicar no link abaixo:

terça-feira, abril 29, 2008

Espasmos # 8

Ancorou seu corpo junto ao meu. Depois de ficar imóvel por um tempo, tentou com imensa dificuldade dirigir-se ao tombadilho.
Observando a lentidão dos seus movimentos e o vazio no olhar, tomei-lhe as mãos cuidadosamente; tive medo que ele quebrasse ao meu toque, estilhaçasse em mosaicos indescritíveis e impossíveis de juntar.
Não relutou em segurar a bóia que lancei. Agarrou-a com vontade e debruçou-se entregue ao resgate.
Não rompi seu silêncio. Ofereci meu porto até que, por si só, ele também descubra a viração, a vibração da vida.

sábado, abril 26, 2008

Piaf - um hino ao amor

Há algum tempo aceno com a possibilidade de escrever um texto sobre o filme Piaf, mas nunca o fiz. As razões são muitas, mas a mais pungente é que toda vez que arrisquei rabiscar qualquer coisa, impressão, emoção, achava o texto muito aquém daquilo que foi despertado em mim.
Dessa vez também não será diferente. Há muito compreendi os caprichos da palavra: às vezes, ela é poderosa e indiscutível; outras, ela é impotente, incapaz de traduzir o arrepio na pele, a lágrima vertida.
Foi aí que constatei que Piaf se assemelha muito com a palavra: misteriosa, reveladora, ininteligível, contida, soberba, efusiva, elegante, ordinária, controversa, resumida. Piaf era tudo isso e muito mais.
Piaf era previsível. Sim, pre-vi-sí-vel. Dificilmente alguém com seu histórico de vida não perpetuaria as marcas da dor, as mazelas da infância, a crueldade das experiências, a amargura do abandono. Era preciso ser supra-humano para passar incólume por tudo isso. E Piaf era só humana... humana como eu ou como você. É por isso que sua trajetória nos encanta tanto. Sua e outras tantas histórias demasiadamente humanas. São essas que nos marcam, porque criam laços, identidades, nos faz pertencer ao mesmo clã, ao mesmo pó. Somente as experiências afins são comunicadas com tanta delicadeza e força.
Clark Kent, Peter Park, Bruce Wayne e demais heróis distraem-nos daquilo que somos; modificam o foco, a perspectiva da nossa condição, despertam desejos de ser o que jamais seremos. São sonhos, entretenimento, utopia. E não estou dizendo que sejam dispensáveis. Não são. A vida sem esses elementos seria insuportável. Precisamos alimentar quimeras pra conseguirmos agüentar a brutal realidade de sermos apenas quem somos.
Foi por isso demorei tanto a escrever sobre os sentimentos que o filme despertou em mim. Custei a entender que tanta semelhança embaçava o brilho do sonho.
E há momentos na vida em que o que se quer é ser mulher-gato, bela adormecida, mulher maravilha, qualquer coisa que nos faça esquecer, ainda que por breves momentos, que somos Piaf, Stephen Biko, Camille Claudel, Dorothy Parker, Virgínia Woolf, enfim, pessoas que assumiram sua condição e viveram suas experiências baseadas na realidade que as cercava.
Piaf, para além da cantora maravilhosa, intensa; para além da voz refinada e marcante, era só Piaf, por isso, inesquecível.

sexta-feira, abril 18, 2008

quarta-feira, abril 16, 2008

Espasmos # 7

Sim, a vida ainda vibra em mim... ela vibra na constância das minhas oscilações.
Vibra quando tudo arde, quando o sangue goteja, quando os corais se esquecem por segundos de seus habitantes naturais e vêm enfeitar meu corpo, despertando-me para o meu colorido: meu cabelo-alga, minha pele-escama, meus braços-nadadeiras... agora sou porto de mim.

sábado, abril 12, 2008

Espasmos # 6

A verborragia não se esgotara.
Num tom entre o descrente e o irônico, uma outra voz retrucava o mesmo refrão até o ponto de reproduzir ecos que me lembravam de que eu não poderia fugir ao meu destino.
Então, escolheu o melhor diamante – límpido e duro – tatuando sobre minha pele a pergunta tão preciosa:
“Mata-me a curiosidade, conta-me, a vida ainda vibra?”

terça-feira, abril 08, 2008

Espasmos # 5

E alguém sussurrou, ao longe, algo que me pareceu ser assim:

“Diante do Tempo, a vida
pode parecer uma irrelevância
(Talvez o seja mesmo).
O que fazer se o irrelevante
é tudo o que possuo?
Fechar uma porta,
Apagar a luz
Faz toda a diferença.
Não tenho a eternidade para saber...”

sexta-feira, abril 04, 2008

Novidades e um pouquinho de escracho

Em breve este blogue contará com a participação de uma antiga amiga.
Apesar do pouco tempo disponível e de uma agenda atribuladíssima, ela se dispôs a arranjar um horário para atendê-los no Consultório da Valentina.
Quem viver, verá.

quinta-feira, abril 03, 2008

Espasmos # 4

A folha estava amarrotada num claro gesto de quem deitou fora uma idéia que não servia ou não conseguia desenvolver. Bem no centro do papel, em destaque, lia-se a palavra “memória”.
Queria lembrar-me de algo? Ou esquecer? Não importa, agora de posse da memória de outrem, escreveria sobre vidas que não me pertencem, mas que são parte de mim.

segunda-feira, março 31, 2008

Espasmos # 3

E quanto mais gritava ao vento, menos era ouvida. A voz era dissipada pela velocidade do ar... sentia-me órfã, abandonada, lançada ao redemoinho, ao pó... comigo, uma folha de papel era arremessada ao nada; esperei os movimentos, decorei sua rotação e no momento exato do rodopio, agarrei-a com as mãos.

quinta-feira, março 27, 2008

Torcendo para que chegue por aqui

Começa hoje, no Clube Monte Líbano em São Paulo, a comemoração dos 125 anos do nascimento do escritor, pintor e filósofo libanês Khalil Gibran (1883-1931) com o lançamento de medalha, mostra e debates sobre sua obra.

Photobucket

www.starnews2001.com.br/kahlil/museu_gibran.htm


A presidente da Associação Cultural Brasil-Líbano, Lody Brais, conseguiu do Museu Gibran filmes sobre o artista que começam a ser exibidos no sábado. Na sexta, será inaugurada exposição com livros, pinturas, cartas e documentos pessoais no hall do teatro do clube. E no domingo será instalado o busto do escritor na praça que fica entre as Avenidas República do Líbano e Afonso Brás.
Gibran teve sua obra marcada por grande misticismo e idealismo. Seu livro mais famoso, O Profeta, fala de um visionário que se prepara para uma grande viagem que talvez não tenha volta, o que deixa seus discípulos desolados, contudo, antes de partir, orienta-os acerca do amor, da amizade e da liberdade. Gibran tentou unir crenças e filosofias aparentemente inconciliáveis, uma da vez que o livro acentuadamente romântico foi influenciado por fontes de aparente grande contraste: Nietzsche, a Bíblia e William Blake.
Photobucket
www.starnews2001.com.br/kahlil/museu_gibran.htm

Gibran emigrou para os Estados Unidos e começou a escrever poemas e meditações para O Emigrante (Al-Muhajer), jornal árabe publicado em Boston. Ele também desenha e pinta e na exposição de seus primeiros trabalhos, atrai o interesse de Mary Haskell, sua mecenas. Mary custeia os estudos de Gibran em Paris. Lá, ele conhece Rodin e torna-se aluno do famoso artista. Uma de suas telas é escolhida para a Exposição de Belas-Artes de 1910.

Amai-vos...

Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um grilhão.
Que haja, antes, um mar ondulante
entre as praias de vossa alma.

Enchei a taça um do outro,
mas não bebais da mesma taça.

Dai do vosso pão um ao outro,
mas não comais do mesmo pedaço.

Cantai e dançai juntos,
e sede alegres,

mas deixai
cada um de vós estar sozinho.

Assim como as cordas da lira
são separadas e,
no entanto,
vibram na mesma harmonia.

Dai vosso coração,
mas não o confieis à guarda um do outro.

Pois somente a mão da Vida
pode conter vosso coração.

E vivei juntos,
mas não vos aconchegueis demasiadamente.

Pois as colunas do templo
erguem-se separadamente.

E o carvalho e o cipreste
não crescem à sombra um do outro.

sábado, março 08, 2008

Espasmos #2

- É que na maioria das vezes sou mesmo corredeira volumosa...
- Nunca escutas? Quantas vezes precisarei desembocar em ti para entenderes a violência dos sentimentos gerados pela força das minhas águas?
- Suplico ao vento que pare de soprar: estou exausta de tanta arrebentação.

Espasmos #1

Eu sempre me liquefaço em dias de chuva – nunca te disse? Pois é. Dissolvo-me. Diluo minha matéria bruta para aliviar meu peso, meus passos, pois sendo líquido posso vazar pelos poros transformando-me em corredeira ou simplesmente evaporar sem deixar vestígios.

Filosofia Barata (2)

O ser moderno.

- Tudo começou por causa daquele bendito curso de artes plásticas que você me recomendou.
- Então a culpa é minha?
- Em parte – disse sorrindo com olhos perspicazes.
- Mas eu avisei pra você ficar esperta. Ele é ou não é envolvente?
- No começo eu achei que sim. Agora não tenho tanta certeza. No fundo, ele é mais um cretino posando de moderno.
- Espera um pouco, Marina. Ele não é cretino.
- Qual o nome que você dá para alguém que usa a Arte como desculpa para perpetuar um comportamento machista pra lá de secular?
- Ele é desencanado.
- Ele é filho da puta. Se são sinônimos para você, tudo bem.
- Mas me conta, o que aconteceu?
- Não aconteceu. E pelo ritmo acelerado do meu desinteresse, não vai acontecer.
Suspirou fundo e deu início ao seu monólogo:
“Enquanto desenhávamos, ele passeava pela sala, observava nossos traços e nossas expressões. Ao final da aula, pediu para que eu ficasse. Precisava conversar comigo. Fiquei. Ele deu mil dicas e sugestões, indicou livros e pediu meu telefone. Ligou. Falou da mulher que sou: interessante, independente, sedutora... queria me ver, me tocar, falou um monte de sacanagem. Do outro lado eu me divertia com a fantasia que criara a meu respeito. Foi direto e sem cerimônias. Queria prazer sem compromisso. Ri ainda mais. Achei a frase digna dos anúncios de jornais da sessão de acompanhantes: “fulano realiza todos os seus desejos, prazer garantido sem compromissos.” Se ele se ouvisse de verdade, o cara moderno e liberal que acreditava ser daria lugar a um troglodita total. “Me deixa te ver”, ele insistia. Eu disse que não podia e realmente não podia mesmo, mas dei corda, no fim de semana nos encontraríamos, sairíamos para tomar um café. “Vamos deixar rolar, ver se a química funciona.” Foi então que a conversa mudou de rumo. Ele: eu te disse que tenho namorada? Eu: não, não perguntei. Ele: não acho fidelidade uma coisa tão importante. Eu: acho lealdade mais importante do que fidelidade. Ele: era importante que você soubesse disso. Eu: é importante que VOCÊ saiba disso. Ele: como? Eu: estou solteira, livre, faço o que quero e quando quero, portanto, não devo satisfações a ninguém. Ele: entendo, digo isso porque não posso ser visto, o encontro tem que ser num lugar discreto. Eu: parece que sua namorada não tem a mesma opinião sobre a fidelidade. (silêncio). Eu novamente: vou ser absolutamente sincera. Primeiro, eu não tenho motivos para me esconder; segundo, mesmo que seja só prazer sem compromisso (e eu não vejo nenhum problema nisso), há que se ter delicadeza, afinal, uma boa dose de cortejo não mata ninguém. Existem pessoas (e isso não é nenhuma novidade), quando bem pagas, que tiram a roupa, transam e vão embora. Sem nenhuma complicação e o melhor, sem compromisso. Ele: não quis te ofender. Eu: não ofendeu. Sacanagem é algo fácil de fazer, principalmente sem compromisso, mas feita assim tão secamente não tem graça, não deixa lembrança, não vira ficção, não marca, é mera contabilidade. Ainda que um encontro seja apenas sexo, é preciso ter cheiro, textura, química, conquista, precisa instigar, desafiar, criar clima, ter vontade de falar difícil, impressionar, ler Rimbaud no original... ele: isso é romance, não sexo.”
- Mas que cretino!
- Como você mudou de opinião! E rápido!

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Para que servem as listas?

Não sei bem, talvez para serem contestadas. O certo é que elas proliferam ano após ano.
Apresento-lhes a lista dos “Cem Melhores Filmes”, feita pelo crítico inglês Ronald Bergan que consta no seu livro que acaba de ser traduzido e publicado pela Editora Zahar.
Bergan apresenta comentários sobre cada um dos filmes que selecionou, ordenados rigorosamente em ordem cronológica.
Se há injustiças? Ou melhor seria dizer omissões? Sempre há, mas confesso que fiquei orgulhosíssima ao ver citado o brasileirinho Cidade de Deus.
Cinéfilos, deliciem-se.

O Nascimento de uma Nação – O Gabinete do Dr. Caligari – Nosferatu, o Vampiro – Nanook, o Esquimó – O Encouraçado Potemkim – Metrópolis – Napoleão – Um Cão Andaluz – O Martírio de Joana d’Arc – Nada de Novo no Front – O Anjo Azul – Luzes da Cidade – Rua 42 – O Diabo a Quatro – King Kong – O Atalante – Branca de Neve e os Sete Anões – Olímpia – A Regra do Jogo – ... E o Vento Levou – Jejum do Amor – As Vinhas da Ira – Cidadão Kane – Relíquia Macabra – Pérfida – Ser ou Não Ser – Nosso Barco, Nossa Vida – Casablanca – Obsessão – O Bulevar do Crime – Nesse Mundo e no Outro – A Felicidade Não se Compra – Ladrões de Bicicleta – Carta de uma Desconhecida – Um País de Anedota – O Terceiro Homem – Orfeu – Rashomom – Cantando na Chuva – Era uma Vez em Tóquio – Sindicato de Ladrões – Tudo o que o Céu Permite – Juventude Transviada – A Canção da Estrada – A Mensagem do Diabo – O Sétimo Selo – Um Corpo que Cai – Cinzas e Diamantes – Os Incompreendidos – Quanto Mais Quente Melhor – Acossado – A Doce Vida – Tudo Começou no Sábado – A Aventura – O Ano Passado em Marienbad – Lawrence da Arábia – Dr. Fantástico – A Batalha de Argel – A Noviça Rebelde – Andrei Rublev – The Chelsea Girls – Bonnie e Clyde – Meu Ódio Será sua Herança – Sem Destino – O Conformista – O Poderoso Chefão – Aguirre, a Cólera dos Deuses – Nashville – O Império dos Sentidos – Taxi Driver – Noivo Neurótico, Noiva Nervosa – Guerra nas Estrelas – O Casamento de Maria Braun – O Franco-Atirador – ET, o Extra-terrestre – Blade Runner, o Caçador de Andróides – Paris, Texas – Heimat – Vá e Veja – Veludo Azul – Shoah – Uma Janela para o Amor – Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos – Cinema Paradiso – Faça a Coisa Certa – Lanternas Vermelhas – Os Imperdoáveis – Cães de Aluguel – Trois Couleurs – Através das Oliveiras – Quatro Casamentos e um Funeral – Troy Story – Fargo, uma Comédia de Erros – O Tigre e o Dragão – Amor à Flor da Pele – Traffic – O Senhor dos Anéis – Cidade de Deus – Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

Dos equívocos

O poema que Maiakovski não escreveu

O equívoco que persiste em torno de célebre poema de Eduardo Alves da Costa, atribuído ao poeta russo indevidamente

Por Juareiz Correya, poeta e editor

Um poeta brasileiro tem sido confundido, com freqüência, nas quatro últimas décadas, com o poeta russo Vladimir Maiakovski. Os equívocos cometidos, as leituras apressadas, uma provável desatenção e, até mesmo, certo descaso com a produção poética brasileira contemporânea, já produziram interpretações impensadas e informações à beira de um ataque de sandice no meio cultural brasileiro. Comentários e artigos de algumas personalidades, de gente ilustrada e lida, têm reanimado a confusão e perpetuado um erro, no mínimo, culpado por uma séria injustiça que desvaloriza um dos grandes nomes da poesia brasileira particularmente criada na segunda metade do século 20. O poeta em questão é o fluminense Eduardo Alves da Costa, nascido em Niterói (RJ) e, paulistanizado desde os anos 60, reconhecidamente um dos mais expressivos poetas de São Paulo, cidade cuja produção poética é rica também por contar, em sua geração, com nomes da grandeza de um Álvaro Alves de Faria, Alberto Beuttenmuller, Eunice Arruda, Renata Pallotini, Cláudio Willer, Jaa Torrano, Érico Max Muller, Roberto Piva, entre outros. Confundem o seu nome com o de Maiakovski por causa da publicação do seu poema, justamente intitulado “No caminho, com Maiakovski”, incluído originalmente no seu livro O Tocador de Atabaque, lançado em São Paulo no ano de 1969.
Só para exemplificar, de forma bem localizada, cito alguns equívocos cometidos por escritores e jornalistas pernambucanos que conheço:
Há alguns anos, um professor, jornalista e poeta muito bem conceituado e reconhecidamente erudito, publicou, no Diário de Pernambuco, excelente artigo com a sua revelada e justa indignação sobre o momento político nacional, citando o poema de autoria de... Maiakovski! Por conhecê-lo e respeitá-lo, quando o encontrei, dias depois, lhe dei a informação sobre o verdadeiro autor do poema e ele, muito educado e consciencioso, me agradeceu a providencial correção. E outro não menos informado e culto jornalista, com coluna no Diário de Pernambuco, escreveu, em 2004, texto crítico muito bem contextualizado sobre a nossa indigente política nacional, citando “as flores do jardim” do poema de autoria de... Brecht! (Tem também este alemão na história...) Por conhecer pessoal-mente o jornalista, enviei comunicação sobre o erro acidental e ele me agradeceu com informação imediata divulgada na sua prestigiada coluna. Mas a confusão das identidades dos poetas continuou ainda neste ano de 2007, com a publicação de artigo corajoso, vigoroso e muito bem escrito, defendendo o Nordeste brasileiro, de autoria de conhecido professor e escritor pernambucano, em um dos jornais diários do Recife, em que Maiakovski, mais uma vez, é enaltecido como autor do poema no qual ele é citado e o autor é o brasileiríssimo Eduardo Alves da Costa.
E, para que não se diga que não falamos das flores do poema direito, e não se confunda mais russo com brasileiro, oferecemos, aos leitores da Continente, ajuda para iluminar a sua compreensão sobre esse problema jornalístico (não é literário porque o autor não o criou, e não é um problema editorial e cultural porque a Editora, ao publicar o poema em 1985, esclareceu, objetivamente, a questão): transcrevemos o famoso poema, pouco conhecido na íntegra, de Eduardo Alves da Costa, intitulado “No caminho, com Maiakovski”:

“Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakovski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo o nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio do meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.

Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA !”

sábado, outubro 13, 2007

Ele vai deixar muitas saudades...


Paulo Autran, o Senhor dos Palcos (1922-2007)

sexta-feira, outubro 05, 2007

Bravo! Bravíssimo!

Ela, a eloqüente Camila foi uma das dez finalistas do Concurso de Contos da Revista Bravo.
Parabéns, minha flor!

for ever:
* por Camila Magalhães Pereira Mendonça


!

ela vem tentando ler os mesmos livros de sempre. aqueles mal acabados. foi largando pela metade na prateleira. há muita dificuldade em encarar os fins.

tentou convencê-lo a instalar um ventilador de teto no quarto. fez ameaça de leve - aqui não trepo mais. credo cruz três vezes. coitada. tão falha. e mal se resolveu o papo, até que virou briga. agora estão emburrados. coisa chata de se ver.

mas se amam bonito. esse amor piegas dos apaixonados. amor-paixão. coisa de filme. coisa que ninguém acredita. tinha aquele papo de amigos. e toda a evolução homem e mulher que se sabe quando se trata de sexo sem sentimentos. mas tudo embola, tudo complica. ela sempre se envolve e não tem jeito.

andou ouvindo um cara australiano. mas não tem certeza. venezuelano? neo-hippie de barba coisa e tal. disse que era leve e fazia bem ao corpo. quando tocava no rádio ela fazia uns movimentos estranhos. coisa de yoga. uma acrobacia aeróbica disfarçando um efeito zen.

ele ficava parado no canto, encostado na parede, vendo ela deitada no tapete; porque na sala tinha o tal ventilador de teto. são casal de pouco, juntado a tempo curto. lua de mel ainda. pouca grana e muita alegria. apesar das brigas.

falta um ar condicionado. resolveria metade e meia das questões.

o calor estressa até a raiz, ela diz. a raiz dos pentelhos. e crescem loucos. tem alergia a gilete. mas depilar é um sofrimento sem fim. tem sempre a ditadura tortuosa da beleza. ser mulher não é uma tragédia, mas é um drama, ela bem sabe. e ele entende. porque é dos melhores homens do mundo. cabe aqui aquela pieguice inicial.

é quase dezembro. e não se esquece a trajetória desesperada desses dias abafados. mas desta vez vai. pensam num destilado. coisa bem gelada. para descer bacana. e vão agradecendo. quase ninguém acredita; há que se repetir. ele tem certeza dos mitos da predestinação. "maktub", diria aquele mago nojento na sua coluna diária do jornal. mas a gente sabe que não é bem assim. se era para ser, metade transpira a outra inspira. é sempre o esforço. é sempre o impulso de acreditar que vale firme.

ontem ela ligou para o ex, confirmando os seus caprichos particulares- olha, meu bem, você me superou. pronto e tchau. era um desabafo franco de meia palavra. bastou fundo. ele entendeu. mesmo naquele suspiro. é que o ex havia mandado um cartão para ela. desses cafonas de fim de ano. falava de amor, de ressentimento, de perdão e graça. foi dado o recado. e ela que estima tanto esses sutis discursos; respeitou. guardou na caixa de cartas. talvez ainda releia algumas vezes. para acreditar. remorso de quem perde. e reflexão de quem foi perdido. mas então já era. e foi. mas mesmo assim ela ligou. tinhosa. as últimas palavras são sempre dela.

o prédio onde moram tem os enfeites natalinos de sempre. o elevador da garagem permanece enguiçado. de praxe. sobem de escada, respirando fundo, passos largos. apesar da yoga, ela tem asma. voltou a roer as unhas, mas mantém a tal da paz de espírito - é muita concentração, diz.

colocou na varanda um bonsai, veio com uns papos orientais, um misticismo estranho. não cabia, claro. logo se esqueceu, mas ficou lá a árvore mini de apetrecho. o apartamento tem as cores dela. e ele até gosta. disse que ela deu vida, deu harmonia. aquela coisa toda.

a gente nunca sabe até quando vai. e se vai.

tinha sempre em mente um trecho de um livro que ele leu gaguejando no início do romance. era nervosismo. tinham acabado de transar. e ele disse que queria ler algo. estava emocionado ainda. gozo, declaração, olho no olho - é atestado; gozar de olhos abertos apaixona, ou dá início à; fato concreto - então começou a ler baixinho enfatizando as expressões portuguesas. era uma maneira de alfinetá-la, claro. lembrando seu passado lusitano. e ele morria de ciúmes do tal português. mas apesar da provocação ela gostou. achei bonito. o trecho era bom. se emocionei de leve. mas preferiu tomar banho em seguida. nada de emoções as claras, era só o começo.

ela tem mania de sair arrumando as coisas. levanta catando as roupas, jogando a sujeira no lixo. uma chata completa. adorável perfeccionista.

e a gente continua sem saber até onde vai. se vai.

já pôs o venezuelano para tocar. é venezuelano? diz que teve influência do caetano veloso. este ela odeia com força. mas ele comprou o cd. ele sabe que no fundo ela gostou de três, quatro músicas.

e lá foi ela deitar cheirando a vick. aqueles ritos que trouxe de casa. era coisa da mãe. seres humanos, mais freudianos do que podem assumir.

dormiam numa cama média. aquela entre solteiro e casal. dizem que é cama de viúva. de viúvo. é o que se tornaram depois de tantos relacionamentos desgastados, arruinados, fracassados. viúvos. agora é king size. amém desse jeito. sem aliança. sem burocracia religiosa. mas ela disse que quer assinar papelada no cartório. nada de mudar nome. só uma coisa mulherzinha. ele acha desnecessário. mas se é por ela - e é por nós, ele também sente, sensível- disse que sim repetidas vezes para ela saber valia.

mas é fim de ano. há que se lembrar. e ela não gosta de fins, se sabe. retornou aos livros de sempre. faz calor. a pressão não tolera esses dias. é quase inferno astral, viu um astrólogo dizendo na tv. não acredita. mas tem lá suas tensões propícias ao período. ter fé. ver coragem no amor. isso já foi frase de música.

dessa vez eles se salvam.

sexta-feira, setembro 14, 2007

Sala de Leitura (4): uma homenagem - antes tarde do que nunca

Os silêncios de Bergman e Antonioni
Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Os dois grandes cineastas trabalharam, cada um a sua maneira, a simbologia do silêncio
Por Marcelo Costa*

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Durante as décadas de 50 e 60, notadamente, o cinema viu surgir uma geração de realizadores preocupados em mostrar, entender e até intervir no mundo ao seu redor, que passava por uma reestruturação radical em virtude do pós-guerra. Nesse contexto de destruição física e espiritual da Europa, surgiram grandes artistas, cujas obras lançaram a linguagem cinematográfica a patamares nunca antes vistos. Numa encruzilhada entre o destino e o acaso, dois dos últimos remanescentes dessa geração deram seu adeus silencioso no mesmo dia: Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleceram em 30 de julho.
Pouquíssimos cineastas deixaram uma filmografia tão valiosa e coerente quanto eles. Ambos se valeram da era sonora do cinema para cultuar, da forma mais íntima e minimalista, a angústia do silêncio numa época em que a reflexão, a busca por respostas ou mesmo a resignação pareciam nortear uma geração desamparada. Para o sueco Bergman, o silêncio é uma forma de imersão ou sublimação da alma humana, em meio a diálogos atormentados pela certeza da morte, por dúvidas em relação à existência e pela culpa que nos recai sobre os ombros. É o cavaleiro Antonius Blok em sua cruzada pelo sentido da vida, enquanto enfrenta a morte num duelo de xadrez no clássico O Sétimo Selo (1956); ou o idoso professor de medicina – interpretado por Victor Sjöstrom, referência do cinema mudo sueco – que, prestes a receber a última homenagem, se submete a um revisionismo existencial, em Morangos Silvestres (1957).

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Já em Antonioni, o silêncio é o símbolo da rarefação, do esvaziamento existencial e banalização do indivíduo que desconhece o porquê de sua ação, que busca algo, mesmo sem um sentido para a busca. Isso fica evidente em obras-primas de sua fase em cores como Blow-up – Depois Daquele Beijo (1966) e Profissão: Repórter (1975), nos quais os personagens se assemelham ao Mersault, de O Estrangeiro de Albert Camus. Se, em Bergman, os indivíduos contraem as vísceras para expor toda a fragilidade e falibilidade humana em diálogos cortantes, Antonioni vai se valer dos espaços vazios que se estabelecem entre seres humanos sem perspectivas para compor uma ode ao tédio e à melancolia. Seu primeiro sucesso foi A Aventura (1960), que inauguraria a célebre “trilogia da incomunicabilidade”, formada por A Noite (1961) e O Eclipse (1962). Marcados pela presença de sua musa Monica Vitti, os filmes revelam um olhar crítico e humano de uma burguesia imersa em desencontros, superficialidades e na angústia de uma vida banal. Também Deserto Vermelho (1964), seu primeiro filme em cores, trazia Vitti num espetáculo fotográfico sobre a incomunicabilidade e a solidão.
Um quarto vermelho com quatro mulheres taciturnas foi o ponto de partida de Bergman para compor Gritos e Sussurros (1975), um estudo sobre a morte e as relações humanas. Filho de um pastor luterano de ríspida educação religiosa com uma mãe fria e distante, fato retratado em Fanny e Alexander (1982), Bergman tem sua obra ressoada pela sua biografia, os relacionamentos vividos e os estudos em história da arte e teatro. A fragilidade da fé e do indivíduo, as marcas deixadas pelos cisalhamentos das relações humanas (Cenas de Um Casamento e Sonata de Outono), o desnudamento psicológico de seus personagens são recorrentes em sua obra, esteticamente marcada pela influência do expressionismo alemão, do cinema mudo sueco e do norueguês Carl Theodor Dreyer, em cujos filmes ecoam os conflitos do existencialismo cristão de Soren Kierkegaard. Os planos psicológicos, o jogo de luz e sombras e os closes eróticos nos rostos femininos, executados com maestria por Sven Nykvist, estão em Persona (1966). No filme, uma atriz de teatro emudece (Liv Ullmann) ao interpretar Electra, e a partir de sua relação com a enfermeira Alma (Bibi Andersson), Bergman disseca a fragilidade da identidade humana numa fusão de personalidades. Curiosamente, ambas as atrizes foram musas e esposas do cineasta.
A questão da identidade, ou da falta dela, também foi explorada por Antonioni. Em Profissão: Repórter, Jack Nicholson é o jornalista que assume a identidade de um traficante de armas na África, numa atmosfera que remete à vida e ao suicídio social do inquietante poeta Arthur Rimbaud. Com um desfecho memorável – plano seqüência de dez minutos – Antonioni traduz bem sua linguagem. Seus filmes seguem um ritmo lento, sob um tempo que se arrasta, oposto à velocidade e às associações projetivas do cinema hollywoodiano; incompatíveis com a vida. Mesmo em seu filme americano, Zabriskie Point (1970), Antonioni não conseguiu se aproximar do público, talvez pela lentidão, talvez pela ambigüidade, já demonstrada no desaparecimento não explicado de A Aventura ou em Blow Up. Parecia não se importar, afinal, queria pôr tudo pelos ares.
O próprio Bergman era admirador do desinteresse e do tom visionário de alguns filmes de Antonioni. Diferenças de visões de mundo e de estilos à parte, trata-se de dois pensadores que perpetuaram idéias e sensações através da arte. Seus nomes estão eternizados no museu do inconsciente coletivo do cinema. Entretanto, numa civilização fatigada de referências visuais, sonoras e culturais, não sabemos bem que tipo de visita suas obras irão receber nessa era “pós-moderna”, na qual o silêncio e a contemplação estão encobertos pelos ruídos, bips e as vozes da falta de comunicação entre os indivíduos.

*Marcelo Costa é jornalista.

quinta-feira, setembro 06, 2007

“... é da palavra que nascem todas as idéias do Homem – no princípio era o Verbo – e, como já afirmei antes, a palavra é o átomo da alma. E a última razão é que em português, a palavra tem o dom mágico de conter nela mesma – por linda coincidência e sem qualquer implicação semântica – a matéria-prima e seu instrumento. Somente com a palavra pode-se mover a palavra, tirar dela a sua essência, tocar o próprio coração da palavra; já que ela é lavra, já que ela é pá”.
Ziraldo

I - A OBRA COSTURADA POR FORA (OU A CICATRIZ DO MUNDO).

O conjunto da obra da escritora Clarice Lispector sempre foi muito criticado por apresentar estórias e personagens etéreos e esfumaçados, com pouca clareza e difícil apreensão. A autora foi rotulada de intimista e pouco comprometida com questões sociais, ou dizendo de uma outra forma, Clarice era uma escritora não engajada.
Dessa forma, então, Clarice Lispector se lançou ao desafio de responder à crítica, ou pelo menos tentar. Quis provar que sabia (mas, por opção, não desejava) fazer diferente.
A resposta para tal embate se concretizou em A hora da estrela, essa obra avassaladora: contundente e explícita e ao mesmo tempo fluida e velada. Ponto para a crítica, ponto para Clarice.
Como A hora da estrela é uma obra grávida de idéias e de elementos para reflexão e análise, pode-se constatar inúmeros aspectos por ela abordados: o papel do intelectual na sociedade; a indigência do povo brasileiro representado na figura de Macabéa; a reflexão sobre a condição da mulher; a discussão sobre o exercício da linguagem/fala como forma de legitimar o discurso competente bem como da apropriação do ato de escrever e de dar/ter voz.
Ler tal obra é ser, de alguma forma, violentamente lançado nesse universo inquietante e questionador, diria mesmo que é impossível não se sentir tentado a tecer comentários sobre esses temas. Ao nos depararmos com tal quadro, desponta uma necessidade urgente, uma quase obrigação de elaborarmos algumas respostas nem que seja para nós mesmos, para não sentirmos o incômodo de parecer, em absoluto, com a personagem. Surge uma vontade de agir, como se pudéssemos gritar (e sermos ouvidos!) em bom e alto som: Reage Macabéa! Fala alguma coisa!
Mas é claro que não é tão fácil assim!!
Ter a consciência do poder da palavra é viver em suspense, porque essa consciência nos diz a todo o momento que ela é fonte de liberdade tanto quanto o é de opressão. Todo aquele que domina o instrumental técnico da linguagem e com ele constrói representações acerca do mundo, faz parte de uma pequena elite que ocupa espaço privilegiado na sociedade, posicionando-se como agente transformador do discurso, decidindo o que deve ser dito bem como seu lugar na escala de importância e competência.
Dessa forma, aquele que tem voz usufrui a liberdade de construir os símbolos e celebrar seus valores. Por outro lado, o fato se de fazer parte do grupo que domina o discurso, necessariamente confirma o seu oposto: a existência dos excluídos, dos marginais, dos impossibilitados de se fazerem representar. Os detentores do discurso “legítimo” estão sempre lembrando a esses outros de que não possuem nem espaço nem voz, logo estão condenados a não compartilhar e celebrar o código dessa minoria. De alguma forma usurpam e aviltam o ser, retirando-lhe a voz e o direito de participar efetivamente dos ritos sociais.
Levando em consideração o texto de J. Carey[1] sobre o papel dos intelectuais na sociedade, é possível observar o estreito diálogo que estabelece com o livro em questão.
Carey nos fala da resistência dos intelectuais em aceitar a presença da massa quer como consumidora de informação, formadora de uma opinião ou (pior!) produtora da cultura formal.
É possível traçar um paralelo entre a posição reivindicada pelos intelectuais representantes do movimento modernista europeu citado no texto de John Carey com os filósofos da Antigüidade, os intelectuais se assemelhariam aos escolhidos, os seres superiores que regeriam a sociedade bem ao modelo desenvolvido por Platão, n’A República[2], para dividir a sociedade grega em grupos segundo a função social que viriam a desempenhar. É a conhecida lei dos três estágios da alma.
As Almas de Bronze formavam os exércitos por estarem mais ligadas às aptidões físicas; as Almas de Prata compunham o setor mercantil e artesanal, provendo os bens necessários para a subsistência; e por fim as Almas de Ouro - aquelas poucas que ocupariam cargos públicos estratégicos ou então formariam a casta dos filósofos, “os escolhidos” pelo seu aprimorado intelecto e aptidão de trabalhar com a palavra, ou dizendo de outro modo, as Almas de Ouro eram as detentoras do discurso dominante, logo, da representação.
As Almas de Bronze morriam como tal, e assim por diante, não havendo a possibilidade de ‘invasão’ na competência dos outros e, mais importante, não ameaçando o status do sábio e propagador da cultura formal.
Carey vai mostrando, ao longo do seu texto, o comportamento desses intelectuais (não tão distante do modelo idealizado por Platão) diante da crescente transformação social: crescimento demográfico, o advento da imprensa escrita, a política de alfabetização, etc. Vendo-se impossibilitados de brecar o processo histórico, criaram um mecanismo poderoso, desenvolveram um código de escrita bastante elaborado como forma de excluir a massa e continuar lhe negando direito à voz, permitindo que a elite intelectual permanecesse dominando o discurso.
Ora, não é essa a estória da nossa heroína trágica, de Macabéa?
Hoje, já é possível aceitar o fato (ou a desculpa) de que a indigência seja pelo menos representada na literatura, mas também é sintomático que num plano de análise (que chamarei de material) essa indigência seja ironicamente representada por uma personagem como Macabéa, tão frágil, de "corpo cariado" e sem voz ou pelo menos inconsciente da sua existência.
Por mais vida, por mais sentimentos profundos e complexos que Clarice tenha dotado sua obra e sua Macabéa – mulher, feia, nordestina, semi-alfabetizada –, sua percepção e apreensão só é possível por um leitor com características opostas às da personagem. (Que contradição! Um livro escrito sobre a massa, mais especificamente sobre o povo brasileiro, “só pode ser lido [3]” pela mesma elite que dela fala!).
Se Clarice já é inerentemente uma escritora de difícil leitura e compreensão, em A hora da estrela, o universo humano ficou ainda mais particularizado, ou seja, voltado para uma elite detentora de bens simbólicos refinados o suficiente para adentrar em tão densas questões. Falando mais claramente: a massa está presente na obra com todas as implicações e ambigüidades possíveis. Mais do que isso, a massa, protagonizada por Macabéa, é elemento primordial no livro, contudo ela não tem acesso a ele e, mais importante, não foi escrito por alguém que a represente.
Recuperando o ponto onde disse haver distintos planos de análise da obra, um que chamo material e um outro de existencial, quero desde já esclarecer que são duas faces de uma mesma moeda. Esses planos formam uma díade inseparável, mas para efeito de visualização e entendimento, creio ser legítimo fazer esse recorte.
À primeira vista, é possível apontar um plano material de análise. Diria que é aquele explicitado pelo narrador-personagem, aquele que salta aos olhos, tamanha a crueza com que delineia as características de Macabéa: ela é feia, frágil, vaga, vazia, desinteressante, sem voz e “incompetente para a vida”. Não tem opinião, vive exposta ao que o acaso lhe revela e o que revela é inconteste.
A começar pelo próprio nome. MACABÉA comporta todas as implicações da ambigüidade e do paradoxo dos planos de análise. Macabéa é o feminino de macabeu. Macabeus[4] é também um livro (subdividido em duas partes) do Antigo Testamento que conta a estória do cativeiro e libertação dos judeus depois do domínio de Alexandre Magno da Macedônia. Após uma fase de gozo de liberdade religiosa, os hebreus caíram sob o jugo dos reis da Síria. Antíoco IV acentuou a luta contra os judeus quando impôs aos mesmos o helenismo como prática religiosa e punindo com pena de morte a prática da religião judaica. Alguns judeus preferiam a morte ao abandono da sua fé. Posteriormente, num movimento de resistência, foram chefiados primeiro pelo sacerdote Matatias e depois pelos macabeus: Judas, Jônatas e Simão.
Assim como os macabeus foram obrigados a se submeter a uma imposição tirana, cerceadora da liberdade religiosa, também a nossa heroína se viu obrigada a sobreviver num mundo opressor que limita sua própria liberdade de existir.
E o que tudo isso quer dizer? Macabéa traz em si mesma o germe da contradição: encontra-se encarcerada pela sua própria inadaptação à sociedade de valores capitalistas (plano material) ao mesmo tempo em que tudo explicitamente negativo que possui representa a liberdade plena do mundo a ser vivido (plano existencial).
O corpo, a fragilidade da heroína sem voz é o cativeiro que a aprisiona, gritando muito alto para o mundo que ela é incapaz de reproduzir o sistema no qual está imersa. Em tal mundo ela não se encaixa, tanto que no fim ela morre (talvez como aqueles macabeus que preferiam a espada a negar suas crenças). A sociedade alardeia: Macabéa, não existe lugar para você nesse mundo! Em contrapartida, sua liberdade, sua redenção se localiza num outro plano: o da afetividade. A sua incompetência para viver (os valores pequeno-burgueses) é refletida na sua incompetência para enganar, ambicionar ou ferir o outro. Apesar de ser (aparentemente) vazia e estúpida, Macabéa, à la Sartre, dialoga exaustivamente consigo mesma, se confronta, questiona a si e a tudo o tempo todo quando duvida das coisas. E se há algo que a ‘velha Maca’ possui são dúvidas: não tem certeza de quem é, do que faz, da dor e do amor que sente.
Será coincidência que a construção dessa personagem apática abrigue em si mesma a desgraça e a força do poder de resistência de um povo?

II - A OBRA COSTURADA POR DENTRO (OU A OBRA POR ELA MESMA).

Notemos que as interpretações e correspondências estabelecidas entre a obra e a lógica do tempo e do espaço do mundo ‘real’ (contemporaneidade), podem também ser feitas nos limites do próprio livro que nesse sentido é atemporal, porque levanta questões de ordem internas (diálogo de si sobre si mesmo), como as questões de estética, de estilo, de linguagem e da própria relevância da obra como tal.
Por exemplo, impossível deixar de perceber o diálogo e os paralelismos que se estabelecem entre Clarice Lispector e Machado de Assis, no que diz respeito ao estilo.
O primeiro ponto que salta aos olhos é a questão da onisciência/onipresença do autor/narrador/personagem com os narradores de Machado. Rodrigo S.M. possui a virulência e a sutileza nas/das palavras e reflexões sobre o destino da personagem. Assim como os narradores de Machado, ele não se restringe a narrar fatos. Na verdade, ele está tão entrelaçado na vida da heroína que por vezes fica difícil reconhecer de quem são os sentimentos e impressões do mundo e das coisas. Na instância humana do romance, ele conhece tão bem sua personagem que chegam a se confundir, são antípodas de uma mesma relação.
Ao mesmo tempo, (numa outra instância que reconhecemos enquanto exercício da linguagem) demarca o abismo que se estende entre os dois. Ele é o detentor da fala, do discurso. Várias vezes se gaba do estilo metalingüístico e do domínio do seu instrumento de trabalho – a palavra!
Um segundo ponto é a prevalência da análise psicológica (rica nas obras de Machado) que ganha grande destaque como questionadora do ser humano e do seu papel social, da relação metafísica entre o Deus criador e a Existência tal como se apresenta: o intelectual tem esse caráter divino de criar vida, inventar um mundo próprio, agindo como um Deus no seu Universo literário. Essas inquietações são sentidas através de Clarice, Deus-mor da obra; de Rodrigo, “co-criador” de Macabéa e de sua condição (melhor seria dizer sua não-condição); e da própria Macabéa, que é incapaz de inventar um mundo próprio porque desconhece que possa fazê-lo.
O terceiro ponto é o jogo que a autora faz com o conto “A cartomante[5]”, usando exatamente os mesmos elementos contidos neste, ou seja, apresentando uma saída externa à personagem e sua trajetória frente à impossibilidade deles próprios darem uma resposta a suas angústias.
Macabéa não tem alternativas no espaço no qual está imersa e, quando surge a oportunidade de reação, ela é falseada porque não é uma ação provocada pela consciência da sua situação no mundo, qualquer que seja o plano de análise, mas induzida por uma ação salvacionista externa e superior que está além da realidade vivida.
Não podemos esquecer as pitadas de ironia com que a autora dá cor ao quadro e faz as ligações entre as duas realidades: a da ficção e da não-ficção. Clarice ‘brinca’ metafórica e simultaneamente, com os valores do universo literário e os da sociedade capitalista de consumo.
A saída apontada pela cartomante de Clarice está no encontro de um amor específico e preconceituosamente estereotipado, aceito como modelo de sucesso dentro da sociedade. A salvação de Macabéa se dá pela mão de um belo homem louro, rico e estrangeiro. Sintomático que nossa heroína seja pobre, esteticamente desinteressante e nordestina e que sua ascensão social (material) e humana (existencial) só possa se concretizar à margem do processo de tomada de consciência, da SUA consciência. Mais uma vez é marcada a incompetência de Macabéa para superar suas debilidades por ela mesma.
No fim, vence o sistema de valores capitalistas. Não há qualquer redenção para ela. Ao mesmo tempo em que seu autor/escritor (Rodrigo/Clarice) se embriaga e se confunde na existência de Macabéa, dela se diferencia enquanto ator, agente da transformação social (ele é o intelectual) quando - apesar de toda a coincidência do oco de suas vidas - ele continua a existir e tendo lugar no mundo, continua sendo aceito, continua comendo morangos. . .

[1] CAREY, J. “A rebelião das massas” in Os Intelectuais e as Massas – orgulho e preconceito entre a intelligentsia literária, 1880-1939. São Paulo: Ars Poetica, 1993.
[2] É preciso deixar claro que o princípio de seleção das almas obedece ao critério de igualdade de oportunidades. Todos os cidadãos receberiam uma mesma orientação até o teste. Os reprovados nessa primeira etapa, consequentemente paravam de receber qualquer instrução, constituindo o exército - as almas de bronze. Os aprovados prosseguiam nos estudos até o novo teste. Os reprovados formariam um segundo estamento social e os aprovados recebiam como prêmio a especialização nos estudos, logo, constituindo a elite do saber, as almas de ouro.
[3] Cabe aqui uma ressalva: quando digo que este livro só “pode ser lido por uma...” não está aqui contido qualquer espécie de preconceito. É claro que não existe um público apto para ler especificamente Clarice, João Cabral, Machado ou qualquer outro escritor. A diferença que estabeleço é de que há algumas especificidades concretas exigidas para esta leitura da obra que certamente a massa destituída de voz não consegue alcançar, pois – parafraseando Bourdieu – não tem a apropriação dos instrumentos de capital simbólico ou está fora deste determinado campo científico. Ou ainda em outras palavras, os representantes da massa não podem ser seus próprios críticos, pois não alcançam os códigos do campo literário. E isso nada tem a ver com a sensibilidade de cada leitor em relação a uma obra ou autor.Ver BOURDIEU, P. “A produção e a reprodução da língua legítima” in A Economia das Trocas Lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996 e “O campo científico” in A Economia das Trocas Simbólicas.
[4] “I e II Livro dos Macabeus” in Bíblia Sagrada. Ed. Paulinas. p.1110-74.
[5] Machado de Assis. “A Cartomante” in Contos. Ed. Ática.