terça-feira, agosto 31, 2004

Minha música

Ouve! O que escrevo é música de câmara. Uma música belíssima que nasce das minhas profundezas. Lá onde tudo é sombra e criação incontida, irrepresável.
Busco no perfume da noite o alimento da minha regeneração. Respiro fundo e retiro a energia vital que embala o sono das palavras.
Enquanto elas dormem, faço vigília e espero a melodia tomar forma, então, escrevo e o que escrevo não é para ser lido.
Minha palavra é uma orquestração muda, é música silenciosa.

Observações de um domingo à noite

Há muitos motivos que justificam as lágrimas: o beijo, o colo, o alento, o riso do filho, o amor.
São motivos onde o choro embarga a alma, estreita laços afetivos, surpreende os ignorantes e poderosos, emociona os arrogantes.
Há, entretanto, motivos que empalidecem os rostos, desbotam os gestos, envergonham os sentidos, paralizam as expressões, desfalecem a coragem, enfim, desumanizam.

segunda-feira, agosto 30, 2004

Reticências

Quantas janelas precisam ser descerradas para que o mundo seja visto? O mundo cru e ofegante.
Lado-a-lado, o homem percorre longos caminhos sem se dar conta do outro. O outro, uma sombra que o acompanha.
O olhar, sempre ocupado, não tem tempo a perder (nem a ganhar).
O olho mira, o olho cega, o olho veda e tudo ao redor parda.
Perde-se a vida.
Lá fora, o tempo passa impreterivelmente.
Aqui dentro... quem sou eu?

sexta-feira, agosto 27, 2004

Um poeminha antigo

VIA CRUCIS


Por que tanto amor
Se não há lugar,
Não há espaço,
Não há cama no mundo
Que o suporte?

O amor cansou do amor...
Juntou seus pedaços,
Fragmentos de cartas,
Livros esquecidos,
Canções inacabadas
E sumiu na escuridão.

O amor não esperou o amor...
Não lhe deu asas,
Não foi paciente
E ainda abusou de duras palavras.

O amor se fartou de amor...
Bebeu veneno,
Engoliu sapos,
Engasgou e feneceu.

O amor olhou nos olhos do amor...
Não se reconheceu
Nem o reconheceu.
Apenas ressentiu-se
De continuar amando
Um amor ausente.

O amor morreu de amor...
O amor matou o amor
Num tedioso domingo sem nuvens

O amor agonizou,
Partiu-se, dilacerou-se
Em luz. Em plena
Quarta-feira voltou a ser
Cinzas, pó e mais nada.

(Luciana Melo – 09/09/03)


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quarta-feira, agosto 25, 2004

Garrafas ao mar - II

Observo-me diante do espelho.
Sou dupla.
Existe uma em mim que se revela sem sutilezas ou temores.
Desconheço seu nome e imagino que ela pouco se importe com o fato. Poderia ser Joana, Maria, Irene. Que diferença um nome faz?
Ela é mais do que um chamamento, ela é um clamor.
Ela não fala, balbucia. Suas palavras roucas são ouvidas sem nenhuma dificuldade. Existe uma clareza enorme na articulação dos fonemas como se um anjo proclamasse revelações salvacionistas.
Amo essa mulher que se faz notar por sua presença pura e simples, sem adereços.
Seu corpo não pede acessórios. Tudo nela é essencial.

A outra mulher que me habita é barulhenta, acachapante. Fala rápido e em abundância. Tem o corpo coberto de miudezas que cintilam ao mais leve movimento.
Sua boca emite sons agudos que pretendem confundir e camuflar as reais intenções.
Tudo nela é inexato.

A imagem de ambas refletidas no espelho denuncia um jogo caleidoscópico onde as estranhezas individuais são um espetáculo à parte.

terça-feira, agosto 24, 2004

Garrafas ao mar - I

Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha.
Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho uma só palavra a dizer.
As palavras já ditas me amordaçaram a boca.
Clarice Lispector

Urge que eu vomite as espadas verbais que tanto ferem minhas entranhas e dissipam meu amor.
Escrevo, então, palavras ácidas como quem atira pedras em cristal, como quem precisa recuperar a lucidez adormecida.
Os estilhaços voam. Ao tocar o chão, eles já são diamantes que ecoam a música da minha loucura e produzem ferimentos rutilantes. Reluzem, mas não há qualquer vestígio de beleza.
Os cortes apenas testemunham o retinir do aço desembainhado. Fizemos um pacto solidário de silêncio e contemplação.
A intolerância que por vezes sinto é explicada pela sufocação de uma garganta estreita que deseja ser fosso, mas que encontra-se amordaçada pelo vazio opaco e denso.
Não tenho culpa se não sou entendida. Falar é a minha salvação.
Falo para salvar a mim mesma da inércia do mundo, do isolamento, da solidão asséptica que faxina os gestos impessoais dos que estão ao meu redor.
Tanta polidez, tanto lustro causa-me náuseas.
Quero poder falar da exuberância do caos.

segunda-feira, agosto 23, 2004

MISTÉRIOS

Entrego-me como a folha que bóia na enxurrada, não importo-me com o destino.
Viajo pelo seu itinerário, cruzo os rios caudalosos de seus braços, derreto-me na sua saliva doce e quente, deslizo pelo seu dorso.
Ele encontra-me e alimento-o com minha seiva, nutrindo nossos sonhos.
Alimentado, ele busca-me num bailado sincrônico de pernas e braços que imitam a arquitetura milenar dos labirintos e catedrais.
Ao transpor esse complexo arranjo de traços, ele penetra minha nave central e celebra a descoberta.

sexta-feira, agosto 20, 2004

Para Guido

Sentado em seu quarto, ele observa tudo pela janela: a vida passando, as pessoas passando, o tempo passando.
Só o que não passa é esse cansaço, essa rotina, a fadiga fossilizada.
Anseava por mudanças, pela banda, pela festa ou mesmo pelo silêncio, qualquer coisa. Queria ver o verde brotar, as coisas acontecerem, ver as transformações...
"Já que tudo parece tão estático, o único visual que posso mudar é o que vejo em frente à minha janela. E a mudança é fechá-la".
Levantou. Cerrou as cortinas e sumiu.

PALAVRA

A pedidos, resolvi publicar o poema na nova morada.


A palavra prima,
A palavra desdenha.
Não liga para rimas,
Não liga para senhas.

A palavra não se intimida!

A palavra inflama,
A palavra incendeia.
Ela desmancha os pontos
Tecidos na areia.

A palavra é teia!

A palavra encanta,
A palavra frustra.
Enovela os dramas
Na madrugada bruta.

A palavra é lâmina!
Escrever, Luis Pedro

quinta-feira, agosto 19, 2004

Celebração

Devorá-lo: eis o que mais gosto.
Delicio-o com tal voracidade que chego a sentir vertigens, tonturas. Junto a isso, uma vontade quase infantil de gargalhar explode.
Festejo sua presença. Bebo sua saliva. Danço em seu corpo.
Volakis

Allegro


Não quero ter a terrível limitação de quem
vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: Quero é uma verdade inventada.

Clarice Lispector

O despertador toca. Vinte para as seis. Corro corro tomo banho corro corro, acordo as crianças corro. Faço café arrumo lancheiras organizo uniformes corro. "Pra que tanta correria, meu Deus?! Tenho a respiração ofegante e um sentimento de eterno atraso." Corro. Paro em frente ao espelho. Somente agora vejo o meu rosto e o bom dia aterrador que minhas olheiras me dão. Corro, corretivo nelas, corro. Os cabelos são de ontem assim como o meu corpo. Corro. Pedro procura a mochila, Marina quer suas fitas e eu corro. Remexo gavetas, acho as fitas amarelas que emoldurarão o rosto de Marina. Pedro grita, nem sinal de mochila. Penso comigo mesma: "há sinais de mim?" Corro freneticamente. O sangue vaza pelas veias e mancha de vermelho o batom no meu sorriso. Sorriso?

Pego a primeira roupa no armário. Ela é verde como a minha pele. Visto e me desfaço (me disfarço?). O vestido dispensa sutiã corro e mesmo correndo não gosto dos seios sob o tecido. "Os seios não são os de ontem, mas os de 50 anos." Anciãos. Anseio descanso corro corro. O ritmo é tão acelerado que envelheço dez anos em um dia. Os olhos opacos no espelho não me pertencem.

Seis e meia. Corro. Pedro chora desesperado. Quede mochila? Num átimo de lucidez lembro que a maldita ficou esquecida no carro. Apesar da vontade de gritar, acalmo Pedro com um sorriso amarelo-desbotado-envelhecido. Corro.

Sinal trânsito pais atrasados surtando nos volantes, olhares armados. Deixo os meninos, nos despedimos aos tropeços. Nos beijamos mecanicamente. Corro.

Sete e quinze e já me sinto cansada, como se fosse fim de expediente. E pensar que ele ainda nem começou!

Uma preguiça de brigar por uma vaga no estacionamento, mas eu brigo, eu corro.

Sete e quarenta. Pego o elevador, fico espremida no canto, quase sufoco com o perfume de almíscar do moço à minha frente. Ele é gorduroso, tem os ombros do paletó escuro brancos de caspa. Tenho engulhos, mal posso respirar. Cantarolo silenciosamente uma música. Ocupo o pensamento para não lembrar das caspas. Finalmente, meu andar! Corro. Respiro fundo. O novo e sempre mesmo dia... voilà.

Sete e cinqüenta. Entro e a primeira cara com a qual me deparo é a da bruxa da Rita. Solteirona, mal humorada. Ela veste uma roupa cinza e sem graça como a vidinha dela. Pensamento malicioso me toma e gargalho. Imagino a Rita vestindo calcinha de lantejoulas vermelhas sob seu tailler gris. "Nem isso te faria puta!" Ela me pergunta o que há de tão engraçado. "Nada não", respondo. Ela me detesta. Empatamos.

O chefe se aproxima com a sua doentia palidez, se põe atrás de mim, fala qualquer coisa que ele julga inteligentemente engraçado. Engraçado é como alguém com hálito de cigarros e aroma de cachaça consegue se manter empregado, penso eu. "Pobre diabo". Me pede relatórios, quase toca meu ombro, mas meu olhar é tão fuzilante que seu gesto pára no ar, busca o braço como quem quer saber das horas. Corro dele.

Oito e meia. Corro para o telefone. Ligo em casa e ninguém atende. "Porra, a Isolda ainda não chegou!" Penso no caos que será o resto do dia se ela não aparecer para trabalhar. Não, melhor nem pensar, mais tarde tento de novo.

Nove horas. Depois de entregue os relatórios, me preparo para a primeira aula do dia. A nova turma de estagiários vem para o seminário de história da arte. Corro para não me atrasar. Entro na sala e me deparo com os alunos: uma mocinha esquisita mascando chiclete, garotos com cabelos multicor, um outro que não tem mais piercings no rosto por falta de espaço e lá bem no canto da sala encontro uma moça de longas tranças e sobrancelhas indescritíveis.

É olhar para ela e lembrar de Frida Khalo. Contrariando o programa, resolvo falar da artista mexicana. Ninguém entende nada. Falo e não sinto compreensão nos olhares. Continuo mesmo assim. As horas voam inevitavelmente e meu momento de deleite escorre. Corro penso em Isolda no almoço por fazer, corro.

Onze e quarenta. De volta à minha sala, telefono novamente para casa. Isolda atende com aquela sua voz arrastada. Alívio meu. Pede desculpas pelo atraso, a condução, uma greve, alguém caiu do ônibus. Fico lívida por não conseguir falar. Ela termina a história interminável. Diz que o almoço está quase pronto e que não preciso me preocupar porque ela vai buscar os meninos. Alívio de novo.
Vou à cafeteria. Tenho quarenta minutos de almoço. Corro peço salada, mas meus olhos devoram uma lasanha à bolonhesa. Olho meu prato verde e sem graça. E se...

Devolvo. "quero aquela lasanha". O molho borbulha, ela é vermelha como o sangue que colore o corpo, atraente como o pecado da gula deve ser.

"Não voltarei ao trabalho’. Passo pelo corredor cheio de visitantes, sorrio como se também fosse uma. Entro na sala dos professores pego minha bolsa papéis pastas e saio. Olhos interrogativos espetam-me. Não dou explicações. Amanhã talvez amanhã, mas amanhã está tão distante.

Dirijo pelas ruas já tão conhecidas como se fosse uma turista em busca de um endereço. Páro no parque desamarro os sapatos piso na grama fofa e úmida. Sento. O sol aquece-me, devora-me.

Leio os trabalhos dos alunos. Alguns são péssimos e pergunto-me por que fazem o curso se detestam estar ali. Outros são ótimos entusiasmados apaixonados, têm cheiro de chuva.

Decido comprar roupas novas e coloridas. Estou cansada da sobriedade. Eu nunca fui sóbria. Compro batons de tons alegres corto os cabelos. A tarde voa e eu não sinto.

Em casa, Isolda assusta-se ao me ver. Eu sorrio de sua expressão. Sinto-me um ser interplanetário. Dispenso-a. As crianças surgem limpas e cheirosas e por um momento estranham. No minuto seguinte correm até mim com olhares de aprovação: "mamãe, você está bonita", escuto em uníssono. Bonita. Já nem lembrava que podia ser bonita.

Anuncio que jantaremos fora. Vamos comer sanduíches, beber refrigerantes, mergulhar em sobremesas calóricas. Eles apressam-se. Suplico que não corram, eles estancam. Depois o riso corre frouxo. Como não correr?

"Desculpe, professora". Volto abruptamente. É a garota-Frida Khalo que esbarra em mim. Olho o relógio. Ainda tenho vinte minutos. Corro corro corro...

(Luciana Melo – no prelo)

quarta-feira, agosto 18, 2004

ABRIGO

Ele chegou e me viu por dentro.
Compreendeu minha angústia e, cúmplice, silenciou.
Não fez perguntas.
Generoso, ofertou-me seu colo.
Recebi seu calor, súplice.
Adoraria poder falar-lhe da dimensão do meu amor, da profundidade dos meus tormentos, da gratidão que sinto quando permanece ao meu lado mesmo sem entender... mas não posso.
Minha boca esfaimada abriga uma garganta rouca. Ela grita, mas é para dentro. Seus ecos ressoam internamente e por lá se perdem, tantos são os meus desvãos.
Sei apenas que o entrelaçar de nossas mãos não deixa dúvidas quanto ao caminho que escolhi: fluir e nele desembocar.

DESPE(R)TA(LA)R


Vejo-te e meus olhos vertem pétalas que ao cair perfumam a cama, lençóis, noites e manhãs adormecidas.
O amor recende pelos cômodos como quem, caprichosamente, quer fazer lembrar do viço de ontem, dos sussurros, que além de nós, somente a noite escuta.
Pela fresta da janela, as estrelas piscam seus olhos matreiros e cúmplices. Elas testemunham e reluzem o veludo escarlate com que as pétalas, por mim vertidas, adornam nosso leito.
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terça-feira, agosto 17, 2004

DORMÊNCIA

Sabe esses dias em que tudo sobra, tudo transborda e provoca prostração?
Em todos os lados a imagem é do exagero. Diante de tal enormidade, alguns detalhes se extraviam no fluxo do olhar.
Contemplo a vida como quem assiste um filme enfadonho e repetido.
Desfarei esse desnivelamento – penso eu. Tomo providências de ócio e prazer.
Desligo a minha TV. Afago o gato – preguiçosos, eu e ele.
Fecho os olhos numa atitude displicente, afrouxo a roupa e viajo por um novo itinerário que ajuste as imagens disformes e agigantadas ao meu foco natural, de modo que eu nada perca, que nada se perca... assim, lentamente, tudo toma o seu lugar e sua inteireza.
Os limites, eles podem ser estendidos. As coisas podem ganhar proporções dentro de mim, mas não fora.
O lado de fora é seco, áspero. Não entende os anseios de uma alma intensa e impetuosa, que recusa o morno.
Bom mesmo é ser grande no lado de dentro, onde as vísceras pulsam
forte, oscilam entre temperaturas e texturas e beijam a grandiloqüência do Nada.
The white skirt, B. Klossowski.

LAR DOCE LAR

Estou feliz da vida por recebê-los em minha nova casa.
Aqui não terei problemas técnicos quando quiser postar imagens. Lá no UOL, como não era assinante, tinha limitações terríveis neste sentido.
Ajeitem-se entre as almofadas, enquanto o Chico dá as boas-vindas.

Ah, a reforma da casa contou com a providencial ajuda da Carmela. Ela é minha maga e guru, além de sócia do Hormoniosas. Obrigada, querida.
Belzinha, o que seria da minha vida sem você, hein, hein? Beijos

NA CARREIRA

Pintar, vestir
Virar uma aguardente
Para a próxima função
Rezar, cuspir
Surgir repentinamente
Na frente do telão
Mais um dia, mais uma cidade
Pra se apaixonar
Querer casar
Pedir a mão

Saltar, sair
Partir pé ante pé
Antes do povo despertar
Pular, zunir
Como um furtivo amante
Antes do dia clarear
Apagar as pistas de que um dia
Ali já foi feliz
Criar raiz
E se arrancar

Hora de ir embora
Quando o corpo quer ficar
Toda alma de artista quer partir
Arte de deixar algum lugar
Quando não se tem pra onde ir

Chegar, sorrir
Mentir feito um mascate
Quando desce na estação
Parar, ouvir
Sentir que tatibitati
Que bate o coração
Mais um dia, mais uma cidade
Para enlouquecer
O bem-querer
O turbilhão

Bocas, quantas bocas
A cidade vai abrir
Pruma alma de artista se entregar
Palmas pro artista confundir
Pernas pro artista tropeçar

Voar, fugir
Como o rei dos ciganos
Quando junta os cobres seus
Chorar, ganir
Como o mais pobre dos pobres
Dos pobres dos plebeus

Ir deixando a pele em cada palco
E não olhar pra trás
E nem jamais
Jamais dizer
Adeus