sexta-feira, dezembro 16, 2005

Mini

Image hosted by Photobucket.com
http://lefumoir.com/cafe.html


Aqui estou eu, sentado numa praça, tomando um café e fingindo serenidade, mas minhas mãos estão trêmulas e geladas. Ondas de calor e lufadas de ar frio revezam-se em mim como se quisessem espantar todas as indagações que pululam na minha mente.

"Como surgirá? O que estará vestindo? Serão ainda seus cabelos bichos ferozes a seduzir?"

Combinamos não nos descrevermos ou nos identificarmos. Somente trocamos número de telefone caso não sejamos mais capazes de nos reconhecermos, afinal a última vez que a vi foi há 30 anos, mas uma beleza como a dela, o tempo não apaga.

Lembro-me como era bela. Não falo dessa beleza plastificada, das passarelas, com prazo de validade, perecível.
Há mulheres que causam dor e cegueira, são tão escancaradamente belas que chegam a agredir os comuns, parecem gritar ao mundo, em sons estridentes, seus desenhos e contornos.

Hannah era bela de outra forma.
Sua beleza não desfilava por aí, nem se revelava a toda hora. Para vê-la era preciso um olhar atento, quase arqueológico. Por baixo daquele invólucro agradável havia uma outra camada a escandir.

Descobri sua beleza ao longo de três breves anos.

Era cinicamente bela quando estávamos rodeados de pessoas, mas era impossível um comentário, então ela arqueava a sobrancelha direita, ensaiava um sorriso que não se completava e tudo estava dito.

Como era linda quando se arrumava toda para uma ocasião especial! E a maneira como sentava-se? E quando folheava as páginas de um livro?
Existia algo etéreo quando conversava; se o tema era de seu interesse então, seus olhos faiscavam, abria um sorriso largo, gesticulava muito, assumia uma postura avantajada.

Mas ela era bonita mesmo quando durante uma única semana em todo o mês inventava que precisava fazer exercícios físicos. Acordava cedo e ia correr. Voltava atrasada e faminta. Tomava um banho rápido, mas tinha tempo para sentar-se à mesa, servir-se de capuccino e devorar um pão inteiro com requeijão e mortadela!
Depois vestia seus jeans e saía apressada e feliz, acreditando-se mais magra.

Aos domingos, costumava ela mesma fazer a faxina da casa. Algumas vezes cheguei intencionalmente sem aviso e flagrei-a descalça, de shorts, camiseta velha e num coque pra lá de desalinhado preso por um lápis. Ela olhava-me fingindo desaprovação, balançava a cabeça negativamente e dizia toda mandona: “veio atrapalhar ou ajudar? Se veio atrapalhar, se manda, mas se ficar com a segunda alternativa, na cozinha tem balde e vassoura te esperando”. Virava-se de uma só vez e quando eu voltava da cozinha, completamente munido, ela piscava o olho e gargalhava.
Ainda hoje escuto aquele som, a música...

Olhei para o relógio, meia hora se passara e ninguém se aproximou. Pensei em telefonar, mas desisti.
Olhei para os lados, reparei nas mesas e não vi ninguém que pudesse se parecer com ela.

Pedi outro café, começou a chover e resolvi entrar e sentar no balcão.
Ao lado, mas sentada de costas para mim, uma mulher de cabelos muito curtos – “não era ela, não com esses cabelos” – parecia tentar convencer a garçonete a trazer-lhe algo fora do cardápio. Para me distrair da longa espera, comecei a prestar atenção na conversa de ambas. A moça não brigava, não havia bate-boca, como uma criança que quer ser atendida, ela dizia com olhos pidões: “não quero croissant de ervas finas, para mim, o único acompanhamento que vai bem com capuccino é pão com mortadela!”

- Pão com mortadela?!?

A estranha virou-se, sorriu cinicamente e arqueou a sobrancelha direita.

Tudo estava dito.

4 comentários:

Lua em Libra disse...

Minha Lu

Pão com mortadela e cabelos curtos. Ousadias discretas e persistentes que dizem tanto de uma certa personagem a mim tão familiar que é quase impossível pensar ficção desse jeito. Gostei do teu conto. De uma verossimilhança-toda-possibilidades. Parabéns..
Beijo na alma
Lia

Anônimo disse...

ai ai...me lembrou umas passagens de um livro que estou lendo.

fica um beijo aqui.

Camila

Lu disse...

Lia, minha Lia, muitas vezes eu confundo tudo. Acho que as personagens tratam-se de gente como a gente, eu e você... só descubro - frustrada - ser ficção quando fecho a última página do livro.
Beijos.

Lu disse...

Conta pra mim qual é o livro, sua danada! Fiquei curiosa :))
Outro beijo pra ti.