quarta-feira, setembro 29, 2004

AMANHECER

O quarto amanheceu em orquídeas prazenteiras.
Um simples sinal, cores, pétalas e você manifesta-se por inteiro, pronto para me devorar. E eu gosto quando me devora por completo, sorve meus lábios, bebe minha alma, penetra meus olhos, faz morada em minhas mãos pequenas e nervosas.
O papel reciclado em que me dizes repetidas vezes "eu te amo, amo, amo" regenera o sono perdido em que te busco incansável; refresca a impaciente garganta minha que sôfrega, trôpega, ébria chama por ti.
Bastou que as orquídeas, este suave organdi, chegassem para que as minhas janelas se abrissem em luz.

AMAR SE APRENDE AMANDO

Amo-o.
Mas ama-se o que em quem se ama?
O que exatamente faz com que o amor se manifeste em quem se ama, quando se ama?
Amo-o.
E amá-lo é uma orquestração, uma afinação poética e velada entre nossas faces rubras, selvagens.
Amo-o. Mas o que nele ressalta, exalta-me é o que realmente vejo? O que pressinto?
O amor, este artefato de complexo manejo, com seus cômodos secretos, corredores esfingéticos, envolve-nos em seus meandros. Ao menor descuido nosso, suas lâminas afiadas, suas lanças pontiagudas, lanham a pele, ferem fundo a carne.
Com que presteza e perícia os dedos habilidosos tecem essa fina trama!
Amo-o.
Às vezes de modo tão cortante, às vezes delicadamente, mas sempre denso e luminoso.
Sorvo sua boca. Enlaço minha língua na sua e, entre dentes, reverbera silenciosamente a palavra amor, embebida de ânsia e ondas.
Amo-o.
E nesse encontro de bocas e rostos, falamos e fazemos amor em segredo.

segunda-feira, setembro 27, 2004

UM AFAGO NA ALMA

Desperto desse sonho chamado vida sem saber qual direção devo tomar.
Não sei se encaro meus olhos no espelho ou se sigo refletindo os olhos dos outros – escudos de mim.
Cada olho que nos atravessa arpoa o corpo, mas sempre tem um olho que nos vara a alma, deixando o coração exposto e entregue às mãos displicentes do destino.
A espera é longa e suave. Deleita a pele, descansa o corpo, umedece a boca ávida de vida.
Há vida tanta enrodilhando os passos desgovernados, vacilantes do grande encontro, do grande enigma que move os dias.
Existe uma ternura ingênua nessa incerteza; é como se tocar o desconhecido nos concedesse a surpresa do inesperado bom, sua maciez, sua aspereza, sua totalidade.
Despertar do sonho chamado vida ultrapassa todo limite, qualquer explicação.
Di cavalcanti

sexta-feira, setembro 24, 2004

O MEDO É AMARELO

A flor amarela do medo rompeu o dia frio e cinzento. Ainda que tema, é uma flor; ainda que seja frágil, ela sobrevive às sombras.
Ela vive apesar da incapacidade humana de se surpreender com a delicadeza dos pequenos milagres cotidianos, da inteireza ingênua do riso, dos olhos famintos da morte.
Independente de qualquer querer, a nossa absurda contemplação autista não lhe retira, não lhe demove de seu destino: o de seguir florindo.
A flor amarela rompeu o concreto, o cinza, o Nada.

quinta-feira, setembro 23, 2004

Formas várias

IstoÉ: Como é o seu processo de criação? Você escreve música?
Caymmi: Não. É tudo de ouvido mesmo.
IstoÉ: Mas você compõe acompanhando-se ao violão?
Caymmi: Também não. Quando perguntaram à minha mulher se eu tenho feito músicas, ela responde que não porque eu nunca pego no violão. Que me desculpe o meu violão, meu velho companheiro, mas eu não preciso dele. Como músico, sou limitadíssimo. Toco umas coisinhas, mas nunca faço o que Baden Powell é capaz de fazer. Então eu preciso de quê? Preciso de um sonho, de uma coisa misteriosa na cabeça, de um impulso interior. Daí nasce uma canção.

terça-feira, setembro 21, 2004

ASAS

Perdão.
Essa medida volátil, intocável que quando concedida, aceita, causa um alívio, uma leveza, um frêmito de alegria e prazer.
Diante de tal manifestação, eu me derreto e, então, me permito o perdão.
Concedo-me absolvição por todos os atos daninhos que pratiquei e cuja maior vítima fui eu mesma.
Eu me perdôo. E essa indulgência faz com que eu tenha o sentimento táctil de tudo o que é diáfano.

(DES)CAMINHOS

Tenho tentado chegar ao centro do coração do homem, do mundo; chegar ao local onde tudo pulsa, as imagens se distorcem, os sentimentos se confundem... lá onde tudo é bruto e sem lapidação, o sorvedouro fundo do nosso escuro.
Tenho tentado compreender qual porção da nossa humanidade é escolha e qual é circunstância, o que é vaporoso e o que a mão, de fato, alcança.
Em que parte de nossa história pessoal escolhemos o cinismo, a farsa, a representação? Em qual grande mentira fundamentamos nossa verdade?
Somos o que somos ou o que pensamos que somos? Esse cansaço latente na vida estufa a veia que pulsa e salta.
Estancamos o sangue na hora do corte e da dor, mas por dentro tudo é hemorrágico: desejo, febre, amor. Águas furiosas, caudalosas, contudo, represadas... de que vale tanta enchente que deságua no nada?
Nessas tantas tentativas, não quero cheia nem estio, busco, anseio a palavra libertária: qual será?

segunda-feira, setembro 20, 2004

REVISITANDO

Quando assumi o blogspot como novo hospedeiro, ganhei maior liberdade nos posts, pude pintar as palavras, adorná-las com imagens. Contudo, "perdi" todo o conteúdo do antigo blog porque não há maneira de transportar os arquivos antigos.
Por vezes sinto falta de objetos que ajudam a compor a ambientação da nova casa, não trazê-los é o mesmo que estilhaçar uma trajetória, omitindo sua gênese.
Aos poucos, eu mesma farei a mudança que começa hoje.
Então, aos amigos que já me acompanham, peço um pouco de paciência: por vezes vocês lerão coisas já vistas.
Aos novos amigos, desejo boa leitura.

SUFOCAÇÃO

Sou como a escrita – imprecisa.
Tento entender e imprimir sentidos às coisas, ao mundo, todavia, convivo com a dualidade voraz de me saber limitada. Frágil, às vezes. Débil, jamais.
Oscilamos – eu e a palavra – nos anéis da espiral do tempo.
Mantenho meus pés e mãos voltados para o infinito.
Isto torna-me ciente do sonho quimérico da perfeição (inalcançável). Nem por isso desisto da busca transformadora, ousada e desafiante pela plenitude dos signos.
Confesso que, em algumas horas, fico cansada dessa insanidade, sinto-me exaurida, esvaziada, porque sei da impossibilidade de entender tudo e imprimir os sinais que conferem essa tal noção de sentido. Também sei que nem sempre existe entendimento ou símbolos suficientes para traduzir o vendaval caótico que se passa internamente em mim e no embrião da palavra.
Em outras horas, fico repleta de significação e desacredito das cercas, fronteiras que delimitam a criação e a minha rebeldia de transgredir.

sábado, setembro 18, 2004

Ressaca

Sabe o que mais amo,
O que mais me completa?
- Tua boca sedenta, entreaberta.


Sabe o que me arrepia,
O que me converte?
- Teu corpo depois do amor, quase inerte.


De todas as coisas,
O que mais me alarma,
O que mais me apavora?
- Ver o dinheiro na cama
depois que você vai embora.

Bonnard

quinta-feira, setembro 16, 2004

Por que escrevo?

Se escrever é inventar outras realidades, o que isso significa?
Que não me ajusto ao que chamam de real?
E o que chamam real não será uma invenção que não me convence?
Eu estremeço cada vez que toco o lápis.
Os muitos eus que me habitam travam uma briga feroz. Eles disputam entre si o direito de ter voz, suas reivindicações se acumulam até não caberem mais em mim. Aí eu estouro em palavras.
Essa vontade de fluir, de ser fonte inesgotável de mistérios e segredos é horrível. Temo que após deixarem meu corpo, essas palavras soem como mentiras e inventar não é mentir, meu Deus!
Escrever é tocar no oculto, no submerso.
Escavo o solo em busca das palavras escondidas e quando as encontro e as pronuncio, elas já escondem outras.
Procuro a palavra embrionária, a palavra matriz. Aquela que dá vida a novas palavras e aos sussurros, mas encontrá-la seria reduzi-la, estraçalhá-la, esgotar seus significados. Então, escrevo palavras pobres, forjadas na plenitude do meu silêncio.
Insisto no ofício, porque escrever é tocar no impossível e impossível é não criar outras realidades que justifiquem a vida em mim.
http://thousandimages.com

quarta-feira, setembro 15, 2004

Artilharia

Um punhal atravessa minha garganta.
Uma sufocação toma-me de assalto, a vista escurece e é como morrer.
Tento falar, não consigo.
Tenho a boca repleta de cacos de vidro.
Sinto ânsia, náusea...vomito.
Vomito flores de cristal.
São bonitas, não resta dúvida, mas não têm alma, não têm cor, não perfumam.
A fragilidade dessas flores é bruta: não suporta a dor nem o grito, ainda que abafado e rouco.
Espatifam-se em vão. São incapazes de brotar.
Quero de volta as pétalas, mesmo que elas feneçam.
Trocaria, sem hesitação, o punhal que me cala pelos espinhos. Mesmo ferindo o verbo, eles resistem à vida.
http://itisphoto.com

segunda-feira, setembro 13, 2004

HIATO

Beija-se menos do que pedem as bocas.
Mas as bocas não pedem quando explodem em injúrias.
Abraça-se menos do que os ombros suportam.
E os ombros são capazes de suportar o peso do mundo.
De que falam as bocas?
- Do indizível.
Que peso pende dos ombros?
- O dos gestos impalpáveis.
Mas o indizível não é o vazio
Nem o gesto impalpável a tradução da ausência.
A boca e os braços atravessam o silêncio da noite.

sexta-feira, setembro 10, 2004

Intrumentos Cortantes

LÂMINA

Rodopio a noite inteira,
Rasgo meus panos,
Como minhas entranhas.
Sou farrapo, estilhaço de gente...
Minha alegria é a fome que me assanha.
Eu me transfiguro:
Espumo e blasfemo.
A lua é quem dita o meu tempo.
Meu cabelo é bicho feroz...
Meus olhos, um grito lancinante...
A minha boca, o meu algoz.
Sou faca, sou foice, sou instrumento cortante.

quinta-feira, setembro 09, 2004

NUME

Parado diante de mim, ele agarra-me pelos cabelos, perdendo-se entre os fios.
Traz minha boca bem próxima à sua, sopra seu hálito em meus ouvidos, passeia sua língua pelo meu pescoço, nuca, seios... escorrega suas mãos hábeis pelo meu corpo.
Espreita-me.
Finge distração quando na verdade detém todos os meus movimentos e olhares.
Provoca-me até que eu, delirante, em transe, suplique por estrelas, céus e órbitas.

quarta-feira, setembro 08, 2004

Presente

Agradeço ao amigo de terras portuguesas que me enviou esse poema lindo e que tem total identificação com esse blog.
Obrigada, Barba!
Beijos.

ELSINORE
(Mário Cesariny)

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Jerusalém prometida

Estou no centro do enigme que criei.
No seu cerne está o projeto da construção de uma cidade fabricada pela escrita.
O tempo, arenoso, esvai-se entre dedos, lembrando-me que ser artesão de palavras exige um embate cotidiano, sem tréguas.
O atrito entre mim e as palavras provoca faíscas. Nossas fagulhas revelam, ainda que minimamente, partes do enigma que clama por clareza e definição.
Começo, então, o percurso que imita a Torre de Babel: falo em línguas a fim de seduzir as palavras que tecerão os fios que enredam a vida e a morte.
Entre os pólos vida e morte, alfa e ômega é que se localiza a tal cidade verbal que se pretende eterna e indispensável, cidade que quer se perpetuar com seus muros, portões, jardins, esgotos, valas. Sua imponência não permite omissões; sua plenitude decorre da habilidade de espelhar as imperfeições humanas.
Nessa glossolalia, fundo reinos, invento paisagens, firmo pactos e confundo a turba esfaimada enfeitiçando os olhos com meu canto de sereia.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Desapego

Hoje eu não vou revolver a terra, não vou desarrumar gavetas, não vou vasculhar armários e bolsos, eu não vou procurar explicações.
Vou livrar-me dessas buscas. Começarei queimando papéis, palavras antigas, cartas. Lançarei fora tudo que é vão.
Pego o pacote que diz: cartas a mim mesma.
Quem no mundo escreve cartas para si próprio? Para quê? Qual o valor?
Para não cair em tentação de tentar justificar tamanha incongruência, rasgo os envelopes e preparo a fogueira.
O fogo queima, exorciza e santifica o passado.
Aspiro e sinto no ar o cheiro de incenso.