terça-feira, julho 31, 2007

Sala de leitura (3): para não esquecer

Que país é este?

Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, tem edição comemorativa de 25 anos, com "bônus" como o Diário de Trabalho do autor sobre seu processo criativo

Por Luiz Carlos Monteiro*


O sentido alegórico do totalitarismo de um mundo desertificado, massificado e alienado faz-se presente nas páginas de Não Verás País Nenhum, romance de Ignácio Loyola Brandão que recebe agora uma edição comemorativa, a vigésima-quinta, 25 anos após a primeira. Publicado em 1981, provavelmente foi concebido durante a década de 1970 e traz assim a marca das duas décadas, além de atender a uma inclinação futurística revelada ao longo dos anos posteriores, culminando nos nossos dias com as discussões recentes sobre as conseqüências mais destrutivas e urgentes do aquecimento global. Reafirma então a denúncia do colapso ambiental, com a escassez de água e a morte indiscriminada do verde de árvores e plantas. E, mais ainda, a luta do sujeito contra o Esquema que a tudo uniformiza e que dimensiona a vida nos moldes da repetição, da rotina e da banalização. Não se pode deixar de lembrar o 1984 de George Orwell, livro familiar e indispensável a todos que de algum modo esperaram pelo cumprimento das suas proféticas colocações a respeito da grande opressão que se abateu sobre os indivíduos a partir das primeiras décadas do século passado, com a ascensão indiscriminada do capital ou, nos grupos stalinistas, a defesa ideológica de um regime de terror e de imponderáveis e indesejadas intervenções, em detrimento dos valores e atributos mais caros ao homem. Nos regimes duros e massificados não se admitem coisas como a liberdade de mover-se interna ou externamente no país em que se vive, sem permissão prévia. Assim como não se tolera a convivência de pessoas em grupos sociais com o intuito de desenvolver idéias próprias e coletivas, além de intentar perfazer escolhas que incidam sobre o trabalho e o lazer, pois ali prevalece “a vida metodizada, racionalizada”. Souza representa o indivíduo comum que se rebela – ensinou História, trabalhou na burocracia e, sem ser avisado, foi aposentado compulsoriamente. Por não se curvar às inumeráveis regras do Esquema, sofreu retaliações, torturas e castigos, até perder tudo, inclusive a mulher, Adelaide, de longa e calada convivência. No Diário de Trabalho, da época em que estava coletando material para o texto, e que acompanha esta nova edição, Loyola esclarece que tudo se iniciou com o seu próprio conto “O Homem do Furo na Mão”, de 1972, que virou também um volume de contos em 1987. O título do conto já consiste em apontar a “diferença” que estabelecerá, em conseqüência, a “outridade” do personagem – pela consciência radical sugerida e em relativa atividade que ele, Souza, detém no romance –, e o desempenho acanhado, medroso e passivo de muitos outros seres da mesma sina com quem trava relações. Texto inaugural que funciona, portanto, como o embrião de Não Verás País Nenhum, fornecendo a idéia central e o esteio inicial para a elaboração progressiva das peripécias e revolta do protagonista no decurso de seu simulacro de vida, paixão e desrazão no romance. Não Verás País Nenhum é o que se poderia chamar de um clássico da literatura contemporânea brasileira. E, como a maioria dos clássicos, tende a cristalizar-se numa forma ou, por outra, na contextualização de uma época. Loyola Brandão, que estreou com os contos de Depois do Sol (1965), escreveu romances social e expressivamente demolidores como Zero (1975) e insidiosamente autobiográficos como Dentes ao Sol (1976). Teve adaptações de livros seus para o cinema e o teatro. É de uma geração que estampa nomes de importância óbvia – Rubem Fonseca, Raduan Nassar, Affonso Romano de Sant'Anna, Moacir Scliar ou, entre os mortos, um Roberto Drumond, um João Antônio. No entanto, ele sempre construiu um caminho ficcional solitário e independente, sem se esquivar de interagir com outros artistas e escritores. No caso deste livro, que não perde o sabor premonitório que o estigmatizou, o papel de denúncia e conscientização visava à maioria, a parte de quem sofreu a opressão, o medo e o terror. E nisto consiste algo da persistência político-ideológica que carrega, pois a sociedade brasileira ainda continua a se embater nos termos de uma ética política fragilizada, de uma proposta sócio-ambiental pífia e do combate incipiente às manifestações da violência, da corrupção e do assalto aos bens públicos.


* crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.

domingo, junho 17, 2007

Onde falta memória, sobra imaginação.

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Fonte: Revista Caros Amigos


Estou feliz de poder testemunhar o aniversário de 80 anos de Ariano Suassuna. Não é sempre que podemos celebrar ainda em vida uma referência que admiramos.
Sim, ele vive "lúcido" e "louco" no Recife. Ele inscreve na história da nossa literatura sua assinatura peculiar e poderosa. É, sem dúvida nenhuma, nosso cancioneiro popular. Obteve êxito na sua busca por uma estética genuinamente nacional com a brasilidade de nossa diversidade.
Ariano trabalha há mais de meio século por uma linguagem de unidade profunda, com raízes míticas, diria mesmo demiúrgicas. Sua obra caminha para uma cosmogonia, unindo teatro, poesia e romance. Soube como pouco pincelar sua ficção com notas biográficas que lhe marcaram a história pessoal e transformou-o em quem ele é.
Lembro, há alguns anos atrás, com muito entusiasmo e emoção de quando falou sobre O Romance da Pedra do Reino, esse que segundo o próprio Suassuna, é o grande romance representativo de sua literatura. Lembro de sua voz trêmula dizendo do medo que sentia de morrer, porque ele achava que não poderia terminar sua jornada antes de concluir a Pedra do Reino e agora que percebia que ela estava definitivamente escrita, talvez o sentido de sua vida tivesse chegado ao fim.
Para nossa felicidade - a minha em particular - sua vida está longe de perder o sentido. Ariano é ainda um jovem, tem grande fome de escrever e prazer em ministrar suas aulas, mesmo que este não seja mais o seu ofício... se é que quem tem compromisso com a cultura algum dia deixe de ter o ensino como ofício.
Ariano inspirou, na década de 70, o Movimento Armorial que tinha por objetivo valorizar a cultura popular do nordeste brasileiro e estava interessado na pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema. São também importantes para o Movimento Armorial, os espetáculos populares do Nordeste, encenados ao ar livre, com personagens míticas, cantos, roupagens principescas feitas a partir de farrapos, músicas, animais misteriosos como o boi e o cavalo-marinho do bumba-meu-boi.O mamulengo ou teatro de bonecos nordestino também é uma fonte de inspiração para o Movimento, que procura além da dramaturgia, um modo brasileiro de encenação e representação.

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos "folhetos" do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus "cantares", e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.
Ariano Suassuna, Jornal da Semana, Recife, 20 maio 1975.

Acho que não é muito devaneio de minha parte dizer que a Pedra do Reino está para Ariano assim como D. Quixote está para Cervantes. A Pedra do Reino é a epopéia brasileira, o romance de cavalaria nordestino e Pedro Quaderna nosso mito Sebastianístico:

Aqui morava um rei

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

sábado, junho 09, 2007

As matriarcas (9)

Semana Santa na cidade do interior é um acontecimento. Tudo se volta para o evento, todos se agitam para que não haja falhas.
A fé se evidencia, as pessoas tornam-se mais solidárias, a cidade ferve. Todos colaboram de alguma forma.
As crianças enfeitam as ruas com bandeirolas coloridas. Ficamos dias recortando papéis e enfileirando-os em barbantes muito compridos, depois cruzamos as ruas desenhando os caminhos da procissão do Senhor Morto.
Antes da grande festa, acontecem novenas e via-sacra. As pessoas reúnem-se nas casas com muita reza e cantoria. As salas ficam lotadas, com gente sentada até no chão. No começo, a concentração é grande, mas passada a primeira meia hora, as crianças tornam-se inquietas como se estivessem sentadas sobre formigueiros, os mais velhos adormecem e a cada instante são acordados aos cutucões.
Lá em casa é sempre uma comédia. Vovó Totonha puxa a reza. Vovô, nas poucas ocasiões em que me recordo de sua presença, dorme e quando começa a roncar, vovó belisca seu braço, o que faz com que desperte assustado. Tia Margarida, mamãe e eu não agüentamos a cena e damos muita risada. Os olhos da vovó e da bisa faíscam e rapidamente fazemos cara de sérias.
O que compensa os mais de sessenta minutos de castigo é certamente o lanche. Sempre tem comidas deliciosas ao término das novenas. Que Deus me perdoe, mas acho – com raras exceções – que aquele povaréu só aparece para comer.
Estava tudo pronto para a procissão da quarta-feira de cinzas. Eu jamais me esquecerei disso enquanto eu viver.
Tia Margarida caiu doente com uma gripe forte e por isso não participaria. Ela estava visivelmente chateada porque não poderia fazer o papel de Verônica. Foi preciso que vovó lhe desse um calmante. Somente depois que ela adormeceu é que saímos para a rua.
Tudo ia bem, mas de repente o céu ficou fechado, muito cinza e uma chuva torrencial começou a cair. Foi bem na hora em que Verônica enxugaria a face de Jesus.
Lá no fim da rua, um vulto todo vestido de branco vinha gritando: era Tia Margarida. Ela vestia sua camisola de linho e trazia um lençol nas mãos. Aproximou-se de “Jesus” e começou a enxugar seu rosto.
Vovó Totonha ficou paralisada.
A chuva molhou a camisola de tia Margarida e todos podiam ver seus seios.
Do mesmo jeito que chegou, ela foi embora: correndo e gritando.
Saímos atrás dela e quando chegamos à casa, ela estava no quintal, dançando e cantando em êxtase, num transe total.
Olhei para vovó Totonha e foi a primeira vez que a vi chorar. Suas lágrimas confundiam-se com as gotas da chuva.

sexta-feira, abril 20, 2007

Prêmio Vivaleitura 2007


Prêmio Vivaleitura 2007 é lançado em Brasília

Maior premiação individual para fomento à leitura no Brasil tem o objetivo de estimular, fomentar e reconhecer as melhores experiências relacionadas ao tema

O Prêmio Vivaleitura 2007, uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC), Ministério da Cultura (MinC) e Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), será lançado dia 23 de abril, em Brasília, na sede da OEI. O prêmio, que faz parte do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), tem o objetivo de estimular, fomentar e reconhecer as melhores experiências relacionadas à leitura. A ação tem execução e patrocínio da Fundação Santillana e apoio do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).
Na sua primeira edição, em 2006, o Prêmio Vivaleitura recebeu 3.031 inscrições de todo o Brasil. Os trabalhos vieram de todos os estados brasileiros e os vencedores foram o projeto Jegue-Livro, implementado em Alto Alegre do Pindaré, no interior do Maranhão; o projeto Cordel: Rimas que Encantam, desenvolvido em São Gonçalo do Amarante, interior do Ceará; e Liberdade pela Escrita, programa que leva literatura a um presídio feminino de Porto Alegre.
O prêmio nasceu da intenção de dar continuidade à mobilização pró-leitura empreendida durante o Ano Ibero-americano da Leitura (2005), o “Vivaleitura”. A iniciativa tem duração inicial prevista para dez anos (2006-2016) e é a maior premiação individual para fomento à leitura no Brasil.
Dividido em três categorias de abrangência nacional, poderão concorrer ao prêmio instituições, órgãos e pessoas físicas. Os trabalhos podem ser inscritos em três categorias: (1) bibliotecas públicas, privadas e comunitárias; (2) escolas públicas e privadas; e (3) sociedade: empresas, ONGs, pessoas físicas, universidades e instituições sociais. Na categoria “Sociedade”, uma menção honrosa será atribuída a projetos de empresas. Em cada categoria, os vencedores receberão um prêmio de R$ 25 mil.
As inscrições são gratuitas e podem ser feitas pela Internet (http://www.premiovivaleitura.org.br) ou via postal (veja serviço abaixo). O prazo de inscrição vai de 23 de abril a 9 de julho de 2006. Informações podem ser obtidas pelo telefone 0800-7700987. As ligações são gratuitas.
Para a fase final da premiação, serão selecionados cinco projetos de cada categoria, de acordo com critérios como originalidade, dinamismo da ação na construção da cidadania, recursos utilizados, pertinência da ação desenvolvida com a comunidade, abrangência, duração e resultados alcançados, entre outros. A fase final do julgamento será realizada por uma comissão avaliadora composta por profissionais da área de leitura e sociedade. Os finalistas serão anunciados em setembro e a premiação está prevista para acontecer no dia 30 de outubro, em Brasília (DF).
Notícia publicada na Revista EntreLivros.

Sala de Leitura (2)


Por Cláudio Portella*

Dois novos títulos da Coleção Ponte Velha foram lançados, ambos com organização e prólogo do escritor Floriano Martins: Armas Brancas e Outros Poemas, de Armando Silva Carvalho e Olhares Perdidos, de Nicolau Saião.
É possível perguntar: por que o selecionador, o escritor Floriano Martins, dentre os livros de poesia de Armando Silva Carvalho, selecionou na íntegra o livro Armas Brancas (de 1977)? Penso que pela unidade que o livro possui. Unidade que vai além do conceitual e/ou estético. O livro, em si, é um poema. Há uma voz, um guia que cobra os fatos, que interroga, que pontua e descarna a história (a ditadura de Salazar – de 1926 a 1974) do seu país, refletindo-a no corpo do leitor. A escolha de Floriano Martins foi primorosa.
No prólogo do livro, Floriano Martins (poeta-crítico incansável, que parece estar sempre à procura da melhor performance poética) abre o diálogo com os versos de um poema de Armando Silva Carvalho: “Honra os destroços. Cobre-te com eles”. É provável que Armando tenha bebido na mesma fonte de Eliot, que diz num poema famoso: “Esses fragmentos eu os escorei contra minhas ruínas”.
Floriano ressalta a ironia, o sarcasmo, a proximidade da prosa (visível nos poemas de Lisboas, 2000) e a coletividade na poesia de Armando Silva Carvalho. A melancolia também é citada. Melancolia presente em O Comércio dos Nervos (de 1968, seu segundo livro de poesia), nos poemas: “Outro”, no belo “Carro parado com o motor a trabalhar”, e “O chão”. Não uma simples e pura melancolia. Mas infectada de nostalgia e acidez. Compostos que aparecem nos livros seguintes.
O que ficou faltando ser mencionado no texto de introdução do livro foi o erotismo (por mais estéril que se apresente), as imagens sexuais que a poética de Armando Carvalho também carrega. Contei mais de 20 poemas em que o sexo está presente. O sexo, no livro aqui presente, é quase sempre um desejo abafado no outro. É o que tenho a dizer sobre essas facas lusitanas.
Imagino a desenvoltura com que Floriano Martins organizou o livro de Nicolau Saião. Em verdade, a edição brasileira de Olhares Perdidos – a anterior, acrescida do artigo “Os” – é de 2000, publicada pela Universitária Editora de Lisboa. Digo desenvoltura, porque é conhecida a posição surrealista do organizador do livro; posição assentada (ou em pé) do autor do mesmo.
Mas o que Olhares Perdidos traz do surrealismo francês é tão somente o reconhecimento histórico. Na abertura da entrevista (o prólogo é uma entrevista que Floriano fez com o poeta), que antecede o livro, lemos: “Nicolau Saião (1946) integra o 2º movimento surrealista português, cuja atuação se situa nos anos 60 e configura um momento outro dentro de um painel de filiações e assimilações do movimento francês nas décadas anteriores. Trata-se de momento em que, no dizer de António Luís Moita, já se encontrava “digerida e superada (...) a bela utopia da escrita automática a que, duas décadas antes, outros poetas haviam metido mãos inovadoras”.
E o que realmente encontramos nos poemas é uma escrita elaborada, primando à revisão. O livro me parece mais figurativo do que propriamente surrealista. O figurativo é notório logo nos primeiros poemas do livro: “A Janela”, “Árvore” (aspecto interessante: o poeta parece ter um apego especial pelas árvores, pois o tema é recorrente ao longo do livro), “Efemeridade”, “Voar” e “Cidade”. O “surrealismo contemporâneo” não seria mais um jogo de dados, mas de xadrez.
Nicolau Saião também é artista plástico, a ilustração da capa e interiores do livro é dele. O que dizer dos desenhos de Saião? Vejo-os em contraponto com os poemas não querendo ilustrá-los, mas desmontá-los, destituí-los de sua porção literária.
Se é mencionada a proximidade da prosa na poética de Armando Silva Carvalho. Em Nicolau Saião essa proximidade é muito mais forte, mais presente. Rotular alguns textos, em Olhares Perdidos, como poemas, é delicado: “Erótica Lexicon 2.(b)” é um conto com diálogo entre Jolce e Belinda, “Fala de sua filha a seu pai José Régio” também é um conto onde a filha – unilateralmente – fala ao pai, “Os enigmas do quarto fechado e da fotografia artística” é um ensaio sobre literatura policial, “Fala do pastor no dia seguinte” é um conto com diálogo entre o pastor e um zumbi, e “África” que é uma aventura surrealista na selva, que termina com alguém sacando um “símbolo” do surrealismo, uma automática de nove tiros.
O livro traz 5 poemas e seu título é constituído da palavra Poema, sendo 3 com o mesmo título, formado unicamente da palavra Poema. O poeta parece querer transformar o poema em um ser-humano comum, batizando-lhe com um substantivo comum. Com o livro, Nicolau Saião, nos mostra que é possível fazer uma poesia surrealista sem dogmas, sem fé. Amém.
Cláudio Portella é escritor e autor de Bingo!

terça-feira, abril 17, 2007

As matriarcas (8)

Fui esperar Tiziu em frente da Escola Municipal. Pelo pouco que já conheço do moleque, cheguei com dez minutos de antecedência para não perdê-lo de vista. Levado como era, imaginei que ao primeiro toque do alarme, ele sairia voando pelo portão, doido para deixar a “masmorra” para trás. Errei. Ele nem esperou o alarme soar, cinco minutos antes do horário, Tiziu saiu pelo portão com o passo apressadinho como se não quisesse dar oportunidade de ser agarrado pelo bedel do colégio. Ele enxergou-me de longe e veio saltitando em minha direção como os olhos arregalados:
- D. Olívia!
- Tiziu!
- A professora já tinha terminado, viu? Não fugi da aula, não senhora.
- Eu não disse absolutamente nada, Tiziu.
- Mas antes que a senhora diga...
- Não estou aqui para vigiar você. Fique calmo. Vim porque combinamos um passeio de bicicleta para mais tarde, mas antes preciso ir a um lugar.
- Que lugar é esse?
- Uma casa que fica no Largo da Esperança.
- No Largo da Esperança? De quem é a casa?
- Foi da minha família: bisavós, avós, minha mãe e agora é minha. Mas ela está fechada há alguns bons anos.
- Não gosto de ir por aquelas bandas, D. Olívia.
- E por quê?
- Porque tem muita alma por lá.
- Como é, menino? Que história é essa?
- Falam que lá tem uma casa assombrada que pertenceu à D. Maria da Anunciação. Em algumas noites, uma dona doida anda pelas ruas do largo, vestida de Maria Madalena...

Minha visão ficou turva e a voz de Tiziu foi sumindo, sumindo até que não ouvi mais nada.

sexta-feira, março 23, 2007

As matriarcas (7)

São Pedro amanheceu alvoroçada e monotemática. O eclipse dominou todas as conversas do povoado, do mais velho ao mais jovem.
Às 7 horas da manhã, o sino da igreja badalou anunciando a primeira missa do dia. Nem mesmo o sermão de Pe. Miguel escapou de referenciar o fenômeno. Por mais que ele tentasse explicar não havia jeito.
Os mais idosos estavam temerosos, pois ainda guardavam consigo antigas crendices escatológicas. A meninada queria ficar acordada para ver a lua tingir-se de vermelho.
Naquele dia, apenas eu e mamãe fomos à Igreja. Saímos cedo, sorrateiramente, para que a bisa não notasse. Mamãe não dava ouvidos às manias da cidade e para não exasperar a bisa e nem contrariar suas regras, preferiu não ser vista.
Quando voltamos da missa, a casa estava toda fechada. Apesar do imenso calor, as janelas estavam cerradas, as cortinas baixas, portas chaveadas. Diante do oratório, a bisa rezava o terço pedindo misericórdia à Virgem Maria para que “São Pedro não acabasse em chamas”. Tia Margarida andava de um lado para o outro da casa e atrás dela vovó Totonha com um copo de água com açúcar:
- Bebe, Guida, vai te acalmar.
Eu não entendia porque um simples eclipse causava tanto desequilíbrio na rotina de todos. Tudo o que eu mais queria era pegar minha bicicleta e rumar para a clareira quando chegasse a hora. Queria observar tudo de perto.
À noite, após o jantar, levantei-me depressa da mesa e fui caminhando em direção ao quintal. A bisa puxou meu braço e perguntou:
- Onde é que a mocinha vai?
- Guardar a bicicleta – respondi gaguejando, sinal evidente da minha mentira.
- Ninguém sai de casa hoje, Olívia.
- Mas bisa, eu combinei de encontrar a turma na clareira.
- Amanhã, Olívia. Amanhã.
Chateada, fui para o quarto. Foi assim que perdi o primeiro eclipse da minha vida.

domingo, março 18, 2007

Literaturas Comparadas

Eduardo Coutinho, doutor em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia (Berkeley), considera que a escritura brasileira ganha espaço no mundo e analisa questões como o ofício de escrever e o Pós-Modernismo

Por Luiz Carlos Monteiro*

Filho do grande crítico literário e introdutor do New Criticism no Brasil Afrânio Coutinho, Eduardo de Faria Coutinho tornou-se professor titular da UFRJ, onde já lecionava desde a sua formação. Apesar de grande admirador das letras brasileiras, enveredou pelas literaturas de vários países e a isso se deveu sua escolha por pesquisar e lecionar Literatura Comparada. O seu livro Literatura Comparada na América Latina: Ensaios, de 2003, trata exatamente de questões ligadas ao comparatismo no continente latino-americano.

O OFÍCIO DE ESCREVER
Uma Oficina Literária não ensina um indivíduo a escrever, no sentido de dar-lhe qualquer tipo de receituário, mas a desenvolver suas habilidades como escritor; daí ela designar-se “oficina” ou “laboratório”. A Oficina Literária é um lugar de treinamento, para onde o indivíduo leva seus textos e os vê discutidos por colegas e por profissionais da área que os vão ajudar a aprimorá-los. Esses textos são reescritos diversas vezes, à medida que as contribuições dos demais participantes vão atuando sobre o autor, e este vai gradativamente aprimorando sua escrita até chegar a uma forma que o satisfaça naquele momento. É um trabalho coletivo, de enriquecimento mútuo, porque todos os participantes apresentam textos que são constantemente reescritos e reelaborados, a partir das contribuições oriundas das discussões com os demais. A Oficina Literária Afrânio Coutinho foi uma experiência pioneira nesse sentido e que produziu grandes frutos. Diversos poetas e contistas, por exemplo, ganharam muita projeção depois que a freqüentaram. E ela marcou a vida cultural do Rio de Janeiro na década de 1980.

AFRÂNIO COUTINHO
O meu pai exerceu uma influência constante em minha vida, sobretudo pelo exemplo de grande intelectual, erudito, mas ao mesmo tempo simples, sem sofisticações, de extraordinário pensador, sempre inquieto, indagando sobre tudo, e pelo seu caráter de pioneirismo que o levou a construir coisas como a Faculdade de Letras da UFRJ, com seus cursos de pós-graduação, modelares durante tanto tempo, e uma obra crítica e ensaística sólida, que se ergueu contra a crítica puramente impressionista, introduzindo uma perspectiva mais científica na abordagem do fenômeno literário. Ele foi sem dúvida o introdutor do New Criticism no Brasil, mas o tipo de crítica que ele aqui desenvolveu diferiu também do New Criticism na medida em que nunca deixou de lado a importância do contexto. Dentre suas diversas obras, A Literatura no Brasil tem-se destacado pelo seu cunho de monumentalidade. É uma obra de história literária coletiva que ele idealizou e coordenou, tendo escrito inclusive muitos de seus capítulos, a maioria dos quais foi reunida em outro volume, publicado sob o título de Introdução à Literatura no Brasil. É uma obra em seis volumes, que abrange toda a produção literária canônica brasileira, desde suas primeiras manifestações até o período de sua produção (2ª metade do século 20), e que foi amplamente reeditada, achando-se já na 6ª edição, atualizada. Minha participação na obra restringe-se apenas às últimas edições, que eu ajudei a rever e atualizar, e para as quais contribuí também com um capítulo sobre o Pós-Modernismo.

LITERATURA BRASILEIRA
Acho que a literatura brasileira já construiu um espaço no cenário internacional, tanto que ela é estudada com interesse nas universidades de diversas partes do mundo, como nos EUA e na Europa Ocidental. Em alguns países, como, por exemplo, a França ou os EUA, há inclusive formação em Literatura Brasileira. Na América Hispânica ela está despertando um interesse cada vez maior e está penetrando cada vez mais os currículos universitários. No que diz respeito ao caráter estético-literário das obras, acho que a nossa produção não deixa nada a dever com relação às grandes literaturas do Ocidente. O que dificultou durante muito tempo o conhecimento de autores brasileiros no exterior foi a barreira idiomática, mas isso está sendo superado graças ao número cada vez maior de traduções que se têm feito de obras de nossa literatura. E essa quantidade de traduções demonstra, por sua vez, melhor do que qualquer outro aspecto, o interesse que há por tais obras.

PÓS-MODERNISMO
O que vem sendo designado de Pós-Modernismo no meio acadêmico atual é um movimento surgido nos Estados Unidos na década de 1960 como reação aos excessos do Modernismo anglo-saxão e das correntes teórico-críticas imanentistas, que haviam dominado o meio intelectual e artístico na década precedente. Surgiu com figuras como John Barth e Thomas Pynchon, no campo da literatura, e Andy Warhol na esfera das artes plásticas, e teve como uma de suas principais preocupações a crítica às chamadas “grandes narrativas da modernidade”, para empregar a expressão de Lyotard, um de seus mais destacados teóricos. O Pós-Modernismo cresceu e se espalhou bastante nas décadas seguintes, estendendo-se a outras partes do mundo e aos mais variados setores do conhecimento, e associando-se às lutas políticas que se vinham então desenvolvendo por parte dos grupos minoritários. Na literatura, ele foi amplamente marcado pela auto-referencialidade das obras e pela preocupação com a contextualização histórica, como reação à supervalorização do caráter autotélico do texto defendido pela estética anterior e pelos adeptos das correntes imanentistas. Na América Latina, a discussão sobre o pós-moderno chegou na década de 1980, dividindo a crítica entre os que aceitavam a designação e os que a consideravam mais uma importação forânea, pouco compatível com o nosso contexto. Deixando de lado as divergências e polêmicas que se desencadearam a partir daí, fato é que o termo hoje vem sendo aceito pela crítica acadêmica para designar, sobretudo, um tipo de produção que se diferencia da modernista em alguns aspectos significativos, dentre os quais a presença constante da mídia, a auto-referencialidade citada, os experimentalismos flagrantes e a necessidade premente de reler obras anteriores com o olhar do presente.

FUTURO DA LITERATURA
Eu não acredito que o mundo audiovisual venha a acabar com o livro ou com o prazer da leitura. São coisas diferentes que não me parecem incompatíveis. Ao contrário, acho até que as formas de expressão audiovisual podem contribuir para o interesse pelo livro, como é o caso dos filmes ou das novelas de televisão baseadas em obras literárias que têm contribuído bastante para a venda dessas obras. Não sou pessimista quanto ao futuro do livro.

* Luiz Carlos Monteiro é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon, Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.

Parabéns ao portuga

ANTONIO LOBO ANTUNES É O VENCEDOR DO PRÊMIO CAMÕES
LISBOA, 15 mar (AFP) - O Prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa, foi concedido na quarta-feira no Brasil ao português Antonio Lobo Antunes, informa o ministério da Cultura de Portugal.
Antonio Lobo Antunes, um dos escritores de língua portuguesa mais lidos e traduzidos no mundo, é uma das principais figuras da literatura de seu país.
Lobo Antunes pertence a uma família da grande burguesia portuguesa. Nasceu em 1942. Estudou Medicina e depois se especializou em psiquiatria. Trabalhou em um hospital de Lisboa antes de dedicar-se exclusivamente a escrever, a partir de 1985.
O serviço militar, que cumpriu em Angola de 1971 a 1973 durante as guerras coloniais portuguesas na África, inspirou vários romances.
Entre outros livros é autor de Memórias de Elefante, Os Cus de Judas , Conhecimento do Inferno, Boa Tarde Às Coisas Aqui Embaixo e O Manual dos Inquisidores.
O Prêmio Camões, que vale 100.000 euros, foi creado em 1988 por Portugal e Brasil para distinguir os autores de língua portuguesa que contribuem para o enriquecimento do patrimônio cultural deste idioma.

terça-feira, março 06, 2007

Por um país menos ordinário.

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Dom Ivo Lorscheiter (7/12/1927 - 05/03/2007)

As matriarcas (6)

Sobre a porta da loja lia-se a placa talhada na madeira: Oficina do Gegê. Como a porta estava aberta, fui entrando. Era um galpão de aproximadamente uns vinte metros quadrados sem qualquer organização. Havia pneus, câmaras de ar, remendos por toda a loja; pedaços de bicicleta – raios, pedais, selim, guidão – espalhados no chão. Era difícil caminhar por ali.

Já que não havia ninguém para atender, resolvi bater palmas – um velho hábito do interior – para pedir ajuda.

- Ô de casa!Nenhuma resposta.

- Ô de casa. Tentei novamente, mais forte dessa vez.

Lá do fundo da loja alguém respondeu:

- É já.

Em alguns segundos, surge uma figura simpática e bonachona. Entrou sorrindo largo, dentes branquíssimos, cara redonda. Não me restaram dúvidas. Só podia ser o pai de Tiziu, afinal, eram os mesmos olhos brilhantes.

- Bom dia, moça.

- Bom dia, Sr. Geraldo. Eu sou Olívia e...

- Ah! O Tiziu me falou da senhora. A professora lá da capital.

Segurei firme o riso. Fiquei imaginando como teria sido o relato daquele moleque. Ele viu os livros que trouxe e deduziu que sou professora. O que não deve ter sido muito animador, uma vez que a escola não é assunto que lhe pareça agradável.

- Isso mesmo. Ele disse-me que o senhor poderia conseguir uma boa bicicleta pra mim.

- Eu posso, mas é de segunda mão. Não se importa?

- De forma alguma. Como não vou ficar muito tempo, talvez um mês ou dois, pensei em alugar uma.

- Alugar? Nunca fiz isso, não senhora. Eu conserto, pinto, monto, desmonto, mas alugar... é novidade. Eu posso emprestar.

- Não, Sr. Geraldo. Veja aí uma bicicleta e diga o preço. Eu compro. Quando eu for embora, deixo para o senhor arrumar uma venda, um bom negócio.

Saí de lá montada numa bicicleta vermelha, com raios brilhantes, retrovisor e uma buzina de som extravagante.

É. Bicicleta é um meio de transporte sério em São Pedro das Missões.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Vitrine (3)

O Edilson Pantoja concedeu-me o direito de publicar este seu mini-conto.
Obrigada, querido.
O Imortal

Era meio-dia e meia quando os dois chegaram. Encostaram-se no muro, próximo do largo portão. O mais velho arriou sua forma de isopor na calçada, no que foi imitado pelo mais novo. Logo a carícia no ombro marcado pelo náilon. Ficaram ali, atentos aos que entravam. E como mais de uma hora se passou desde que chegaram, dividiam um picolé. De repente o mais velho cutucou o outro.
- É aquele ali!
- Qual? Aquele?
- Sim, quem mais? Esse mesmo, de flor na orelha e jeans. O imortal. Ih! Disfarça, ele tá olhando pra cá! Quer ver se alguém lhe segue. Puxa! Demos sorte, mesmo!
- Não acredito! Tem certeza de que é esse? Eu juro que não acredito! E acho que não quero mais ver... Vamos embora?
- O quê?! Desistir agora, depois de tudo?!
- Desculpa, mas acho que tô com medo...
- Não te preocupa. Ele não faz mal a ninguém. É sabido demais para machucar alguém. Dizem que tem dois mil e quinhentos anos.
- Quem diz?
- Ah!, não lembro! Dizem por aí.
- A história da água?
- Sim. A história da água... Ele bebe a si próprio. Sempre. Por isso não morre. Olha!, tá virando a esquina que dá para o horto. Vai ser agora! Pshh! Vem, vamos lá. Vamos ver. Não vais acreditar. Eu também não acreditei quando vi a primeira vez.
- Tô tremendo. Acho que não vou conseguir olhar. Vou fechar os olhos.
- Não! Abre! Olha lá! Não falei? Ele tá se engolindo... Meu Deus!Enquanto o imortal se engolia, os meninos, perplexos, vomitavam o picolé.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

As matriarcas (5)

- Bom dia.
- Bom dia.
- A senhora gostou do quarto?
- Sim, está confortável. Obrigada.
- Se precisar de alguma coisa...
- Na verdade, preciso, sim. Quero dar uma volta pela cidade, mas primeiro preciso encontrar o Tiziu. Ele disse-me que seu pai conseguiria uma boa bicicleta para mim.
- Ah, sim! Neste horário, o moleque Tiziu deve estar no Grupo Escolar, mas a loja do Geraldo fica bem perto daqui. Venha, eu mostro pra senhora.
De fato, a loja era bem perto. Do outro lado da praça, para ser mais precisa. Parece que tudo de relevante para a cidade ficava na praça da Matriz. Igreja, coreto, hotel, uma sorveteria e a loja do Sr. Geraldo.
Lembro-me perfeitamente das missas de domingo na Matriz. Eram longas, demoradas demais mesmo. Causavam sonolência nos fiéis. No entanto, era o dia mais movimentado e esperado da semana. Mamãe punha-me laços no cabelo. Vovó Totonha usava seu colar de pérolas – presente de casamento – e vestido de linho branco muito bem engomado. A bisa, como era muito gorda, estava sempre de chambre de algodão e um coque trançado. Tia Margarida, muito alta, pernas longilíneas, gostava de saias plissadas e de perfume. Ela passava tanto que eu ficava enjoada, mal conseguia tomar café da manhã, mas nunca a repreendi, nunca pedi que abandonasse tal prazer, afinal eles eram tão poucos.
Depois da missa começava o melhor: pipoca, algodão doce, bandinha tocando, as crianças correndo livres pela praça. Na época de quermesse, tia Margarida vendia seu famoso licor de jenipapo e vovó Totonha levava seus deliciosos beijus. Eu voltava para casa com dor de barriga.
Tia margarida, antes de ficar doente, dava aulas no Grupo. As crianças adoravam-na. Faziam fila na barraca para provar do seu licor, que era muito doce e tinha quase nada de álcool. Eu sei porque experimentava em casa. Ela dizia “a prova final é a Olívia quem dá”.
- D. Olívia. D. Olívia.
- Tiziu! Eu procurava mesmo por você.
- É?
- É. Estava indo à loja do seu pai alugar uma bicicleta, mas me diga, você não deveria estar na aula, mocinho?
- Eu tava, mas é que... é que...
- Mas é que você está cabulando aula.
- Não conta nada para o meu pai, por favor.
- Não conto se você der meia volta.
O bico habitual surgiu em seu rosto.
- Esse bico de novo, não! Volte para a aula e mais tarde convido você para um passeio de bicicleta e ainda contrato seus serviços de guia. O que acha? Vai querer?
O olhinho dele brilhou. O bico sumiu.
- E a dona paga? Quanto?
- Pago, claro que pago. Combinamos isso depois. Agora volte já para a escola.

domingo, fevereiro 04, 2007

Um olhar sobre o abismo

A estrutura abismal – mise en abyme – nas artes plásticas, no cinema e na literatura
Por Eduardo Cesar Maia*

Uma obra dentro da obra, a ficção dentro da ficção: a célebre cena do drama shakespeariano em que Hamlet pede para que uma companhia teatral encene diante da corte o assassinato do seu pai, o rei Hamlet, a fim de desmascarar os culpados, observando a reação deles à peça, é um exemplo clássico e bastante citado de mise en abyme.

“Relato interno”, “duplicação interior”, “composição em abismo”, “construção em abismo”, “estrutura em abismo”, “narração em primeiro e segundo graus”. Todas essas denominações se referem, em português, a uma técnica narrativa, inspirada originalmente em procedimentos encontrados nas artes plásticas (pintura) e que, posteriormente e com as adaptações necessárias à especificidade de cada forma de arte, chegou à literatura e ao cinema. Tal técnica consiste em colocar uma história dentro da história, como um enclave – uma narração secundária que de algum modo se desenvolve a partir da ficção original.

No ano de 1891, o escritor e ensaísta francês André Gide utilizou e teorizou sobre o termo mise en abyme em seus Diários. Era a primeira vez que, em literatura, a nomenclatura era empregada – anteriormente tinha sido utilizada no estudo dos brasões (heráldica); o abyme (abismo) era uma reprodução em miniatura, no centro do escudo, da sua própria forma total, o que dava uma sensação de repetição infinita do mesmo. Os escritores do nouveau roman utilizaram com freqüência o procedimento, que se tornou quase uma marca do movimento.

Os jogos de espelhos dentro da narrativa, para o leitor ou espectador mais atento, permitem alternar os momentos de realidade da vida com os da realidade da obra de arte: uma recriação da experiência da vida real imiscuída à experiência criativa e estética. É importante ter em mente que o reflexo do fragmento incluído não possui sempre o mesmo grau de analogia com a obra que o inclui, variando de acordo com a interação que o artista quer estabelecer entre os níveis da narrativa.

Para Lucien Dällenbach, principal teórico deste conceito, mise en abyme é “todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a obra que o contém”, funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui. Autores como Shakespeare, Borges, Kafka ou o próprio Gide utilizaram essa estrutura para colocar em xeque o próprio conceito de ficção e, por conseguinte, a própria definição de real. Alguns estudiosos acreditam que essa forma metanarrativa gera uma sensação de maior ficção (como se o leitor fosse ainda mais atraído para o jogo da criação), porém, outros autores pensam que o recurso alerta o público-leitor para a “irrealidade” da trama.
Há, ainda hoje, muitas discussões sobre a utilização do termo mise en abyme. Não existe uma definição rigorosa para o termo e por isso muitas vezes ele é tomado de forma simplista e aplicado a qualquer forma metanarrativa: “quando a ficção vive na ficção”, na definição de Borges. Contudo, na acepção de Gide, é necessário que a estrutura em abismo guarde a característica de reflexividade, quer dizer, o fragmento colocado deve manter uma relação especular com original, refletindo por semelhança ou mesmo por contraste.

*Jornalista e editor da Continente Multicultural.

sábado, fevereiro 03, 2007

As matriarcas (4)

Estar de volta a São Pedro da Missões trazia-me antigas recordações. Não a mim exatamente, mas à Olívia da minha infância, a menina que testemunhou diversas histórias sem entendê-las muito bem.
Havia mais do que as lembranças de vestidos e passeios, das mãos hábeis de vovó Totonha e de sua força. Havia também a “loucura” de tia Margarida, a fragilidade das figuras masculinas – vovô Nico, tio Tatá e o meu próprio pai.
Ah, tinha também D. Lola, minha bisa! O ano que morei em São Pedro foi o primeiro e último do nosso convívio. Eu lembro-me tão bem de seus cabelos de nuvem – branquinhos e longos, muito longos. Eu passava a tarde a penteá-los e depois os trançava. Ela dormia na cadeira de balanço enquanto eu fiava suas madeixas. Bisa Lola estava quase sempre dormindo, rezando ou comendo. Quando morreu, pesava mais de cem quilos e tinha uns noventa anos.
Certo dia, vovó Totonha pediu que eu a acordasse para lanchar. Chamei e ela não respondeu. Brinquei nas suas tranças e ela lá, imóvel. Cutuquei e seu corpo estava gelado. Não demorei a perceber que o sono que dormia não era somente profundo, mas eterno. Foi então que descobri que a morte é fria e silenciosa.
Gritei por mamãe e vovó. Pedi que acudissem. Até tia Margarida veio ver o motivo de tanto barulho. Ao perceber o que acontecia ficou trêmula num cantinho da sala, repetindo sem parar, numa voz débil e baixa: “deixem a mamãe dormir”.
Vovô não estava em casa. Mamãe e vovó carregaram a bisa até o quarto. Foi grande a confusão. Mamãe não sabia o que fazer primeiro e numa rapidez incrível, deu o remédio de tia Margarida e depois fez com que deitasse; puxou minha mão e disse-me para subir na bicicleta e trazer ajuda.
Vovó Totonha não verteu lágrima, ficou firme o tempo todo. Com a ajuda de mamãe deu banho e vestiu a mortalha na bisa, puxou a reza, encabeçou o cortejo até o cemitério. Mais atrás, as mulheres carpideiras seguiam os homens. Foram necessários seis deles para carregar o caixão.
Depois de tudo, três coisas nunca saíram da minha memória: o cheiro de lavanda na casa, Tia Margarida na chuva e claro, a primeira vez que vi Vovó Totonha chorar.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Homenagem ao maestro

Ele foi ecologista antes das questões ambientais estarem na agenda mundial.
Para você Tom, muito mais que músico.

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Brasil: Um país lindo e com nome de árvore. O Pau-Brasil é hoje uma raridade. O Brasil era um paraíso, um país mateiro, grande Nação Florestal. Floresta com onça, anta, macuco, madeiras preciosas que nem foram utilizadas mas queimadas, as queimadas que começavam em Minas e iam até as praias do Espírito Santo. Queimar; fogo, sempre fogo na fabricação demente, insana, do deserto. Depois vinha a chuva e carregava os restos e vinha o sol e cozinhava o chão. Ao lado a voçoroca, o buracão profundo. Insensatos. A superfície da terra virou uma moringa, uma telha.
Amanhece no interior do Boing Jumbo 747 da Varig. Lá embaixo Minas, Zona da Mata. Não tem mais mata. Estamos chegando... cadê a Floresta Atlântica? E a terra despencando morro abaixo. Um compatriota, sentado ao meu lado diz: Os americanos já destruíram suas matas, seus índios; nós temos os mesmos direitos... Meu Deus, o que que os índios pensarão disto, o que as árvores pensarão disto? Chico Mendes falou na TV americana em bom português: vão me matar, não mandem flores, deixem as flores vivas na floresta.
Com legendas, em inglês.

Tom Jobim.

terça-feira, janeiro 23, 2007

As matriarcas (3)

Maria Antônia da Anunciação. D. Antônia. Vó Totonha. Mulher forte e homem da casa. Levava a família na rédea curta. Sempre solicitada nas horas de aflições. Criou sete filhos e alguns irmãos. Trabalhou feito louca para que nunca faltasse o necessário. Rigorosa na educação. Temente a Deus. Suas feições duras escondiam um bondoso coração. Com a chegada dos netos, o franzido da testa atenuou-se.
Ensinou-me a fazer contas. Toda a tarde tomava-me a tabuada com direito à prova dos nove. Ralhava quando me via contar nos dedos, coisa que ainda hoje faço. Ela esmerou-se, mas sempre fui péssima em matemática, não tenho a menor afinidade com os números.
Coisa que eu gostava era vê-la costurar. Fazia coisas lindas. Lembro-me de um vestido de casamento todo de organza. Sonhei com ele por muitas noites, imaginando-me naqueles saiotes rodados, flutuantes. Ele tinha flores aplicadas que ela mesma fez. Recortava os moldes, passava goma no tecido e depois metia-lhe o ferro quente para moldar as pétalas. Eu olhava tudo aquilo maravilhada, com olhos de admiração e cobiça. Um dia teria um vestido como aquele, cheio de flores e laços.
Vovó Totonha sempre fez minhas roupas. Só comecei a usar roupas de lojas no colegial, quando minha mãe comprou meu primeiro jeans. De resto, tudo era feito por vovó. As outras meninas morriam de inveja porque minhas roupas eram únicas. Nunca corri o risco de ver alguém com o mesmo modelo. Não sabia eu que a exclusividade das minhas peças não era um capricho ou vaidade, mas contenção de despesas. Melhor assim, ao invés de carregar o trauma da pobrezinha, desfilei com brejeirice o prêt-a-porter de vovó Totonha.
Ela também me ensinou a bordar, fazer crochê, capas de almofada, trabalhar com retalhos... de todas essas atividades manuais, a única habilidade que me restou foi manejar a caneta e isso também devo a ela que alternava a lição da tabuada com as aulas de caligrafia. Eu adorava desenhar as letras na pauta, vê-las transformando-se em palavras redondinhas sobre o papel.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

As matriarcas (2)

- Desfaz esse bico, Tiziu! Anda, diga, o que você faz em São Pedro?
- Eu ajudo meu pai.
- E o que seu pai faz?
- Ele é ferreiro. Conserta as carroças e bicicletas de todo o povoado.
- Parece divertido.
Ele deu de ombros.
- E a escola?
- O que tem?
- Como o que tem? Você estuda, não estuda, Tiziu?
- Estudo, mas não gosto muito. Eu gosto mesmo é de correr por aí no meu cavalo.
- Uma coisa não impede a outra
Mudou de assunto:
- A dona é parente do Nhô Agenor?
- Não.
- Então o que veio fazer aqui?
- Uma pesquisa.
- Não entendi.
- Quero saber sobre algumas pessoas que viveram aqui.
- A dona é da polícia?
Não pude evitar o riso. Sua pergunta continha tanta excitação e aventura.
- Não, Tiziu. Eu conto histórias e elas viram livros.
- Ah! – exclamou todo frustrado.
Minha vez de mudar de assunto:
- Tiziu, será que seu pai me aluga uma bicicleta? Acho que vou precisar de uma.
- Claro. Depois eu levo a senhora lá na oficina para escolher uma bem bonita.
- Ótimo.
- Chegamos.
A pensão do Agenor era um casarão estilo colonial, antigo, mas bem conservado. Móveis rústicos, toalhas de linho, portas pesadas, assoalho brilhando e um cheiro forte de óleo de peroba.
- Vou pegar suas malas.
- Obrigada.
Agora que eu já recuara no tempo, deveria ir até o fim. Sabia que não se tratava de uma história qualquer.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

As matriarcas (1)

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O trem finalmente pára na estação. A velha maria-fumaça gemeu sobre os trilhos por todo o percurso. Trezentos quilômetros de ranger de ossos.
Desço e o chefe da estação grita as boas-vindas. Ele ainda se veste como os antigos chef de gare do final do século XIX. Sua roupa não tem um único vinco, o quepe está impecável em sua cabeça, mas a estação está abandonada, tudo é só pó, paredes rachadas precisando de tinta. São Pedro das Missões parou no tempo. Todas as coisas têm cheiro de passado.
- Por favor, como faço para chegar até a cidade? Poderia me conseguir um táxi?
O chefe sorriu:
- Em São Pedro não temos táxi ou ônibus. Mas posso conseguir uma charrete.
Uma charrete!! Meu Deus, o povoado ainda usa charretes. Depois de trezentos quilômetros trepidando num trem ainda terei de agüentar uma boa meia hora numa carroça.
- Pois que seja.
- A dona não é daqui, vê-se logo. O que a traz a esse fim de mundo?
- Meu ofício.
Saquei da bolsa minha cadernetinha de anotações. Chico do táxi. Chico, segundo relatos da vovó, era o único do povoado que tinha carro. Um velho Ford amarelo que ele usava para prestar socorro aos moradores. Nunca cobrava pelos serviços.
- o que aconteceu com o Chico do táxi?
O homem arregalou os olhos como se tivesse visto uma assombração. Será que disse algo errado?
- O Chico morreu, dona. Faz três anos.
- Lamento muito. Deixe que eu me apresente. Sou Olívia, neta de Totonha, bisneta de D. Lola.
Pensei que o homem fosse morrer na minha frente. Ficou paralisado com uma estátua de sal.
- Minha avó contou-me muitas histórias daqui.
- Prazer, D. Olívia. Desculpe o espanto, mas tem tanto tempo.
- Eu sei. Estive aqui uma única vez. Eu tinha sete anos na época. Retive algumas coisas na memória e pelo que vejo, não mudou muito. Achei que fosse ter um impacto, mas sinto-me como a menina de sete anos.
- É, as coisas não mudaram muito mesmo. Vou chamar um moleque para levá-la até a cidade. A senhora deve está cansada.
- Estou mesmo. Diga-me, a pensão do Agenor ainda existe?
- Existe, sim.
- Tiziu, ó Tiziu vem cá, menino.
Tiziu era um garoto negrinho como a noite, mas tinha olhos enormes e um sorriso tão branco e largo que espantava qualquer medo ou receio. Porque devo confessar, estava receosa com os fantasmas que encontraria.
- Olá Tiziu. Eu sou Olívia. Poderia me deixar na pensão do Agenor?
- Posso, sim, dona. Tenho o cavalo mais rápido e valente daqui.
- Então, vamos.
- Tiziu, não vá em disparada. Não apronte nenhuma com a moça.
Ele amuou e murmurou um “tá bem” a contragosto. Agradeci ao chefe da estação. Quando a charrete ia adiantada, ele gritou:
- Esqueci de dizer, sou mestre Antônio.
Acenei com a mão e respondi.
- Eu sei.

Um poema que me marcou...

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"Em legítima defesa
Sei hoje que ninguém antes de ti
Morreu profundamente para mim
...
Os outros estão mortos porque o estão
Só tu morreste tanto que não tens ressurreição
Pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
Onde antes te encontrava e te posso encontrar
E ver-te vou como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e
Vives sempre mais."

in Volume II - Ruy Belo