terça-feira, outubro 05, 2004

Glossolalia

Esse espaço de palavras caóticas ganhou esse nome por causa de um homem que através de sua literatura modificou minha vida, a minha forma de ver o mundo. Ele pincelou com novo colorido meu olhar sobre o sagrado e o humano; fez aflorar a generosidade que havia em mim; aguçou minha fome de letras; acalmou minhas angústias por ter uma mente operária e inquieta, mostrando-me novas possibilidades; fez-me perceber que a maquininha interna que me habita não consiste num mal apenas... ela também pode ser bênção.
Após a minha queda, não ao fosso do Edifício Martinelli, mas ao da minha própria construção subjetiva, aprendi a falar em línguas, a gostar da turba, do vozerio harmônico que viaja por lugares e pessoas.
Ele ficou pouco tempo entre nós, mas o suficiente para construir um projeto literário vivo e consistente.
Saudades, Osman.


Aos nove anos de idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da mudez.

(...)

"Assim vivo, nesta comunhão que me multiplica e me atormenta, assim vivo, até precipitar-me para baixo no meu velocípede, eu e o mundo, eu e as três rodas que giram em derredor de mim, e tudo escurece e nessa escuridão eu sou novamente formulada, eu, novamente sou parida, sim, nasço outra vez.

(...)

"Gero-me para a queda, para isto cresço, para esse lance amadureço enquanto os dias surgem, passam, surgem e passam, os dias. Quem me pare outra vez? De quem sou filha, eu, na segunda vez em que nasço? De uma palavra? Ordena alguém: "Nasce!", e então obedeço, sou nada? Serei, em meu segundo nascimento, um ser como os outros, nascido de mulher? Nado de si mesmo? Nado no ar, do ar?

(...)

"Súbito, de algum ponto, voz subterrânea, a queda começa a atuar sobre mim. Exerce sobre o meu ser sua atração, chama-me como o mundo exterior chama o nascituro e eu não sou alheia a essa invocação. Minha inquietude agrava-se; deixo-me cair vinte vezes por dia, do velocípede, da minha cama, da velha e rangedora cama dos meus pais, da grande mesa redonda...

(...)

"Ainda não falo. Sem falar, desagrego as coisas, desmonto-as, separo umas das outras, reorganizo-as em mim. Removo, do edifício, o nosso apartamento; o edifício (chama-se Martinelli), removo-o do quarteirão; o quarteirão, isolo-o da cidade. Instauro brechas e vãos. O mundo é uma constelação de espadas regirantes e todas as manhãs, esta pergunta me assalta: "Como sobreviver?"

(...)

"Levo a mão à boca e mordo esta certeza, este espanto, esta amargura, este ódio, esta ira, levanto-me e decido-me, não guardarei silêncio, porei termo ao silêncio, vou falar, abro a boca, mas não é fácil falar, tenho a língua e a laringe cheias de teias de aranha, aspiro o ar e expiro-o, pela boca, com dificuldade, eles me olham, meu pai leva a corneta aos lábios, crispam-se no chapéu os dedos de minha mãe e eu grito, cuspo, vomito em suas caras: "Inrerno. Inrerno". O nome não é este, mas tenho de dizê-lo, o esforço me exaure, eu caio de joelhos, perduram os movimentos convulsivos e eu tento outra vez como quem tenta um salto, um mergulho, um passe acrobático, tento outra vez, agora com mais força, com mais ódio, e grito: "Inferno!" é a primeira palavra que libero, a primeira, volto a repeti-la, quatro, cinco vezes, de modo cada vez mais débil, depois me curvo, toco o chão com a fronte e caio em pranto.

(...)

"A testa ainda no chão, começo a balbuciar. Meu pai e minha mãe acreditam que eu esteja possessa do demônio. Falo aos solavancos, sem pensar, sem nexo, minhas palavras são pus, minha boca um abcesso aberto, falo sem parar, às vezes murmurando, aos brados em seguida, e assim como antes muitas palavras se formulam em mim sem que as pronuncie, falo agora de coisas que estão fora do meu entendimento. Leio um dia em Virgílio que as nações submetidas a Roma, os dias de triunfo, jogos públicos, ovações sacrifícios, coros de matronas, naus de guerra, deuses monstruosos e todas as batalhas, postas por ordem, aparecem no escudo fabricado para o filho de Vênus. Este, quando cinge a obra de Vulcano, ignora cingir os eventos e figuras de que participa a sua estirpe. As palavras que lanço em meu discurso sem-fim e incontrolável também representam a minha própria vida, embora ao proferi-las tudo eu ignore sobre isto; e ainda maior que a do Troiano é a minha ignorância, pois, ao contrário das batalhas cinzeladas em seu temível apresto de guerra, postas por ordem, os personagens e eventos a que devo ligar-me vêm fragmentados nas palavras, frases e nomes que enuncio, nomes, frases e palavras dos quais muitos voltam, são repetidos pela manhã, à noite, nesses dias e noites em que falo e falo sem parar, quantos, quantas?, muitos, talvez três, talvez cinco, difícil saber, dias e noites em que quase não durmo e, mesmo enquanto durmo, ainda falo. Visitantes contristados olham-me de longe, nem sequer atrevendo-se a passar a porta do meu quarto, eu como pouco e mal, engolindo palavras, bebo apenas para refrescar a garganta dolorida, a voz extingue-se, exausta eu fecho os olhos e mesmo assim meus lábios secos continuam a mover-se, eu continuo a falar, dentro de mim..."

LINS, Osman. Avalovara

2 comentários:

Anônimo disse...

LU: nesse post você responde a uma pergunta que pensei lhe fazer, mas que nunca havia feito: o porquê da escolha desse nome. Agora sei. É muito bom quando a literatura serve de luz para iluminar o caminho, quando é candeeiro, facho forte que dá o rumo. É bom que você tenha e cultive "o dom das línguas". Parabéns pela escrita sempre inspirada e iluminada no Osman. Um beijo.
José de Castro

Lu disse...

Amigo Castro,
Eu jamais poderei ser grata pelo que o Osman fez por mim; o quanto a literatura me mantém alerta para o que sinto e ainda não sei falar. Beijão.