quarta-feira, junho 04, 2008

Davi X Golias

Hoje pela manhã, ao chegar ao trabalho, fiz o de sempre. Acessei o e-mail da empresa para verificar se já havia algum texto para revisar. Nenhum, mas tinha uma mensagem da minha chefe. Ela também escreve e sabendo que amo o Machado de Assis de paixão, enviou-me esta carta-bomba para atiçar meus ânimos.
Depois de ler e responder, pensei que seria interessante fazer um post sobre o assunto.
Bom, aí está.

Ah, o texto é do Daniel Lopes e pode ser encontrado no Digestivo Cultural.


Não gostar de Machado

Não gostar de Machado de Assis, no Brasil, é arriscado. Quero dizer, se você sair por aí dizendo que não gosta. Mesmo se lhe foi pedida uma opinião. Você não corre o risco de ser surrado (não sei se essa garantia serve caso você esteja nos corredores da ABL), mas com certeza receberá aquele olhar de piedade que apenas os seres superiores sabem produzir.
Você é criticado por não gostar de Machado mesmo por quem nunca o leu, ou, ainda pior, por quem o leu e também não gostou, mas ainda assim... patrimônio nacional é patrimônio nacional. Mexer com Machado é quase como mexer com a Amazônia. Quase, nada, é pior, muito pior. Se Al Gore quer saber o que é realmente bom pra tosse, que experimente, em vez de dizer que a Amazônia é do mundo, declarar que Machado é "um escritor de segunda", como já opinou Millôr Fernandes.
Há pouco tempo, um leitor do Digestivo, comentando no meu perfil, se revoltou contra o fato de eu ter escrito que "ainda no colégio, nunca consegui gostar de Machado de Assis, e apenas quando já havia entrado na universidade pude compreender que não perdera nada". Também concorreu para aumentar a indignação do leitor o fato de eu ocupar espaço no Digestivo com textos sobre livros de autores estrangeiros, insignificâncias como J. M. Coetzee e Nathaniel Hawthorne: "Não gostar do Machado e gostar de escritores estrangeiros bem traduz esta juventude de hoje influenciada pela cultura americana e outras, que entram nos nossos ouvidos diariamente pela mídia e também por livros".
O autor da mensagem assinou como Delton. Eu lhe enviei uma resposta, mas esta voltou, acusando e-mail inválido.
Seja como for, assim que li seu comentário lembrei de algo que me ocorreu logo que entrei no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Foi em 2003. Certo dia, entre uma aula e outra, estou a folhear no corredor um livro de George Orwell, quando um rapaz mais ou menos da minha idade pára sua caminhada simplesmente para dizer que eu sou um alienado. Eu levanto os olhos e o vejo erguendo um livro de José de Alencar. "Já leu isso?", perguntou. Sou um sujeito muito tímido, não gosto de discutir nem com gente inteligente. Disse apenas que "já, é um livro muito ruim". Nem vi direito o título, mas se era José de Alencar só podia ser algo chato, e eu queria me livrar do rapaz o mais rápido possível. Ele resmungou e foi embora.
Hoje penso que ele devia ser um desses membros do movimento estudantil que gastam mais tempo se movimentando do que estudando. Não sei se ele viu que o livro do Orwell era em inglês, pois eu estava começando a estudar inglês. Acho que não viu. Se tivesse visto, a bronca poderia ter sido maior. Com certeza, ele não sabia da história de vida de George Orwell. Tomara que, de 2003 para cá, a militância do jovem fã de Alencar em um partido político ou outro lhe tenha deixado algum tempo de sobra para aprender sobre a participação de Orwell na Guerra Civil espanhola, do lado dos republicanos e contra os fascistas ― experiência que gerou o livro Homage to Catalonia.

Nacionalismo literário

"Triste do povo que precisa de heróis". O que diria então Bertold Brecht da carolice de uma intelectualidade nacional que precisa de heróis para se sustentar?
Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira.
É verdade que Machado de Assis não é tão ruim quanto José de Alencar. Se, conforme disse em recente entrevista ao jornal Rascunho o professor e escritor sergipano Antonio Carlos Viana, "dar Machado de Assis para um menino de 15 anos é querer que ele não goste de literatura, nunca mais", o que dizer do trauma gerado em um jovem que é forçado a ler coisas como Senhora? Viana diz ter acabado de escrever um livro em que indica 45 autores indispensáveis para que alunos do segundo grau tomem gosto pela leitura ― entre os quais, Franz Kafka e John Fante. Estou com ele.
Aliás, por que mesmo nossas crianças e jovens são torturados com obras monstruosas da literatura brasileira e portuguesa, ao mesmo tempo em que são privados dos grandes clássicos da literatura universal? É claro que existem excelentes obras brasileiras ― é difícil, por exemplo, imaginar um estudante não se divertindo e se comovendo com Memórias de um sargento de milícias ou Triste fim de Policarpo Quaresma. Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?
Mas enquanto a função principal dos nossos professores de literatura for fazer os alunos detestarem a literatura, o tipo de produto literário nacional que os estudantes irão comprar em sua vida adulta será, no máximo, as obras completas de Paulo Coelho, empilhadas estrategicamente na estante da sala, unicamente para fins de enfeite.
De cada 100 jovens que entram na universidade (tendo feito belos pontos nas provas de literatura), quantos se tornarão adultos apreciadores da literatura relevante, nacional e internacional? Sejamos benevolentes, suponhamos que esse número seja de 10. Desses 10, quantos devem à escola essa dádiva? 1. Podem sair pesquisando por aí. Os outros 9 se comportaram de forma rebelde na juventude, fingindo que liam poesia parnasiana, apenas para fazer a média na prova, enquanto que, na surdina, encontravam em sebos e bibliotecas o que realmente lhes dava prazer e o que de fato os transformou em leitores maduros ― alguns, até, apreciadores de Machado de Assis.
E para constar. O que respondi ao leitor Delton no e-mail que não foi entregue, em resumo, foi que
― é verdade, não gosto de Machado de Assis. E não é porque nunca o li, ou não entendi as estórias. Sim, li algumas e as compreendi, mesmo as que abandonei pela metade. O que não quer dizer que no futuro, em novas leituras, não possa vir a gostar dele. Mas não sinto a menor obrigação de fazê-lo;
― é uma besteira achar que se alguém não gosta de Machado ou qualquer outro escritor é porque tem que crescer mais "literaturalmente". Claro, eu tenho muito que evoluir, e espero evoluir sempre. Mas quem garante que, lá pelos 140 anos, tendo evoluído continuamente, ainda assim eu não vá gostar de Machado? Ou será que se o sujeito tem 100 anos e não gosta de Machado é porque ele não evoluiu o suficiente? E quem gosta de Machado aos 15 anos já atingiu o ápice de sua vida "literatural"? Que bobagem, não é mesmo?
― eu lhe asseguro que é muito bom ser influenciado por culturas de fora, dos EUA, da Europa, Oriente, África, Marte... Tão bom quanto ser influenciado pela cultura local. Acredite, há porcaria escrita em todo lugar, e em todo lugar há coisa boa à nossa espera. Pergunte a Machado, que era fã de carteirinha de Montaigne e Laurence Sterne.


Chefe, o texto é muito bom. Bem escrito e tal...
Concordo com algumas coisas, discordo de outras. Bom mesmo é chegar numa idade em que essas farpas já não são combustíveis para o meu espírito. Bom mesmo é ler e dar gargalhadas por ver pessoas chovendo no molhado ou, num português bem chulo que não deixa margem a dúvidas, cagando regras.
Em parte, eu entendo a crítica porque sou sócia do pequeno grupo que odeia Joyce. Tadinho, não é odiar. Eu não o odeio, mas eu acho o Ulisses um porre, chato pra chuchu, de lascar. Outro escritor que não me causa sequer cócegas é o Jorge Amado (salvo O gato Malhado e a andorinha Sinhá, Capitães de areia e A morte de Quincas...). Eu acho a literatura dele morna, repetitiva. A Zélia sempre me pareceu melhor, não sei, eu acho que ela tratou de temáticas mais interessantes. Mas, contudo, entretanto, todavia, por mais que eu pense isso – e eu penso – respeito e não nego a importância desses autores para a literatura.
Eu não acho Freud essa Brastemp toda, comparado a outros da área, mas eu seria louca em negar que tudo começou com ele. Se gosto mais de Jung do que de Freud, a culpa é do próprio Freud, sem seus estudos, Jung não poderia ter ido além.

“Sempre duvidei que alguém em sã consciência, se lhe fosse dado dois livros, um de George Orwell e um de José de Alencar, ao cabo das leituras preferisse Alencar. Se preferir, não descriminarei. Juro. Mas duvido que prefira”.

Afirmações desse tipo não tornam o autor do texto diferente daqueles que critica. O fato de ele não ter prazer na leitura Machadiana não lhe dá o direito de julgar que outros o tenham.

PS: O autor não pode mesmo descriminar, uma vez que não existe crime. O máximo que ele pode é não discriminar.

Bem, isso é uma coisa.
Outra coisa é propor Gogol, Tolstoi, Kafka (!!), e acrescento, Proust, Tchecov ao invés de Machado. Pirou? Só porque são estrangeiros? Essa é a única diferença que consigo identificar, em minha modesta opinião. Esses autores são tão “difíceis” de deglutir quanto um Machado! Pelo amor dos meus filhinhos.
Que existe um estrangeirismo exacerbado e mal camuflado, existe. O que é uma bobagem. Apenas diga: prefiro literatura estrangeira à brasileira. É mais simples, direto e menos falso.
O currículo escolar brasileiro precisa ser revisto. E não é de hoje!
Acho realmente muito difícil que estudantes de quinta série apreciem Memórias Póstumas. Se já era difícil para a minha geração, imagine para essa que tem todas as facilidades visuais das novas tecnologias. Essa afirmação também se aplica aos estrangeiros que o autor tanto ufana. Imagina a geração videoclip lendo A metamorfose, do Kafka ou O estrangeiro, do Camus? Ia ter suicídio coletivo, minha filha!
O que pode ser bem aproveitado de Machado para essa garotada são os contos e seus dois romances, Helena (romântico) e Iaiá Garcia (de transição). Os romances realistas precisam de uma apresentação, um flerte.
Outra coisa ainda:

“Mas por que, em vez de incluir estorvos do período romântico brasileiro, nossas grades curriculares não permitem aos mestres trabalhar novelas de Herman Melville, Gogol e Tolstoi, contos de Jack London e por aí vai? É para "valorizar o que é nosso"?”.

Eu não acredito que estou respondendo a isso, chefe! Kkkkkkkkk
Essa pessoa não é burra, né!? Pode ser reacionária ou sofrer de brasofobia. Brasofobia?
Sim, cara pessoa, é para valorizar o que é nosso! A grade curricular BRASILEIRA pretende que nós BRASILEIROS conheçamos os expoentes da nossa literatura que é BRASILEIRA. Elementary, my dear Watson!
Eu duvido que na Rússia, as escolas incluam na grade curricular de literatura russa um romance francês ou brasileiro. O mesmo vale para a França, Estados Unidos, etc.
Literatura comparada fica para a universidade. Lá, as pessoas matarão a vontade insana de ler Moby Dick, essa obra imprescindível para a formação literária de um ser superior.
E outra coisa: A AMAZÔNIA É PATRIMÔNIO NACIONAL! DO MUNDO É O CARALHO!

Beijo,
Lu

4 comentários:

bete p.silva disse...

hahahaha que bacana! É, o cara tá empolgado demais mesmo, pode ser até que ele fale coisas certas lá e cá, mas não é bem assim.
Eu tenho um amigo, o Theodoro, que também odeia Machado, ele já chegou a dar palestras sobre o tema, e ele prova, leva uma carrada de livros pra palestra. Houve uma época em que era considerado crime de lesa majestade não gostar de Chico Anisio, ele era considerado "um gênio do humor", eu sempre achei isso meio exagerado. Nos meus tempos de colégio, era obrigado gostar de Charles Chaplin, nunca entendi porque.
Mas gostei da sua resposta.

Lu disse...

Ei Bete! Essa é você, então? rs
Sei lá. De vez em quando o mundo cisma que a gente precisa cultuar umas figuras, né? De onde tiram isso?
Antigamente, eu pegaria o e-mail desse cara e esculhambaria com ele até a sétima geração! Agora, eu sorrio. É mais sábio e nao dá câncer! rs
Beijoca.

Pitty que Pariu disse...

Muito bom! Adorei acompanhar o debate sobre literatura mais e menos consagrada. Falo sempre em favor da diversidade. tenho minha opinião sobre Machado de Assis, sobre José de Alencar, sobre Jorge Amado, mas tanto minha opinião sobre eles, quanto a que tenho por vários outros, só exponho quando especificamente necessário. De imperativo o bom é ler!
Imagina que sem ler alguém conseguiria ser tão claro espondo tantas opiniões, com tanta propriedade?! Seria difícil...
Tanto na literatura brasileira quanto na estrangeira não é possível imprimir um caráter homogêneo. Aliás, isso sim seria um crime. Mas me agrada a idéia de promover o que foi produzido por aqui. Concordando que não é tarefa das mais fáceis.

Lu disse...

Olá Pitty!
Que bons ou maus ventos a trouxeram até aqui, menina? rs
Obrigada pela leitura. É um post longo e pode causar desistência ao término do primeiro parágrafo... afinal who in the hell quer saber sobre literatura brasileira nesses nossos dias?
Eu, como boa moiacana, sempre que posso trago uns bons dedinhos de prosa.
Abraço.