terça-feira, abril 26, 2005

O Glossolalias, além de ser o espaço onde exercito a palavra, é também o local que concede às muitas falas e vozes o direito de expressão, do fazer poético, da criação e da interpretação discursiva.
Este mês, trago um pedacinho da entrevista que o Mia Couto concedeu à Revista Continente.
Deliciem-se!

“O escritor não tem função”

Considerado o mais inventivo ficcionista em língua portuguesa atualmente, Mia Couto separa militância do fazer literário, defende a arte de contar histórias e revela como trabalha sua ficção

Por Homero Fonseca

António Emílio Leite Couto é um dos mais criativos escritores contemporâneos em língua portuguesa, recorrentemente comparado a Guimarães Rosa. Além dessa influência assumida, sua escrita lembra certas características da melhor poesia de Manuel de Barros quando, em suas próprias palavras, deixa transparecer uma “capacidade de espanto, de me encantar com pequenas coisas, como se o mundo fosse uma coisa que ainda me está a ser apresentada, como se tudo estivesse a ser estreado”. Os críticos ressaltam seu estilo original, que se apropria do caldeamento entre o falar dialetal africano e a norma culta do português, para criar um universo próprio, onde o maravilhoso convive com a vida real de pessoas simples, numa África arquetípica que enfrenta hoje os dilemas da construção de identidades na moldura da modernidade.

Nascido em Beira, Moçambique, em 1955, adotou profissionalmente o apelido conservado desde a infância: Mia. Estreou em 1983 com o livro de poemas Raiz de Orvalho e nesses 22 anos construiu uma obra relativamente pouco extensa – meia dúzia de romances, outro tanto de livros de contos, uma seleção de crônicas e adaptação para o teatro – mas de extraordinária relevância pela inventividade que o coloca no patamar de renovador da língua portuguesa. Traduzido em holandês, sueco, norueguês, italiano, francês e espanhol e detentor de vários prêmios literários, Mia Couto é autor, entre outros, dos livros de contos Estórias Abensonhadas, Vozes Anoitecidas, Cada Homem É uma Raça e de romances como Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, em que sua capacidade imagética se traduz na recriação semântica das palavras, processo batizado por ele próprio de brincriações. O romance O Último Vôo do Flamingo acaba de ser lançado no Brasil.

Antes de se dedicar à literatura, foi jornalista, diretor da Agência de Informação de Moçambique e dirigiu o jornal Notícias de Maputo e a revista Tempo. É ainda biólogo, responsável pela reserva natural da Ilha da Inhaca, em Moçambique.
Apesar do currículo de militante, Mia Couto revela, nesta entrevista, saber distinguir os campos de atuação, ao afirmar taxativamente: “O escritor não tem ‘função’. Não creio que se pode olhar a escrita literária do ponto de vista utilitário. Ele escreve movido por um telúrico e inexplicável desejo de se religar aos outros”.

Como foi a sua descoberta da Literatura, entre os livros em português e as histórias orais da África ágrafa?

Cresci cercado pela poesia, literalmente. As paredes de nossa casa estavam forradas de livros de poesia. E, para agravar, o meu pai era poeta em permanente exercício. Essa era a casa. Do outro lado, a rua se compunha como a outra margem de mim. Ali estava África, os contadores de histórias e, mais do que tudo, uma lógica outra que me fascinava. Nessa aparente dualidade, eu fabriquei os dois pés da alma.

Sua escrita traz uma elaboração de linguagem que provoca comparações recorrentes a Guimarães Rosa. Entretanto, certas abordagens - em que um objeto ou uma coisa banal são descritos como se vistos pela primeira vez - lembram o poeta Manoel de Barros. Conhece sua obra? O que acha dessa aproximação?

Conheço os dois, Guimarães e Barros. Eu apenas me honro com a comparação. Assumo ambos como inspiradores, instigando a exploração dos limites da palavra em luta contra o idioma. Creio, no entanto, que os nossos domínios não são comparáveis. Estou num tempo diferente, num universo cultural outro. E isso apenas pode produzir literaturas diversas.

Que tipo de contribuição à Literatura estão dando as nações jovens (africanas, latino-americanas)? Há algo em comum em sua produção, apesar da imensa diversidade?

A literatura nossa, africana, é quase sempre contemporânea ao processo de criação do sentimento de nacionalidade e de identidade nacional. A construção da modernidade e o modo como o universo da escrita se está instalando em África (não falo na alfabetização, mas no sistema de pensamento associado à lógica da escrita), tudo isso é comum nos países africanos.

Qual a função do escritor no mundo globalizado de hoje, em que a questão das identidades está colocada na ordem do dia (política e culturalmente)?

O escritor não tem “função”. Não creio que se pode olhar a escrita literária do ponto de vista utilitário. Ele escreve movido por um telúrico e inexplicável desejo de se religar aos outros. É evidente que, por outro lado, o escritor não escapa ao tempo e ao lugar. E aí o seu produto é posto a navegar nas águas da História. Mas se tem um fito honesto, só pode ser o navegar para além da História.

Não obstante a imensa dívida cultural para com os povos africanos, o Brasil pouco se volta para África. O José Eduardo Agualusa acredita que o Brasil tem vergonha de suas origens africanas. O que o sr. acha desta distância e como pode (deve) ser encurtada?

Essa viagem está sendo feita no interior de cada um dos nossos espaços, na busca de uma relação mais tranqüila com aquilo que somos. O Brasil não tem outra opção, senão reencontrar essa dimensão de origem africana e que hoje é brasileira. Digo brasileira, para evitar propositadamente dizer “afro-brasileira”. Angola só poderá inventar a sua identidade se enfrentar o quanto de brasileiro há na sua história. Nós, em Moçambique, temos menos cruzamentos com Angola e o Brasil, mas os nossos valem tanto como quaisquer outros. A literatura moçambicana foi toda ela construída sob fortíssima inspiração do Brasil. Desde António Gonzaga às diferentes gerações do século passado foi no Brasil que fomos beber. E isso tem implicações na criação do nosso próprio sentimento de modernidade.

O senhor aproveitou sua participação na Bienal do Livro de Fortaleza (ano passado) para fazer uma viagem ao Sertão nordestino. Algum objetivo (literário) específico? A propósito, quais seus novos projetos literários?

Queria percorrer um Brasil mais distante do roteiro turístico. Mas não existia objetivo propriamente literário. Nada é literário, se não tocar profundamente e de surpresa. E essa surpresa acontece em todo o lado. Não tenho a idéia romântica de que o interior dos países seja uma moradia especial da poesia ou da inspiração. Quanto aos projetos, estou agora redigindo um romance de inspiração histórica, que trata da escravatura no Oceano Índico e os mal-entendidos, os clichês do fenômeno que até hoje se renovam no imaginário africano.

(Leia mais na edição 52 da Revista Continente Multicultural.)

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