quinta-feira, outubro 07, 2004

Mini-conto

"Marcou-me a pele o seu silêncio".
Entrou em casa, pálido, gélido, reticente. Mal olhou-me nos olhos. Passou direto para o quarto, pegou uma mala – a maior – e despejou suas roupas apressadamente como o faz um fugitivo, um criminoso.
Esvaziou o armário e gavetas, foi à estante e escolheu alguns poucos livros e CDs.
Angustiada com sua movimentação, perguntei:
- Viagem a trabalho?
Não houve resposta.
Levantei-me e fui em sua direção. Olhando aquela bagunça e sem entender nada, disparei, trêmula, antevendo o que estava por acontecer:
- Amei as rosas, o cartão... lindos como a noite de ontem.
Novamente aquele silêncio devorador.
Mala pronta, ele respirou fundo e finalmente me encarou.
Puxou-me pelos ombros, beijou-me lento e demorado. Depois, afastou-se, relutante, tendo os olhos úmidos.
Pegou a mala, passou os olhos pela sala, parou por alguns segundos diante dos porta-retratos, sorriu amargo e partiu.
Fiquei paralisada por um longo período, nem sei precisar quanto, olhando fixo a porta.
Fui despertando aos poucos, sentindo uma ardência no corpo a corroer-me por inteiro.
Olhei para mim e feridas enormes povoavam-me.
Passados os dias, as feridas cicatrizaram. Cada cicatriz originou uma palavra.
"É, marcou-me a pele o seu silêncio."

4 comentários:

Anônimo disse...

Continuo te lendo sempre Luciana-poeta. Tua relação cicatriz/palavra é interessante demais. Muito poucas coisas podemos ter para sempre na vida, poucas coisas não nos tiram de maneira alguma. Cicatrizes e palavras fazem parte dessa lista muito (!) restrita (sonhos quem sabe também..), adoro cicatrizes em geral e tuas palavras em particular. Escreve sempre tuas palavras ok? e o sorriso? Sds - Pedro.

Lu disse...

Que estranho, Pedro... ontem, lembrei de você. Estava relendo o antigo blog, salvando as últimas coisas antes de finalmente deletá-lo... ainda não o fiz, a resistência se deve ao fato dele também não pertencer somente a mim, mas a todos vocês que nos acrescentaram.
Feliz por saber que continuas por aqui, isso é um sinal (gratificante) de que as cicatrizes não só minhas, mas compartilhadas.
O sorriso? Sempre o mesmo, acho eu... :)
Beijo.

Anônimo disse...

Querida Lu: Comoveu-me, além de tuas palavras, de tuas construções sensíveis, a solidão da ânfora na tijela. Como se estivesse em compasso de espera, esperando... esperando... Virá alguma mão para lhe dar sentido, para lhe justificar a sua existência? Um abraço cálido, José de Castro.

Lu disse...

Castro, meu amigo, sempre há uma espera e uma utilidade. O dífícil é saber quando, difícil é descobrir nossa aptidão para o mundo.
Ruim mesmo é quando no mundo não há lugar para quem somos, assim como a velha Macabéa, lembra? Mas ainda que o mundo não tenha feito sua própria descoberto, sigo tentando ver belezas nas coisas toscas. Beijo.