domingo, fevereiro 04, 2007

Um olhar sobre o abismo

A estrutura abismal – mise en abyme – nas artes plásticas, no cinema e na literatura
Por Eduardo Cesar Maia*

Uma obra dentro da obra, a ficção dentro da ficção: a célebre cena do drama shakespeariano em que Hamlet pede para que uma companhia teatral encene diante da corte o assassinato do seu pai, o rei Hamlet, a fim de desmascarar os culpados, observando a reação deles à peça, é um exemplo clássico e bastante citado de mise en abyme.

“Relato interno”, “duplicação interior”, “composição em abismo”, “construção em abismo”, “estrutura em abismo”, “narração em primeiro e segundo graus”. Todas essas denominações se referem, em português, a uma técnica narrativa, inspirada originalmente em procedimentos encontrados nas artes plásticas (pintura) e que, posteriormente e com as adaptações necessárias à especificidade de cada forma de arte, chegou à literatura e ao cinema. Tal técnica consiste em colocar uma história dentro da história, como um enclave – uma narração secundária que de algum modo se desenvolve a partir da ficção original.

No ano de 1891, o escritor e ensaísta francês André Gide utilizou e teorizou sobre o termo mise en abyme em seus Diários. Era a primeira vez que, em literatura, a nomenclatura era empregada – anteriormente tinha sido utilizada no estudo dos brasões (heráldica); o abyme (abismo) era uma reprodução em miniatura, no centro do escudo, da sua própria forma total, o que dava uma sensação de repetição infinita do mesmo. Os escritores do nouveau roman utilizaram com freqüência o procedimento, que se tornou quase uma marca do movimento.

Os jogos de espelhos dentro da narrativa, para o leitor ou espectador mais atento, permitem alternar os momentos de realidade da vida com os da realidade da obra de arte: uma recriação da experiência da vida real imiscuída à experiência criativa e estética. É importante ter em mente que o reflexo do fragmento incluído não possui sempre o mesmo grau de analogia com a obra que o inclui, variando de acordo com a interação que o artista quer estabelecer entre os níveis da narrativa.

Para Lucien Dällenbach, principal teórico deste conceito, mise en abyme é “todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a obra que o contém”, funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui. Autores como Shakespeare, Borges, Kafka ou o próprio Gide utilizaram essa estrutura para colocar em xeque o próprio conceito de ficção e, por conseguinte, a própria definição de real. Alguns estudiosos acreditam que essa forma metanarrativa gera uma sensação de maior ficção (como se o leitor fosse ainda mais atraído para o jogo da criação), porém, outros autores pensam que o recurso alerta o público-leitor para a “irrealidade” da trama.
Há, ainda hoje, muitas discussões sobre a utilização do termo mise en abyme. Não existe uma definição rigorosa para o termo e por isso muitas vezes ele é tomado de forma simplista e aplicado a qualquer forma metanarrativa: “quando a ficção vive na ficção”, na definição de Borges. Contudo, na acepção de Gide, é necessário que a estrutura em abismo guarde a característica de reflexividade, quer dizer, o fragmento colocado deve manter uma relação especular com original, refletindo por semelhança ou mesmo por contraste.

*Jornalista e editor da Continente Multicultural.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom esse texto!

Lu disse...

Ricardo, a Revista Continente sempre traz matérias interessantes. Vale conferir.
Abraços.