sexta-feira, setembro 14, 2007

Sala de Leitura (4): uma homenagem - antes tarde do que nunca

Os silêncios de Bergman e Antonioni
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Os dois grandes cineastas trabalharam, cada um a sua maneira, a simbologia do silêncio
Por Marcelo Costa*

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Durante as décadas de 50 e 60, notadamente, o cinema viu surgir uma geração de realizadores preocupados em mostrar, entender e até intervir no mundo ao seu redor, que passava por uma reestruturação radical em virtude do pós-guerra. Nesse contexto de destruição física e espiritual da Europa, surgiram grandes artistas, cujas obras lançaram a linguagem cinematográfica a patamares nunca antes vistos. Numa encruzilhada entre o destino e o acaso, dois dos últimos remanescentes dessa geração deram seu adeus silencioso no mesmo dia: Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleceram em 30 de julho.
Pouquíssimos cineastas deixaram uma filmografia tão valiosa e coerente quanto eles. Ambos se valeram da era sonora do cinema para cultuar, da forma mais íntima e minimalista, a angústia do silêncio numa época em que a reflexão, a busca por respostas ou mesmo a resignação pareciam nortear uma geração desamparada. Para o sueco Bergman, o silêncio é uma forma de imersão ou sublimação da alma humana, em meio a diálogos atormentados pela certeza da morte, por dúvidas em relação à existência e pela culpa que nos recai sobre os ombros. É o cavaleiro Antonius Blok em sua cruzada pelo sentido da vida, enquanto enfrenta a morte num duelo de xadrez no clássico O Sétimo Selo (1956); ou o idoso professor de medicina – interpretado por Victor Sjöstrom, referência do cinema mudo sueco – que, prestes a receber a última homenagem, se submete a um revisionismo existencial, em Morangos Silvestres (1957).

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Já em Antonioni, o silêncio é o símbolo da rarefação, do esvaziamento existencial e banalização do indivíduo que desconhece o porquê de sua ação, que busca algo, mesmo sem um sentido para a busca. Isso fica evidente em obras-primas de sua fase em cores como Blow-up – Depois Daquele Beijo (1966) e Profissão: Repórter (1975), nos quais os personagens se assemelham ao Mersault, de O Estrangeiro de Albert Camus. Se, em Bergman, os indivíduos contraem as vísceras para expor toda a fragilidade e falibilidade humana em diálogos cortantes, Antonioni vai se valer dos espaços vazios que se estabelecem entre seres humanos sem perspectivas para compor uma ode ao tédio e à melancolia. Seu primeiro sucesso foi A Aventura (1960), que inauguraria a célebre “trilogia da incomunicabilidade”, formada por A Noite (1961) e O Eclipse (1962). Marcados pela presença de sua musa Monica Vitti, os filmes revelam um olhar crítico e humano de uma burguesia imersa em desencontros, superficialidades e na angústia de uma vida banal. Também Deserto Vermelho (1964), seu primeiro filme em cores, trazia Vitti num espetáculo fotográfico sobre a incomunicabilidade e a solidão.
Um quarto vermelho com quatro mulheres taciturnas foi o ponto de partida de Bergman para compor Gritos e Sussurros (1975), um estudo sobre a morte e as relações humanas. Filho de um pastor luterano de ríspida educação religiosa com uma mãe fria e distante, fato retratado em Fanny e Alexander (1982), Bergman tem sua obra ressoada pela sua biografia, os relacionamentos vividos e os estudos em história da arte e teatro. A fragilidade da fé e do indivíduo, as marcas deixadas pelos cisalhamentos das relações humanas (Cenas de Um Casamento e Sonata de Outono), o desnudamento psicológico de seus personagens são recorrentes em sua obra, esteticamente marcada pela influência do expressionismo alemão, do cinema mudo sueco e do norueguês Carl Theodor Dreyer, em cujos filmes ecoam os conflitos do existencialismo cristão de Soren Kierkegaard. Os planos psicológicos, o jogo de luz e sombras e os closes eróticos nos rostos femininos, executados com maestria por Sven Nykvist, estão em Persona (1966). No filme, uma atriz de teatro emudece (Liv Ullmann) ao interpretar Electra, e a partir de sua relação com a enfermeira Alma (Bibi Andersson), Bergman disseca a fragilidade da identidade humana numa fusão de personalidades. Curiosamente, ambas as atrizes foram musas e esposas do cineasta.
A questão da identidade, ou da falta dela, também foi explorada por Antonioni. Em Profissão: Repórter, Jack Nicholson é o jornalista que assume a identidade de um traficante de armas na África, numa atmosfera que remete à vida e ao suicídio social do inquietante poeta Arthur Rimbaud. Com um desfecho memorável – plano seqüência de dez minutos – Antonioni traduz bem sua linguagem. Seus filmes seguem um ritmo lento, sob um tempo que se arrasta, oposto à velocidade e às associações projetivas do cinema hollywoodiano; incompatíveis com a vida. Mesmo em seu filme americano, Zabriskie Point (1970), Antonioni não conseguiu se aproximar do público, talvez pela lentidão, talvez pela ambigüidade, já demonstrada no desaparecimento não explicado de A Aventura ou em Blow Up. Parecia não se importar, afinal, queria pôr tudo pelos ares.
O próprio Bergman era admirador do desinteresse e do tom visionário de alguns filmes de Antonioni. Diferenças de visões de mundo e de estilos à parte, trata-se de dois pensadores que perpetuaram idéias e sensações através da arte. Seus nomes estão eternizados no museu do inconsciente coletivo do cinema. Entretanto, numa civilização fatigada de referências visuais, sonoras e culturais, não sabemos bem que tipo de visita suas obras irão receber nessa era “pós-moderna”, na qual o silêncio e a contemplação estão encobertos pelos ruídos, bips e as vozes da falta de comunicação entre os indivíduos.

*Marcelo Costa é jornalista.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caraca, esse texto me lembra muito um outro que li num blog...
Achei o link: paralersemolhar.blogspot.com/2007/08/silncio-e-silncio.html

Lu disse...

Cara Tina,

O texto do jornalista Marcelo Costa está publicado, na íntegra, na Revista Continente Multicultural, publicação que eu recomendo sem pestanejar.
Dei uma olhada no link que você deixou e, sim, há grande convergência porque tratam do mesmo tema que foi tão lindamente explorado pelos dois cineastas - o silêncio.
Prazer em recebê-la por aqui.