“Tenho a minha vida nas mãos, Abel. Recebe-a.
Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo,
é cheio de botões secretos
e de facas que à mínima imperícia ou distração
saltam voando e lanham a carne”.
Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo,
é cheio de botões secretos
e de facas que à mínima imperícia ou distração
saltam voando e lanham a carne”.

José Sobral Negreiros
Eu amo-o. Isso não altera a ordem do universo. Amo-o. E amá-lo é um ato solitário, independe de sua vontade, do seu querer. Amor – uma seta que flui de mim em sua direção e é da minha natureza fluir, lançar setas.
Ninguém, nada pode impedir o fluxo que jorro abundantemente. Nem mesmo você ou sua ausência são capazes de estancar o sangue, o calor das minhas veias. Pensar que essa mágica poderia ter sido desfeita pela sua partida dói no meu corpo até os ossos, mas se este fosse o seu desejo, eu abriria minhas asas em vôo raso, porque sou pássaro visionário, possuo a força de amar e eu quero do amor tudo: a doçura, os sobressaltos, a febre, o delírio, a calmaria.
Repito. Amo-o. E o amor em nosso tempo parece-me rarefeito, em vias de extinção, uma moeda atribuída de valor de troca. Será que só a palavra AMOR sobreviverá como um registro gráfico ou sonoro ou uma peça de museu? Um objeto de recordação? O que será de tudo, de todos quando finalmente nos arrancarem a força de amar, a alegria de amar, a cólera de amar? Restauremos, então, o amor e através de nós que ele perdure.
Iniciamos novamente o nosso percurso. Deitados lado a lado somos reconduzidos, em silêncio, ao Éden, através das estrelas e do vento. Somos os protagonistas de um paraíso transfigurado porque renascemos caídos, expulsos, logo, responsáveis e cientes da porção humana. Estamos novamente de mãos dadas e a sua figura avança, amplia-se sobre mim, rompendo os limites do corpo, habitando minha carne intemporal. Repousa nos meus rios sua cabeça e sorve o mel das minhas coxas.
Calo minha boca na sua, beijo mansamente seus ombros, nuca, costas. Contraio meu corpo sobre o dele. Ele retesa-se. Mordo sua orelha e sussurro, entre dentes, uma, duas, dez, mil vezes a palavra amor na intenção de resgatar o sentido, o nexo, o som, a música. Meus seios roçam sua pele e fazemos o encaixe que começa pelos poros e atravessa o nosso centro nevrálgico. Sua mão procura minha entrada, não bate à porta, devassa meu interior, demarcando caminhos: não quer perder-se.
Olha-me do umbral da minha passagem secreta que só responde à tua senha. Não quero outras digitais tateando minhas umidades. Reconhece-me tua e descansa tranqüilo na bainha que preparei para ti. Nela só há espaço para a tua espada, forjada pelo fogo sagrado da noite. Tua lava incendeia sem queimar...guardo-a em mim, em mim... em ti, em ti somente o amor completo.