Os silêncios de Bergman e Antonioni

Os dois grandes cineastas trabalharam, cada um a sua maneira, a simbologia do silêncio

Os dois grandes cineastas trabalharam, cada um a sua maneira, a simbologia do silêncio
Por Marcelo Costa*
Durante as décadas de 50 e 60, notadamente, o cinema viu surgir uma geração de realizadores preocupados em mostrar, entender e até intervir no mundo ao seu redor, que passava por uma reestruturação radical em virtude do pós-guerra. Nesse contexto de destruição física e espiritual da Europa, surgiram grandes artistas, cujas obras lançaram a linguagem cinematográfica a patamares nunca antes vistos. Numa encruzilhada entre o destino e o acaso, dois dos últimos remanescentes dessa geração deram seu adeus silencioso no mesmo dia: Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleceram em 30 de julho.
Pouquíssimos cineastas deixaram uma filmografia tão valiosa e coerente quanto eles. Ambos se valeram da era sonora do cinema para cultuar, da forma mais íntima e minimalista, a angústia do silêncio numa época em que a reflexão, a busca por respostas ou mesmo a resignação pareciam nortear uma geração desamparada. Para o sueco Bergman, o silêncio é uma forma de imersão ou sublimação da alma humana, em meio a diálogos atormentados pela certeza da morte, por dúvidas em relação à existência e pela culpa que nos recai sobre os ombros. É o cavaleiro Antonius Blok em sua cruzada pelo sentido da vida, enquanto enfrenta a morte num duelo de xadrez no clássico O Sétimo Selo (1956); ou o idoso professor de medicina – interpretado por Victor Sjöstrom, referência do cinema mudo sueco – que, prestes a receber a última homenagem, se submete a um revisionismo existencial, em Morangos Silvestres (1957).

Pouquíssimos cineastas deixaram uma filmografia tão valiosa e coerente quanto eles. Ambos se valeram da era sonora do cinema para cultuar, da forma mais íntima e minimalista, a angústia do silêncio numa época em que a reflexão, a busca por respostas ou mesmo a resignação pareciam nortear uma geração desamparada. Para o sueco Bergman, o silêncio é uma forma de imersão ou sublimação da alma humana, em meio a diálogos atormentados pela certeza da morte, por dúvidas em relação à existência e pela culpa que nos recai sobre os ombros. É o cavaleiro Antonius Blok em sua cruzada pelo sentido da vida, enquanto enfrenta a morte num duelo de xadrez no clássico O Sétimo Selo (1956); ou o idoso professor de medicina – interpretado por Victor Sjöstrom, referência do cinema mudo sueco – que, prestes a receber a última homenagem, se submete a um revisionismo existencial, em Morangos Silvestres (1957).

Já em Antonioni, o silêncio é o símbolo da rarefação, do esvaziamento existencial e banalização do indivíduo que desconhece o porquê de sua ação, que busca algo, mesmo sem um sentido para a busca. Isso fica evidente em obras-primas de sua fase em cores como Blow-up – Depois Daquele Beijo (1966) e Profissão: Repórter (1975), nos quais os personagens se assemelham ao Mersault, de O Estrangeiro de Albert Camus. Se, em Bergman, os indivíduos contraem as vísceras para expor toda a fragilidade e falibilidade humana em diálogos cortantes, Antonioni vai se valer dos espaços vazios que se estabelecem entre seres humanos sem perspectivas para compor uma ode ao tédio e à melancolia. Seu primeiro sucesso foi A Aventura (1960), que inauguraria a célebre “trilogia da incomunicabilidade”, formada por A Noite (1961) e O Eclipse (1962). Marcados pela presença de sua musa Monica Vitti, os filmes revelam um olhar crítico e humano de uma burguesia imersa em desencontros, superficialidades e na angústia de uma vida banal. Também Deserto Vermelho (1964), seu primeiro filme em cores, trazia Vitti num espetáculo fotográfico sobre a incomunicabilidade e a solidão.
Um quarto vermelho com quatro mulheres taciturnas foi o ponto de partida de Bergman para compor Gritos e Sussurros (1975), um estudo sobre a morte e as relações humanas. Filho de um pastor luterano de ríspida educação religiosa com uma mãe fria e distante, fato retratado em Fanny e Alexander (1982), Bergman tem sua obra ressoada pela sua biografia, os relacionamentos vividos e os estudos em história da arte e teatro. A fragilidade da fé e do indivíduo, as marcas deixadas pelos cisalhamentos das relações humanas (Cenas de Um Casamento e Sonata de Outono), o desnudamento psicológico de seus personagens são recorrentes em sua obra, esteticamente marcada pela influência do expressionismo alemão, do cinema mudo sueco e do norueguês Carl Theodor Dreyer, em cujos filmes ecoam os conflitos do existencialismo cristão de Soren Kierkegaard. Os planos psicológicos, o jogo de luz e sombras e os closes eróticos nos rostos femininos, executados com maestria por Sven Nykvist, estão em Persona (1966). No filme, uma atriz de teatro emudece (Liv Ullmann) ao interpretar Electra, e a partir de sua relação com a enfermeira Alma (Bibi Andersson), Bergman disseca a fragilidade da identidade humana numa fusão de personalidades. Curiosamente, ambas as atrizes foram musas e esposas do cineasta.
A questão da identidade, ou da falta dela, também foi explorada por Antonioni. Em Profissão: Repórter, Jack Nicholson é o jornalista que assume a identidade de um traficante de armas na África, numa atmosfera que remete à vida e ao suicídio social do inquietante poeta Arthur Rimbaud. Com um desfecho memorável – plano seqüência de dez minutos – Antonioni traduz bem sua linguagem. Seus filmes seguem um ritmo lento, sob um tempo que se arrasta, oposto à velocidade e às associações projetivas do cinema hollywoodiano; incompatíveis com a vida. Mesmo em seu filme americano, Zabriskie Point (1970), Antonioni não conseguiu se aproximar do público, talvez pela lentidão, talvez pela ambigüidade, já demonstrada no desaparecimento não explicado de A Aventura ou em Blow Up. Parecia não se importar, afinal, queria pôr tudo pelos ares.
O próprio Bergman era admirador do desinteresse e do tom visionário de alguns filmes de Antonioni. Diferenças de visões de mundo e de estilos à parte, trata-se de dois pensadores que perpetuaram idéias e sensações através da arte. Seus nomes estão eternizados no museu do inconsciente coletivo do cinema. Entretanto, numa civilização fatigada de referências visuais, sonoras e culturais, não sabemos bem que tipo de visita suas obras irão receber nessa era “pós-moderna”, na qual o silêncio e a contemplação estão encobertos pelos ruídos, bips e as vozes da falta de comunicação entre os indivíduos.
Um quarto vermelho com quatro mulheres taciturnas foi o ponto de partida de Bergman para compor Gritos e Sussurros (1975), um estudo sobre a morte e as relações humanas. Filho de um pastor luterano de ríspida educação religiosa com uma mãe fria e distante, fato retratado em Fanny e Alexander (1982), Bergman tem sua obra ressoada pela sua biografia, os relacionamentos vividos e os estudos em história da arte e teatro. A fragilidade da fé e do indivíduo, as marcas deixadas pelos cisalhamentos das relações humanas (Cenas de Um Casamento e Sonata de Outono), o desnudamento psicológico de seus personagens são recorrentes em sua obra, esteticamente marcada pela influência do expressionismo alemão, do cinema mudo sueco e do norueguês Carl Theodor Dreyer, em cujos filmes ecoam os conflitos do existencialismo cristão de Soren Kierkegaard. Os planos psicológicos, o jogo de luz e sombras e os closes eróticos nos rostos femininos, executados com maestria por Sven Nykvist, estão em Persona (1966). No filme, uma atriz de teatro emudece (Liv Ullmann) ao interpretar Electra, e a partir de sua relação com a enfermeira Alma (Bibi Andersson), Bergman disseca a fragilidade da identidade humana numa fusão de personalidades. Curiosamente, ambas as atrizes foram musas e esposas do cineasta.
A questão da identidade, ou da falta dela, também foi explorada por Antonioni. Em Profissão: Repórter, Jack Nicholson é o jornalista que assume a identidade de um traficante de armas na África, numa atmosfera que remete à vida e ao suicídio social do inquietante poeta Arthur Rimbaud. Com um desfecho memorável – plano seqüência de dez minutos – Antonioni traduz bem sua linguagem. Seus filmes seguem um ritmo lento, sob um tempo que se arrasta, oposto à velocidade e às associações projetivas do cinema hollywoodiano; incompatíveis com a vida. Mesmo em seu filme americano, Zabriskie Point (1970), Antonioni não conseguiu se aproximar do público, talvez pela lentidão, talvez pela ambigüidade, já demonstrada no desaparecimento não explicado de A Aventura ou em Blow Up. Parecia não se importar, afinal, queria pôr tudo pelos ares.
O próprio Bergman era admirador do desinteresse e do tom visionário de alguns filmes de Antonioni. Diferenças de visões de mundo e de estilos à parte, trata-se de dois pensadores que perpetuaram idéias e sensações através da arte. Seus nomes estão eternizados no museu do inconsciente coletivo do cinema. Entretanto, numa civilização fatigada de referências visuais, sonoras e culturais, não sabemos bem que tipo de visita suas obras irão receber nessa era “pós-moderna”, na qual o silêncio e a contemplação estão encobertos pelos ruídos, bips e as vozes da falta de comunicação entre os indivíduos.
*Marcelo Costa é jornalista.