Igreja Basílica Nosso Senhor do Bonfim.
NOITE FELIZ
(Adélia Prado)
Dói tanto que se pudesse diria:
me fere de lepra.
Mas que importa a Deus o monte de carne podre?
Tem piedade de mim, Vós, cujo filho duas vezes gritou,
apesar de ser Deus. Me dá um sonho.
É como se meu pai não me amasse
não tivesse dado a vida por mim.
Só belos versos, não.
Uma linha depois da outra,
tão finamente escritas,
com tão primoroso fecho –
e o que sinto é cansaço.
Basta a beleza própria
da estocada das coisas no meu peito.
Comer, sonhar, talvez morrer, quem sabe?
A morte existe, ô pai?
Sei que na Polônia católica
ninguém escreveu com estas mesmas palavras
na carrocinha de doces:
“para todos e sua família desejo um feliz natal”.
No Brasil, sim, na minha rua,
Usando uma língua pobre e uma caneta de cor,
alguém sentiu o inefável.
Não se perderá o fermento, ó comadre.
Bebem? Não pagam as contas?
- Vamos fazer um teatro...
Tem máscara do boi, do burro,
As vestes de José e Maria,
tem a roupa do homem que negou hospedagem
mas que veio depois, depois da estrela,
dos anjos, depois dos pobres pastores, e mais recebeu.
Porque não merecia.
Sou miserável.
Um monte de palha seca
É a obra de minhas mãos.
Tem piedade de mim,
Desce, orvalho do céu,
Desce sobre nós,
Restabelece o fio das conversas saudáveis.
Traze a fresca manhã.