sábado, outubro 13, 2007

Ele vai deixar muitas saudades...


Paulo Autran, o Senhor dos Palcos (1922-2007)

sexta-feira, outubro 05, 2007

Bravo! Bravíssimo!

Ela, a eloqüente Camila foi uma das dez finalistas do Concurso de Contos da Revista Bravo.
Parabéns, minha flor!

for ever:
* por Camila Magalhães Pereira Mendonça


!

ela vem tentando ler os mesmos livros de sempre. aqueles mal acabados. foi largando pela metade na prateleira. há muita dificuldade em encarar os fins.

tentou convencê-lo a instalar um ventilador de teto no quarto. fez ameaça de leve - aqui não trepo mais. credo cruz três vezes. coitada. tão falha. e mal se resolveu o papo, até que virou briga. agora estão emburrados. coisa chata de se ver.

mas se amam bonito. esse amor piegas dos apaixonados. amor-paixão. coisa de filme. coisa que ninguém acredita. tinha aquele papo de amigos. e toda a evolução homem e mulher que se sabe quando se trata de sexo sem sentimentos. mas tudo embola, tudo complica. ela sempre se envolve e não tem jeito.

andou ouvindo um cara australiano. mas não tem certeza. venezuelano? neo-hippie de barba coisa e tal. disse que era leve e fazia bem ao corpo. quando tocava no rádio ela fazia uns movimentos estranhos. coisa de yoga. uma acrobacia aeróbica disfarçando um efeito zen.

ele ficava parado no canto, encostado na parede, vendo ela deitada no tapete; porque na sala tinha o tal ventilador de teto. são casal de pouco, juntado a tempo curto. lua de mel ainda. pouca grana e muita alegria. apesar das brigas.

falta um ar condicionado. resolveria metade e meia das questões.

o calor estressa até a raiz, ela diz. a raiz dos pentelhos. e crescem loucos. tem alergia a gilete. mas depilar é um sofrimento sem fim. tem sempre a ditadura tortuosa da beleza. ser mulher não é uma tragédia, mas é um drama, ela bem sabe. e ele entende. porque é dos melhores homens do mundo. cabe aqui aquela pieguice inicial.

é quase dezembro. e não se esquece a trajetória desesperada desses dias abafados. mas desta vez vai. pensam num destilado. coisa bem gelada. para descer bacana. e vão agradecendo. quase ninguém acredita; há que se repetir. ele tem certeza dos mitos da predestinação. "maktub", diria aquele mago nojento na sua coluna diária do jornal. mas a gente sabe que não é bem assim. se era para ser, metade transpira a outra inspira. é sempre o esforço. é sempre o impulso de acreditar que vale firme.

ontem ela ligou para o ex, confirmando os seus caprichos particulares- olha, meu bem, você me superou. pronto e tchau. era um desabafo franco de meia palavra. bastou fundo. ele entendeu. mesmo naquele suspiro. é que o ex havia mandado um cartão para ela. desses cafonas de fim de ano. falava de amor, de ressentimento, de perdão e graça. foi dado o recado. e ela que estima tanto esses sutis discursos; respeitou. guardou na caixa de cartas. talvez ainda releia algumas vezes. para acreditar. remorso de quem perde. e reflexão de quem foi perdido. mas então já era. e foi. mas mesmo assim ela ligou. tinhosa. as últimas palavras são sempre dela.

o prédio onde moram tem os enfeites natalinos de sempre. o elevador da garagem permanece enguiçado. de praxe. sobem de escada, respirando fundo, passos largos. apesar da yoga, ela tem asma. voltou a roer as unhas, mas mantém a tal da paz de espírito - é muita concentração, diz.

colocou na varanda um bonsai, veio com uns papos orientais, um misticismo estranho. não cabia, claro. logo se esqueceu, mas ficou lá a árvore mini de apetrecho. o apartamento tem as cores dela. e ele até gosta. disse que ela deu vida, deu harmonia. aquela coisa toda.

a gente nunca sabe até quando vai. e se vai.

tinha sempre em mente um trecho de um livro que ele leu gaguejando no início do romance. era nervosismo. tinham acabado de transar. e ele disse que queria ler algo. estava emocionado ainda. gozo, declaração, olho no olho - é atestado; gozar de olhos abertos apaixona, ou dá início à; fato concreto - então começou a ler baixinho enfatizando as expressões portuguesas. era uma maneira de alfinetá-la, claro. lembrando seu passado lusitano. e ele morria de ciúmes do tal português. mas apesar da provocação ela gostou. achei bonito. o trecho era bom. se emocionei de leve. mas preferiu tomar banho em seguida. nada de emoções as claras, era só o começo.

ela tem mania de sair arrumando as coisas. levanta catando as roupas, jogando a sujeira no lixo. uma chata completa. adorável perfeccionista.

e a gente continua sem saber até onde vai. se vai.

já pôs o venezuelano para tocar. é venezuelano? diz que teve influência do caetano veloso. este ela odeia com força. mas ele comprou o cd. ele sabe que no fundo ela gostou de três, quatro músicas.

e lá foi ela deitar cheirando a vick. aqueles ritos que trouxe de casa. era coisa da mãe. seres humanos, mais freudianos do que podem assumir.

dormiam numa cama média. aquela entre solteiro e casal. dizem que é cama de viúva. de viúvo. é o que se tornaram depois de tantos relacionamentos desgastados, arruinados, fracassados. viúvos. agora é king size. amém desse jeito. sem aliança. sem burocracia religiosa. mas ela disse que quer assinar papelada no cartório. nada de mudar nome. só uma coisa mulherzinha. ele acha desnecessário. mas se é por ela - e é por nós, ele também sente, sensível- disse que sim repetidas vezes para ela saber valia.

mas é fim de ano. há que se lembrar. e ela não gosta de fins, se sabe. retornou aos livros de sempre. faz calor. a pressão não tolera esses dias. é quase inferno astral, viu um astrólogo dizendo na tv. não acredita. mas tem lá suas tensões propícias ao período. ter fé. ver coragem no amor. isso já foi frase de música.

dessa vez eles se salvam.

sexta-feira, setembro 14, 2007

Sala de Leitura (4): uma homenagem - antes tarde do que nunca

Os silêncios de Bergman e Antonioni
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Os dois grandes cineastas trabalharam, cada um a sua maneira, a simbologia do silêncio
Por Marcelo Costa*

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Durante as décadas de 50 e 60, notadamente, o cinema viu surgir uma geração de realizadores preocupados em mostrar, entender e até intervir no mundo ao seu redor, que passava por uma reestruturação radical em virtude do pós-guerra. Nesse contexto de destruição física e espiritual da Europa, surgiram grandes artistas, cujas obras lançaram a linguagem cinematográfica a patamares nunca antes vistos. Numa encruzilhada entre o destino e o acaso, dois dos últimos remanescentes dessa geração deram seu adeus silencioso no mesmo dia: Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleceram em 30 de julho.
Pouquíssimos cineastas deixaram uma filmografia tão valiosa e coerente quanto eles. Ambos se valeram da era sonora do cinema para cultuar, da forma mais íntima e minimalista, a angústia do silêncio numa época em que a reflexão, a busca por respostas ou mesmo a resignação pareciam nortear uma geração desamparada. Para o sueco Bergman, o silêncio é uma forma de imersão ou sublimação da alma humana, em meio a diálogos atormentados pela certeza da morte, por dúvidas em relação à existência e pela culpa que nos recai sobre os ombros. É o cavaleiro Antonius Blok em sua cruzada pelo sentido da vida, enquanto enfrenta a morte num duelo de xadrez no clássico O Sétimo Selo (1956); ou o idoso professor de medicina – interpretado por Victor Sjöstrom, referência do cinema mudo sueco – que, prestes a receber a última homenagem, se submete a um revisionismo existencial, em Morangos Silvestres (1957).

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Já em Antonioni, o silêncio é o símbolo da rarefação, do esvaziamento existencial e banalização do indivíduo que desconhece o porquê de sua ação, que busca algo, mesmo sem um sentido para a busca. Isso fica evidente em obras-primas de sua fase em cores como Blow-up – Depois Daquele Beijo (1966) e Profissão: Repórter (1975), nos quais os personagens se assemelham ao Mersault, de O Estrangeiro de Albert Camus. Se, em Bergman, os indivíduos contraem as vísceras para expor toda a fragilidade e falibilidade humana em diálogos cortantes, Antonioni vai se valer dos espaços vazios que se estabelecem entre seres humanos sem perspectivas para compor uma ode ao tédio e à melancolia. Seu primeiro sucesso foi A Aventura (1960), que inauguraria a célebre “trilogia da incomunicabilidade”, formada por A Noite (1961) e O Eclipse (1962). Marcados pela presença de sua musa Monica Vitti, os filmes revelam um olhar crítico e humano de uma burguesia imersa em desencontros, superficialidades e na angústia de uma vida banal. Também Deserto Vermelho (1964), seu primeiro filme em cores, trazia Vitti num espetáculo fotográfico sobre a incomunicabilidade e a solidão.
Um quarto vermelho com quatro mulheres taciturnas foi o ponto de partida de Bergman para compor Gritos e Sussurros (1975), um estudo sobre a morte e as relações humanas. Filho de um pastor luterano de ríspida educação religiosa com uma mãe fria e distante, fato retratado em Fanny e Alexander (1982), Bergman tem sua obra ressoada pela sua biografia, os relacionamentos vividos e os estudos em história da arte e teatro. A fragilidade da fé e do indivíduo, as marcas deixadas pelos cisalhamentos das relações humanas (Cenas de Um Casamento e Sonata de Outono), o desnudamento psicológico de seus personagens são recorrentes em sua obra, esteticamente marcada pela influência do expressionismo alemão, do cinema mudo sueco e do norueguês Carl Theodor Dreyer, em cujos filmes ecoam os conflitos do existencialismo cristão de Soren Kierkegaard. Os planos psicológicos, o jogo de luz e sombras e os closes eróticos nos rostos femininos, executados com maestria por Sven Nykvist, estão em Persona (1966). No filme, uma atriz de teatro emudece (Liv Ullmann) ao interpretar Electra, e a partir de sua relação com a enfermeira Alma (Bibi Andersson), Bergman disseca a fragilidade da identidade humana numa fusão de personalidades. Curiosamente, ambas as atrizes foram musas e esposas do cineasta.
A questão da identidade, ou da falta dela, também foi explorada por Antonioni. Em Profissão: Repórter, Jack Nicholson é o jornalista que assume a identidade de um traficante de armas na África, numa atmosfera que remete à vida e ao suicídio social do inquietante poeta Arthur Rimbaud. Com um desfecho memorável – plano seqüência de dez minutos – Antonioni traduz bem sua linguagem. Seus filmes seguem um ritmo lento, sob um tempo que se arrasta, oposto à velocidade e às associações projetivas do cinema hollywoodiano; incompatíveis com a vida. Mesmo em seu filme americano, Zabriskie Point (1970), Antonioni não conseguiu se aproximar do público, talvez pela lentidão, talvez pela ambigüidade, já demonstrada no desaparecimento não explicado de A Aventura ou em Blow Up. Parecia não se importar, afinal, queria pôr tudo pelos ares.
O próprio Bergman era admirador do desinteresse e do tom visionário de alguns filmes de Antonioni. Diferenças de visões de mundo e de estilos à parte, trata-se de dois pensadores que perpetuaram idéias e sensações através da arte. Seus nomes estão eternizados no museu do inconsciente coletivo do cinema. Entretanto, numa civilização fatigada de referências visuais, sonoras e culturais, não sabemos bem que tipo de visita suas obras irão receber nessa era “pós-moderna”, na qual o silêncio e a contemplação estão encobertos pelos ruídos, bips e as vozes da falta de comunicação entre os indivíduos.

*Marcelo Costa é jornalista.

quinta-feira, setembro 06, 2007

“... é da palavra que nascem todas as idéias do Homem – no princípio era o Verbo – e, como já afirmei antes, a palavra é o átomo da alma. E a última razão é que em português, a palavra tem o dom mágico de conter nela mesma – por linda coincidência e sem qualquer implicação semântica – a matéria-prima e seu instrumento. Somente com a palavra pode-se mover a palavra, tirar dela a sua essência, tocar o próprio coração da palavra; já que ela é lavra, já que ela é pá”.
Ziraldo

I - A OBRA COSTURADA POR FORA (OU A CICATRIZ DO MUNDO).

O conjunto da obra da escritora Clarice Lispector sempre foi muito criticado por apresentar estórias e personagens etéreos e esfumaçados, com pouca clareza e difícil apreensão. A autora foi rotulada de intimista e pouco comprometida com questões sociais, ou dizendo de uma outra forma, Clarice era uma escritora não engajada.
Dessa forma, então, Clarice Lispector se lançou ao desafio de responder à crítica, ou pelo menos tentar. Quis provar que sabia (mas, por opção, não desejava) fazer diferente.
A resposta para tal embate se concretizou em A hora da estrela, essa obra avassaladora: contundente e explícita e ao mesmo tempo fluida e velada. Ponto para a crítica, ponto para Clarice.
Como A hora da estrela é uma obra grávida de idéias e de elementos para reflexão e análise, pode-se constatar inúmeros aspectos por ela abordados: o papel do intelectual na sociedade; a indigência do povo brasileiro representado na figura de Macabéa; a reflexão sobre a condição da mulher; a discussão sobre o exercício da linguagem/fala como forma de legitimar o discurso competente bem como da apropriação do ato de escrever e de dar/ter voz.
Ler tal obra é ser, de alguma forma, violentamente lançado nesse universo inquietante e questionador, diria mesmo que é impossível não se sentir tentado a tecer comentários sobre esses temas. Ao nos depararmos com tal quadro, desponta uma necessidade urgente, uma quase obrigação de elaborarmos algumas respostas nem que seja para nós mesmos, para não sentirmos o incômodo de parecer, em absoluto, com a personagem. Surge uma vontade de agir, como se pudéssemos gritar (e sermos ouvidos!) em bom e alto som: Reage Macabéa! Fala alguma coisa!
Mas é claro que não é tão fácil assim!!
Ter a consciência do poder da palavra é viver em suspense, porque essa consciência nos diz a todo o momento que ela é fonte de liberdade tanto quanto o é de opressão. Todo aquele que domina o instrumental técnico da linguagem e com ele constrói representações acerca do mundo, faz parte de uma pequena elite que ocupa espaço privilegiado na sociedade, posicionando-se como agente transformador do discurso, decidindo o que deve ser dito bem como seu lugar na escala de importância e competência.
Dessa forma, aquele que tem voz usufrui a liberdade de construir os símbolos e celebrar seus valores. Por outro lado, o fato se de fazer parte do grupo que domina o discurso, necessariamente confirma o seu oposto: a existência dos excluídos, dos marginais, dos impossibilitados de se fazerem representar. Os detentores do discurso “legítimo” estão sempre lembrando a esses outros de que não possuem nem espaço nem voz, logo estão condenados a não compartilhar e celebrar o código dessa minoria. De alguma forma usurpam e aviltam o ser, retirando-lhe a voz e o direito de participar efetivamente dos ritos sociais.
Levando em consideração o texto de J. Carey[1] sobre o papel dos intelectuais na sociedade, é possível observar o estreito diálogo que estabelece com o livro em questão.
Carey nos fala da resistência dos intelectuais em aceitar a presença da massa quer como consumidora de informação, formadora de uma opinião ou (pior!) produtora da cultura formal.
É possível traçar um paralelo entre a posição reivindicada pelos intelectuais representantes do movimento modernista europeu citado no texto de John Carey com os filósofos da Antigüidade, os intelectuais se assemelhariam aos escolhidos, os seres superiores que regeriam a sociedade bem ao modelo desenvolvido por Platão, n’A República[2], para dividir a sociedade grega em grupos segundo a função social que viriam a desempenhar. É a conhecida lei dos três estágios da alma.
As Almas de Bronze formavam os exércitos por estarem mais ligadas às aptidões físicas; as Almas de Prata compunham o setor mercantil e artesanal, provendo os bens necessários para a subsistência; e por fim as Almas de Ouro - aquelas poucas que ocupariam cargos públicos estratégicos ou então formariam a casta dos filósofos, “os escolhidos” pelo seu aprimorado intelecto e aptidão de trabalhar com a palavra, ou dizendo de outro modo, as Almas de Ouro eram as detentoras do discurso dominante, logo, da representação.
As Almas de Bronze morriam como tal, e assim por diante, não havendo a possibilidade de ‘invasão’ na competência dos outros e, mais importante, não ameaçando o status do sábio e propagador da cultura formal.
Carey vai mostrando, ao longo do seu texto, o comportamento desses intelectuais (não tão distante do modelo idealizado por Platão) diante da crescente transformação social: crescimento demográfico, o advento da imprensa escrita, a política de alfabetização, etc. Vendo-se impossibilitados de brecar o processo histórico, criaram um mecanismo poderoso, desenvolveram um código de escrita bastante elaborado como forma de excluir a massa e continuar lhe negando direito à voz, permitindo que a elite intelectual permanecesse dominando o discurso.
Ora, não é essa a estória da nossa heroína trágica, de Macabéa?
Hoje, já é possível aceitar o fato (ou a desculpa) de que a indigência seja pelo menos representada na literatura, mas também é sintomático que num plano de análise (que chamarei de material) essa indigência seja ironicamente representada por uma personagem como Macabéa, tão frágil, de "corpo cariado" e sem voz ou pelo menos inconsciente da sua existência.
Por mais vida, por mais sentimentos profundos e complexos que Clarice tenha dotado sua obra e sua Macabéa – mulher, feia, nordestina, semi-alfabetizada –, sua percepção e apreensão só é possível por um leitor com características opostas às da personagem. (Que contradição! Um livro escrito sobre a massa, mais especificamente sobre o povo brasileiro, “só pode ser lido [3]” pela mesma elite que dela fala!).
Se Clarice já é inerentemente uma escritora de difícil leitura e compreensão, em A hora da estrela, o universo humano ficou ainda mais particularizado, ou seja, voltado para uma elite detentora de bens simbólicos refinados o suficiente para adentrar em tão densas questões. Falando mais claramente: a massa está presente na obra com todas as implicações e ambigüidades possíveis. Mais do que isso, a massa, protagonizada por Macabéa, é elemento primordial no livro, contudo ela não tem acesso a ele e, mais importante, não foi escrito por alguém que a represente.
Recuperando o ponto onde disse haver distintos planos de análise da obra, um que chamo material e um outro de existencial, quero desde já esclarecer que são duas faces de uma mesma moeda. Esses planos formam uma díade inseparável, mas para efeito de visualização e entendimento, creio ser legítimo fazer esse recorte.
À primeira vista, é possível apontar um plano material de análise. Diria que é aquele explicitado pelo narrador-personagem, aquele que salta aos olhos, tamanha a crueza com que delineia as características de Macabéa: ela é feia, frágil, vaga, vazia, desinteressante, sem voz e “incompetente para a vida”. Não tem opinião, vive exposta ao que o acaso lhe revela e o que revela é inconteste.
A começar pelo próprio nome. MACABÉA comporta todas as implicações da ambigüidade e do paradoxo dos planos de análise. Macabéa é o feminino de macabeu. Macabeus[4] é também um livro (subdividido em duas partes) do Antigo Testamento que conta a estória do cativeiro e libertação dos judeus depois do domínio de Alexandre Magno da Macedônia. Após uma fase de gozo de liberdade religiosa, os hebreus caíram sob o jugo dos reis da Síria. Antíoco IV acentuou a luta contra os judeus quando impôs aos mesmos o helenismo como prática religiosa e punindo com pena de morte a prática da religião judaica. Alguns judeus preferiam a morte ao abandono da sua fé. Posteriormente, num movimento de resistência, foram chefiados primeiro pelo sacerdote Matatias e depois pelos macabeus: Judas, Jônatas e Simão.
Assim como os macabeus foram obrigados a se submeter a uma imposição tirana, cerceadora da liberdade religiosa, também a nossa heroína se viu obrigada a sobreviver num mundo opressor que limita sua própria liberdade de existir.
E o que tudo isso quer dizer? Macabéa traz em si mesma o germe da contradição: encontra-se encarcerada pela sua própria inadaptação à sociedade de valores capitalistas (plano material) ao mesmo tempo em que tudo explicitamente negativo que possui representa a liberdade plena do mundo a ser vivido (plano existencial).
O corpo, a fragilidade da heroína sem voz é o cativeiro que a aprisiona, gritando muito alto para o mundo que ela é incapaz de reproduzir o sistema no qual está imersa. Em tal mundo ela não se encaixa, tanto que no fim ela morre (talvez como aqueles macabeus que preferiam a espada a negar suas crenças). A sociedade alardeia: Macabéa, não existe lugar para você nesse mundo! Em contrapartida, sua liberdade, sua redenção se localiza num outro plano: o da afetividade. A sua incompetência para viver (os valores pequeno-burgueses) é refletida na sua incompetência para enganar, ambicionar ou ferir o outro. Apesar de ser (aparentemente) vazia e estúpida, Macabéa, à la Sartre, dialoga exaustivamente consigo mesma, se confronta, questiona a si e a tudo o tempo todo quando duvida das coisas. E se há algo que a ‘velha Maca’ possui são dúvidas: não tem certeza de quem é, do que faz, da dor e do amor que sente.
Será coincidência que a construção dessa personagem apática abrigue em si mesma a desgraça e a força do poder de resistência de um povo?

II - A OBRA COSTURADA POR DENTRO (OU A OBRA POR ELA MESMA).

Notemos que as interpretações e correspondências estabelecidas entre a obra e a lógica do tempo e do espaço do mundo ‘real’ (contemporaneidade), podem também ser feitas nos limites do próprio livro que nesse sentido é atemporal, porque levanta questões de ordem internas (diálogo de si sobre si mesmo), como as questões de estética, de estilo, de linguagem e da própria relevância da obra como tal.
Por exemplo, impossível deixar de perceber o diálogo e os paralelismos que se estabelecem entre Clarice Lispector e Machado de Assis, no que diz respeito ao estilo.
O primeiro ponto que salta aos olhos é a questão da onisciência/onipresença do autor/narrador/personagem com os narradores de Machado. Rodrigo S.M. possui a virulência e a sutileza nas/das palavras e reflexões sobre o destino da personagem. Assim como os narradores de Machado, ele não se restringe a narrar fatos. Na verdade, ele está tão entrelaçado na vida da heroína que por vezes fica difícil reconhecer de quem são os sentimentos e impressões do mundo e das coisas. Na instância humana do romance, ele conhece tão bem sua personagem que chegam a se confundir, são antípodas de uma mesma relação.
Ao mesmo tempo, (numa outra instância que reconhecemos enquanto exercício da linguagem) demarca o abismo que se estende entre os dois. Ele é o detentor da fala, do discurso. Várias vezes se gaba do estilo metalingüístico e do domínio do seu instrumento de trabalho – a palavra!
Um segundo ponto é a prevalência da análise psicológica (rica nas obras de Machado) que ganha grande destaque como questionadora do ser humano e do seu papel social, da relação metafísica entre o Deus criador e a Existência tal como se apresenta: o intelectual tem esse caráter divino de criar vida, inventar um mundo próprio, agindo como um Deus no seu Universo literário. Essas inquietações são sentidas através de Clarice, Deus-mor da obra; de Rodrigo, “co-criador” de Macabéa e de sua condição (melhor seria dizer sua não-condição); e da própria Macabéa, que é incapaz de inventar um mundo próprio porque desconhece que possa fazê-lo.
O terceiro ponto é o jogo que a autora faz com o conto “A cartomante[5]”, usando exatamente os mesmos elementos contidos neste, ou seja, apresentando uma saída externa à personagem e sua trajetória frente à impossibilidade deles próprios darem uma resposta a suas angústias.
Macabéa não tem alternativas no espaço no qual está imersa e, quando surge a oportunidade de reação, ela é falseada porque não é uma ação provocada pela consciência da sua situação no mundo, qualquer que seja o plano de análise, mas induzida por uma ação salvacionista externa e superior que está além da realidade vivida.
Não podemos esquecer as pitadas de ironia com que a autora dá cor ao quadro e faz as ligações entre as duas realidades: a da ficção e da não-ficção. Clarice ‘brinca’ metafórica e simultaneamente, com os valores do universo literário e os da sociedade capitalista de consumo.
A saída apontada pela cartomante de Clarice está no encontro de um amor específico e preconceituosamente estereotipado, aceito como modelo de sucesso dentro da sociedade. A salvação de Macabéa se dá pela mão de um belo homem louro, rico e estrangeiro. Sintomático que nossa heroína seja pobre, esteticamente desinteressante e nordestina e que sua ascensão social (material) e humana (existencial) só possa se concretizar à margem do processo de tomada de consciência, da SUA consciência. Mais uma vez é marcada a incompetência de Macabéa para superar suas debilidades por ela mesma.
No fim, vence o sistema de valores capitalistas. Não há qualquer redenção para ela. Ao mesmo tempo em que seu autor/escritor (Rodrigo/Clarice) se embriaga e se confunde na existência de Macabéa, dela se diferencia enquanto ator, agente da transformação social (ele é o intelectual) quando - apesar de toda a coincidência do oco de suas vidas - ele continua a existir e tendo lugar no mundo, continua sendo aceito, continua comendo morangos. . .

[1] CAREY, J. “A rebelião das massas” in Os Intelectuais e as Massas – orgulho e preconceito entre a intelligentsia literária, 1880-1939. São Paulo: Ars Poetica, 1993.
[2] É preciso deixar claro que o princípio de seleção das almas obedece ao critério de igualdade de oportunidades. Todos os cidadãos receberiam uma mesma orientação até o teste. Os reprovados nessa primeira etapa, consequentemente paravam de receber qualquer instrução, constituindo o exército - as almas de bronze. Os aprovados prosseguiam nos estudos até o novo teste. Os reprovados formariam um segundo estamento social e os aprovados recebiam como prêmio a especialização nos estudos, logo, constituindo a elite do saber, as almas de ouro.
[3] Cabe aqui uma ressalva: quando digo que este livro só “pode ser lido por uma...” não está aqui contido qualquer espécie de preconceito. É claro que não existe um público apto para ler especificamente Clarice, João Cabral, Machado ou qualquer outro escritor. A diferença que estabeleço é de que há algumas especificidades concretas exigidas para esta leitura da obra que certamente a massa destituída de voz não consegue alcançar, pois – parafraseando Bourdieu – não tem a apropriação dos instrumentos de capital simbólico ou está fora deste determinado campo científico. Ou ainda em outras palavras, os representantes da massa não podem ser seus próprios críticos, pois não alcançam os códigos do campo literário. E isso nada tem a ver com a sensibilidade de cada leitor em relação a uma obra ou autor.Ver BOURDIEU, P. “A produção e a reprodução da língua legítima” in A Economia das Trocas Lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996 e “O campo científico” in A Economia das Trocas Simbólicas.
[4] “I e II Livro dos Macabeus” in Bíblia Sagrada. Ed. Paulinas. p.1110-74.
[5] Machado de Assis. “A Cartomante” in Contos. Ed. Ática.

sábado, agosto 11, 2007

O diário de G.H (9)

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A Ressureição de Lázaro. Pennacchi, Fulvio
Lazarus Heart

Lázaro. Foi esta a palavra que ela grafou em alto relevo sobre minha pele, como o arranhão de uma fera. O nome queimava na minha superfície, era um braseiro vivo, um vulcão cuspindo lavas. Não importava o que ou o quanto fizesse, nada aplacaria a ardência.
Foi então que os sonhos começaram a visitar-me todas as noites, assiduamente. Eles contavam-me sobre ela de maneira enigmática e fragmentada. Era um jogo, um puzzle.
Depois os sonhos cessaram e a ardência cedeu, a pele cicatrizou e de repente uma nova descamação. A pele ressequida foi saindo e mais uma vez surgiram os olhos súplices. Eles revelaram o segredo da palavra.
Disse-me que vivia em mim já há algum tempo. Seu embrião, latente, esperava pelo momento certo de fazer-se presente. E exatamente no seu aniversário de um ano, ela abriu os olhos pela primeira vez, esticou pernas e braços procurando ajustar-se à minha forma.
Como Lázaro, ela ressuscitou.
A quantos fora dada uma segunda chance? Uma nova vida? Nascer e nascer?
Esqueceram apenas de me perguntar se eu queria, se eu estava disposta a ter dois corações a bater e, conseqüentemente, a se dilacerarem.

terça-feira, julho 31, 2007

Sala de leitura (3): para não esquecer

Que país é este?

Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, tem edição comemorativa de 25 anos, com "bônus" como o Diário de Trabalho do autor sobre seu processo criativo

Por Luiz Carlos Monteiro*


O sentido alegórico do totalitarismo de um mundo desertificado, massificado e alienado faz-se presente nas páginas de Não Verás País Nenhum, romance de Ignácio Loyola Brandão que recebe agora uma edição comemorativa, a vigésima-quinta, 25 anos após a primeira. Publicado em 1981, provavelmente foi concebido durante a década de 1970 e traz assim a marca das duas décadas, além de atender a uma inclinação futurística revelada ao longo dos anos posteriores, culminando nos nossos dias com as discussões recentes sobre as conseqüências mais destrutivas e urgentes do aquecimento global. Reafirma então a denúncia do colapso ambiental, com a escassez de água e a morte indiscriminada do verde de árvores e plantas. E, mais ainda, a luta do sujeito contra o Esquema que a tudo uniformiza e que dimensiona a vida nos moldes da repetição, da rotina e da banalização. Não se pode deixar de lembrar o 1984 de George Orwell, livro familiar e indispensável a todos que de algum modo esperaram pelo cumprimento das suas proféticas colocações a respeito da grande opressão que se abateu sobre os indivíduos a partir das primeiras décadas do século passado, com a ascensão indiscriminada do capital ou, nos grupos stalinistas, a defesa ideológica de um regime de terror e de imponderáveis e indesejadas intervenções, em detrimento dos valores e atributos mais caros ao homem. Nos regimes duros e massificados não se admitem coisas como a liberdade de mover-se interna ou externamente no país em que se vive, sem permissão prévia. Assim como não se tolera a convivência de pessoas em grupos sociais com o intuito de desenvolver idéias próprias e coletivas, além de intentar perfazer escolhas que incidam sobre o trabalho e o lazer, pois ali prevalece “a vida metodizada, racionalizada”. Souza representa o indivíduo comum que se rebela – ensinou História, trabalhou na burocracia e, sem ser avisado, foi aposentado compulsoriamente. Por não se curvar às inumeráveis regras do Esquema, sofreu retaliações, torturas e castigos, até perder tudo, inclusive a mulher, Adelaide, de longa e calada convivência. No Diário de Trabalho, da época em que estava coletando material para o texto, e que acompanha esta nova edição, Loyola esclarece que tudo se iniciou com o seu próprio conto “O Homem do Furo na Mão”, de 1972, que virou também um volume de contos em 1987. O título do conto já consiste em apontar a “diferença” que estabelecerá, em conseqüência, a “outridade” do personagem – pela consciência radical sugerida e em relativa atividade que ele, Souza, detém no romance –, e o desempenho acanhado, medroso e passivo de muitos outros seres da mesma sina com quem trava relações. Texto inaugural que funciona, portanto, como o embrião de Não Verás País Nenhum, fornecendo a idéia central e o esteio inicial para a elaboração progressiva das peripécias e revolta do protagonista no decurso de seu simulacro de vida, paixão e desrazão no romance. Não Verás País Nenhum é o que se poderia chamar de um clássico da literatura contemporânea brasileira. E, como a maioria dos clássicos, tende a cristalizar-se numa forma ou, por outra, na contextualização de uma época. Loyola Brandão, que estreou com os contos de Depois do Sol (1965), escreveu romances social e expressivamente demolidores como Zero (1975) e insidiosamente autobiográficos como Dentes ao Sol (1976). Teve adaptações de livros seus para o cinema e o teatro. É de uma geração que estampa nomes de importância óbvia – Rubem Fonseca, Raduan Nassar, Affonso Romano de Sant'Anna, Moacir Scliar ou, entre os mortos, um Roberto Drumond, um João Antônio. No entanto, ele sempre construiu um caminho ficcional solitário e independente, sem se esquivar de interagir com outros artistas e escritores. No caso deste livro, que não perde o sabor premonitório que o estigmatizou, o papel de denúncia e conscientização visava à maioria, a parte de quem sofreu a opressão, o medo e o terror. E nisto consiste algo da persistência político-ideológica que carrega, pois a sociedade brasileira ainda continua a se embater nos termos de uma ética política fragilizada, de uma proposta sócio-ambiental pífia e do combate incipiente às manifestações da violência, da corrupção e do assalto aos bens públicos.


* crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.

domingo, junho 17, 2007

Onde falta memória, sobra imaginação.

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Fonte: Revista Caros Amigos


Estou feliz de poder testemunhar o aniversário de 80 anos de Ariano Suassuna. Não é sempre que podemos celebrar ainda em vida uma referência que admiramos.
Sim, ele vive "lúcido" e "louco" no Recife. Ele inscreve na história da nossa literatura sua assinatura peculiar e poderosa. É, sem dúvida nenhuma, nosso cancioneiro popular. Obteve êxito na sua busca por uma estética genuinamente nacional com a brasilidade de nossa diversidade.
Ariano trabalha há mais de meio século por uma linguagem de unidade profunda, com raízes míticas, diria mesmo demiúrgicas. Sua obra caminha para uma cosmogonia, unindo teatro, poesia e romance. Soube como pouco pincelar sua ficção com notas biográficas que lhe marcaram a história pessoal e transformou-o em quem ele é.
Lembro, há alguns anos atrás, com muito entusiasmo e emoção de quando falou sobre O Romance da Pedra do Reino, esse que segundo o próprio Suassuna, é o grande romance representativo de sua literatura. Lembro de sua voz trêmula dizendo do medo que sentia de morrer, porque ele achava que não poderia terminar sua jornada antes de concluir a Pedra do Reino e agora que percebia que ela estava definitivamente escrita, talvez o sentido de sua vida tivesse chegado ao fim.
Para nossa felicidade - a minha em particular - sua vida está longe de perder o sentido. Ariano é ainda um jovem, tem grande fome de escrever e prazer em ministrar suas aulas, mesmo que este não seja mais o seu ofício... se é que quem tem compromisso com a cultura algum dia deixe de ter o ensino como ofício.
Ariano inspirou, na década de 70, o Movimento Armorial que tinha por objetivo valorizar a cultura popular do nordeste brasileiro e estava interessado na pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema. São também importantes para o Movimento Armorial, os espetáculos populares do Nordeste, encenados ao ar livre, com personagens míticas, cantos, roupagens principescas feitas a partir de farrapos, músicas, animais misteriosos como o boi e o cavalo-marinho do bumba-meu-boi.O mamulengo ou teatro de bonecos nordestino também é uma fonte de inspiração para o Movimento, que procura além da dramaturgia, um modo brasileiro de encenação e representação.

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos "folhetos" do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus "cantares", e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.
Ariano Suassuna, Jornal da Semana, Recife, 20 maio 1975.

Acho que não é muito devaneio de minha parte dizer que a Pedra do Reino está para Ariano assim como D. Quixote está para Cervantes. A Pedra do Reino é a epopéia brasileira, o romance de cavalaria nordestino e Pedro Quaderna nosso mito Sebastianístico:

Aqui morava um rei

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

sábado, junho 09, 2007

As matriarcas (9)

Semana Santa na cidade do interior é um acontecimento. Tudo se volta para o evento, todos se agitam para que não haja falhas.
A fé se evidencia, as pessoas tornam-se mais solidárias, a cidade ferve. Todos colaboram de alguma forma.
As crianças enfeitam as ruas com bandeirolas coloridas. Ficamos dias recortando papéis e enfileirando-os em barbantes muito compridos, depois cruzamos as ruas desenhando os caminhos da procissão do Senhor Morto.
Antes da grande festa, acontecem novenas e via-sacra. As pessoas reúnem-se nas casas com muita reza e cantoria. As salas ficam lotadas, com gente sentada até no chão. No começo, a concentração é grande, mas passada a primeira meia hora, as crianças tornam-se inquietas como se estivessem sentadas sobre formigueiros, os mais velhos adormecem e a cada instante são acordados aos cutucões.
Lá em casa é sempre uma comédia. Vovó Totonha puxa a reza. Vovô, nas poucas ocasiões em que me recordo de sua presença, dorme e quando começa a roncar, vovó belisca seu braço, o que faz com que desperte assustado. Tia Margarida, mamãe e eu não agüentamos a cena e damos muita risada. Os olhos da vovó e da bisa faíscam e rapidamente fazemos cara de sérias.
O que compensa os mais de sessenta minutos de castigo é certamente o lanche. Sempre tem comidas deliciosas ao término das novenas. Que Deus me perdoe, mas acho – com raras exceções – que aquele povaréu só aparece para comer.
Estava tudo pronto para a procissão da quarta-feira de cinzas. Eu jamais me esquecerei disso enquanto eu viver.
Tia Margarida caiu doente com uma gripe forte e por isso não participaria. Ela estava visivelmente chateada porque não poderia fazer o papel de Verônica. Foi preciso que vovó lhe desse um calmante. Somente depois que ela adormeceu é que saímos para a rua.
Tudo ia bem, mas de repente o céu ficou fechado, muito cinza e uma chuva torrencial começou a cair. Foi bem na hora em que Verônica enxugaria a face de Jesus.
Lá no fim da rua, um vulto todo vestido de branco vinha gritando: era Tia Margarida. Ela vestia sua camisola de linho e trazia um lençol nas mãos. Aproximou-se de “Jesus” e começou a enxugar seu rosto.
Vovó Totonha ficou paralisada.
A chuva molhou a camisola de tia Margarida e todos podiam ver seus seios.
Do mesmo jeito que chegou, ela foi embora: correndo e gritando.
Saímos atrás dela e quando chegamos à casa, ela estava no quintal, dançando e cantando em êxtase, num transe total.
Olhei para vovó Totonha e foi a primeira vez que a vi chorar. Suas lágrimas confundiam-se com as gotas da chuva.

sexta-feira, abril 20, 2007

Prêmio Vivaleitura 2007


Prêmio Vivaleitura 2007 é lançado em Brasília

Maior premiação individual para fomento à leitura no Brasil tem o objetivo de estimular, fomentar e reconhecer as melhores experiências relacionadas ao tema

O Prêmio Vivaleitura 2007, uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC), Ministério da Cultura (MinC) e Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), será lançado dia 23 de abril, em Brasília, na sede da OEI. O prêmio, que faz parte do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), tem o objetivo de estimular, fomentar e reconhecer as melhores experiências relacionadas à leitura. A ação tem execução e patrocínio da Fundação Santillana e apoio do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).
Na sua primeira edição, em 2006, o Prêmio Vivaleitura recebeu 3.031 inscrições de todo o Brasil. Os trabalhos vieram de todos os estados brasileiros e os vencedores foram o projeto Jegue-Livro, implementado em Alto Alegre do Pindaré, no interior do Maranhão; o projeto Cordel: Rimas que Encantam, desenvolvido em São Gonçalo do Amarante, interior do Ceará; e Liberdade pela Escrita, programa que leva literatura a um presídio feminino de Porto Alegre.
O prêmio nasceu da intenção de dar continuidade à mobilização pró-leitura empreendida durante o Ano Ibero-americano da Leitura (2005), o “Vivaleitura”. A iniciativa tem duração inicial prevista para dez anos (2006-2016) e é a maior premiação individual para fomento à leitura no Brasil.
Dividido em três categorias de abrangência nacional, poderão concorrer ao prêmio instituições, órgãos e pessoas físicas. Os trabalhos podem ser inscritos em três categorias: (1) bibliotecas públicas, privadas e comunitárias; (2) escolas públicas e privadas; e (3) sociedade: empresas, ONGs, pessoas físicas, universidades e instituições sociais. Na categoria “Sociedade”, uma menção honrosa será atribuída a projetos de empresas. Em cada categoria, os vencedores receberão um prêmio de R$ 25 mil.
As inscrições são gratuitas e podem ser feitas pela Internet (http://www.premiovivaleitura.org.br) ou via postal (veja serviço abaixo). O prazo de inscrição vai de 23 de abril a 9 de julho de 2006. Informações podem ser obtidas pelo telefone 0800-7700987. As ligações são gratuitas.
Para a fase final da premiação, serão selecionados cinco projetos de cada categoria, de acordo com critérios como originalidade, dinamismo da ação na construção da cidadania, recursos utilizados, pertinência da ação desenvolvida com a comunidade, abrangência, duração e resultados alcançados, entre outros. A fase final do julgamento será realizada por uma comissão avaliadora composta por profissionais da área de leitura e sociedade. Os finalistas serão anunciados em setembro e a premiação está prevista para acontecer no dia 30 de outubro, em Brasília (DF).
Notícia publicada na Revista EntreLivros.

Sala de Leitura (2)


Por Cláudio Portella*

Dois novos títulos da Coleção Ponte Velha foram lançados, ambos com organização e prólogo do escritor Floriano Martins: Armas Brancas e Outros Poemas, de Armando Silva Carvalho e Olhares Perdidos, de Nicolau Saião.
É possível perguntar: por que o selecionador, o escritor Floriano Martins, dentre os livros de poesia de Armando Silva Carvalho, selecionou na íntegra o livro Armas Brancas (de 1977)? Penso que pela unidade que o livro possui. Unidade que vai além do conceitual e/ou estético. O livro, em si, é um poema. Há uma voz, um guia que cobra os fatos, que interroga, que pontua e descarna a história (a ditadura de Salazar – de 1926 a 1974) do seu país, refletindo-a no corpo do leitor. A escolha de Floriano Martins foi primorosa.
No prólogo do livro, Floriano Martins (poeta-crítico incansável, que parece estar sempre à procura da melhor performance poética) abre o diálogo com os versos de um poema de Armando Silva Carvalho: “Honra os destroços. Cobre-te com eles”. É provável que Armando tenha bebido na mesma fonte de Eliot, que diz num poema famoso: “Esses fragmentos eu os escorei contra minhas ruínas”.
Floriano ressalta a ironia, o sarcasmo, a proximidade da prosa (visível nos poemas de Lisboas, 2000) e a coletividade na poesia de Armando Silva Carvalho. A melancolia também é citada. Melancolia presente em O Comércio dos Nervos (de 1968, seu segundo livro de poesia), nos poemas: “Outro”, no belo “Carro parado com o motor a trabalhar”, e “O chão”. Não uma simples e pura melancolia. Mas infectada de nostalgia e acidez. Compostos que aparecem nos livros seguintes.
O que ficou faltando ser mencionado no texto de introdução do livro foi o erotismo (por mais estéril que se apresente), as imagens sexuais que a poética de Armando Carvalho também carrega. Contei mais de 20 poemas em que o sexo está presente. O sexo, no livro aqui presente, é quase sempre um desejo abafado no outro. É o que tenho a dizer sobre essas facas lusitanas.
Imagino a desenvoltura com que Floriano Martins organizou o livro de Nicolau Saião. Em verdade, a edição brasileira de Olhares Perdidos – a anterior, acrescida do artigo “Os” – é de 2000, publicada pela Universitária Editora de Lisboa. Digo desenvoltura, porque é conhecida a posição surrealista do organizador do livro; posição assentada (ou em pé) do autor do mesmo.
Mas o que Olhares Perdidos traz do surrealismo francês é tão somente o reconhecimento histórico. Na abertura da entrevista (o prólogo é uma entrevista que Floriano fez com o poeta), que antecede o livro, lemos: “Nicolau Saião (1946) integra o 2º movimento surrealista português, cuja atuação se situa nos anos 60 e configura um momento outro dentro de um painel de filiações e assimilações do movimento francês nas décadas anteriores. Trata-se de momento em que, no dizer de António Luís Moita, já se encontrava “digerida e superada (...) a bela utopia da escrita automática a que, duas décadas antes, outros poetas haviam metido mãos inovadoras”.
E o que realmente encontramos nos poemas é uma escrita elaborada, primando à revisão. O livro me parece mais figurativo do que propriamente surrealista. O figurativo é notório logo nos primeiros poemas do livro: “A Janela”, “Árvore” (aspecto interessante: o poeta parece ter um apego especial pelas árvores, pois o tema é recorrente ao longo do livro), “Efemeridade”, “Voar” e “Cidade”. O “surrealismo contemporâneo” não seria mais um jogo de dados, mas de xadrez.
Nicolau Saião também é artista plástico, a ilustração da capa e interiores do livro é dele. O que dizer dos desenhos de Saião? Vejo-os em contraponto com os poemas não querendo ilustrá-los, mas desmontá-los, destituí-los de sua porção literária.
Se é mencionada a proximidade da prosa na poética de Armando Silva Carvalho. Em Nicolau Saião essa proximidade é muito mais forte, mais presente. Rotular alguns textos, em Olhares Perdidos, como poemas, é delicado: “Erótica Lexicon 2.(b)” é um conto com diálogo entre Jolce e Belinda, “Fala de sua filha a seu pai José Régio” também é um conto onde a filha – unilateralmente – fala ao pai, “Os enigmas do quarto fechado e da fotografia artística” é um ensaio sobre literatura policial, “Fala do pastor no dia seguinte” é um conto com diálogo entre o pastor e um zumbi, e “África” que é uma aventura surrealista na selva, que termina com alguém sacando um “símbolo” do surrealismo, uma automática de nove tiros.
O livro traz 5 poemas e seu título é constituído da palavra Poema, sendo 3 com o mesmo título, formado unicamente da palavra Poema. O poeta parece querer transformar o poema em um ser-humano comum, batizando-lhe com um substantivo comum. Com o livro, Nicolau Saião, nos mostra que é possível fazer uma poesia surrealista sem dogmas, sem fé. Amém.
Cláudio Portella é escritor e autor de Bingo!

terça-feira, abril 17, 2007

As matriarcas (8)

Fui esperar Tiziu em frente da Escola Municipal. Pelo pouco que já conheço do moleque, cheguei com dez minutos de antecedência para não perdê-lo de vista. Levado como era, imaginei que ao primeiro toque do alarme, ele sairia voando pelo portão, doido para deixar a “masmorra” para trás. Errei. Ele nem esperou o alarme soar, cinco minutos antes do horário, Tiziu saiu pelo portão com o passo apressadinho como se não quisesse dar oportunidade de ser agarrado pelo bedel do colégio. Ele enxergou-me de longe e veio saltitando em minha direção como os olhos arregalados:
- D. Olívia!
- Tiziu!
- A professora já tinha terminado, viu? Não fugi da aula, não senhora.
- Eu não disse absolutamente nada, Tiziu.
- Mas antes que a senhora diga...
- Não estou aqui para vigiar você. Fique calmo. Vim porque combinamos um passeio de bicicleta para mais tarde, mas antes preciso ir a um lugar.
- Que lugar é esse?
- Uma casa que fica no Largo da Esperança.
- No Largo da Esperança? De quem é a casa?
- Foi da minha família: bisavós, avós, minha mãe e agora é minha. Mas ela está fechada há alguns bons anos.
- Não gosto de ir por aquelas bandas, D. Olívia.
- E por quê?
- Porque tem muita alma por lá.
- Como é, menino? Que história é essa?
- Falam que lá tem uma casa assombrada que pertenceu à D. Maria da Anunciação. Em algumas noites, uma dona doida anda pelas ruas do largo, vestida de Maria Madalena...

Minha visão ficou turva e a voz de Tiziu foi sumindo, sumindo até que não ouvi mais nada.

sexta-feira, março 23, 2007

As matriarcas (7)

São Pedro amanheceu alvoroçada e monotemática. O eclipse dominou todas as conversas do povoado, do mais velho ao mais jovem.
Às 7 horas da manhã, o sino da igreja badalou anunciando a primeira missa do dia. Nem mesmo o sermão de Pe. Miguel escapou de referenciar o fenômeno. Por mais que ele tentasse explicar não havia jeito.
Os mais idosos estavam temerosos, pois ainda guardavam consigo antigas crendices escatológicas. A meninada queria ficar acordada para ver a lua tingir-se de vermelho.
Naquele dia, apenas eu e mamãe fomos à Igreja. Saímos cedo, sorrateiramente, para que a bisa não notasse. Mamãe não dava ouvidos às manias da cidade e para não exasperar a bisa e nem contrariar suas regras, preferiu não ser vista.
Quando voltamos da missa, a casa estava toda fechada. Apesar do imenso calor, as janelas estavam cerradas, as cortinas baixas, portas chaveadas. Diante do oratório, a bisa rezava o terço pedindo misericórdia à Virgem Maria para que “São Pedro não acabasse em chamas”. Tia Margarida andava de um lado para o outro da casa e atrás dela vovó Totonha com um copo de água com açúcar:
- Bebe, Guida, vai te acalmar.
Eu não entendia porque um simples eclipse causava tanto desequilíbrio na rotina de todos. Tudo o que eu mais queria era pegar minha bicicleta e rumar para a clareira quando chegasse a hora. Queria observar tudo de perto.
À noite, após o jantar, levantei-me depressa da mesa e fui caminhando em direção ao quintal. A bisa puxou meu braço e perguntou:
- Onde é que a mocinha vai?
- Guardar a bicicleta – respondi gaguejando, sinal evidente da minha mentira.
- Ninguém sai de casa hoje, Olívia.
- Mas bisa, eu combinei de encontrar a turma na clareira.
- Amanhã, Olívia. Amanhã.
Chateada, fui para o quarto. Foi assim que perdi o primeiro eclipse da minha vida.

domingo, março 18, 2007

Literaturas Comparadas

Eduardo Coutinho, doutor em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia (Berkeley), considera que a escritura brasileira ganha espaço no mundo e analisa questões como o ofício de escrever e o Pós-Modernismo

Por Luiz Carlos Monteiro*

Filho do grande crítico literário e introdutor do New Criticism no Brasil Afrânio Coutinho, Eduardo de Faria Coutinho tornou-se professor titular da UFRJ, onde já lecionava desde a sua formação. Apesar de grande admirador das letras brasileiras, enveredou pelas literaturas de vários países e a isso se deveu sua escolha por pesquisar e lecionar Literatura Comparada. O seu livro Literatura Comparada na América Latina: Ensaios, de 2003, trata exatamente de questões ligadas ao comparatismo no continente latino-americano.

O OFÍCIO DE ESCREVER
Uma Oficina Literária não ensina um indivíduo a escrever, no sentido de dar-lhe qualquer tipo de receituário, mas a desenvolver suas habilidades como escritor; daí ela designar-se “oficina” ou “laboratório”. A Oficina Literária é um lugar de treinamento, para onde o indivíduo leva seus textos e os vê discutidos por colegas e por profissionais da área que os vão ajudar a aprimorá-los. Esses textos são reescritos diversas vezes, à medida que as contribuições dos demais participantes vão atuando sobre o autor, e este vai gradativamente aprimorando sua escrita até chegar a uma forma que o satisfaça naquele momento. É um trabalho coletivo, de enriquecimento mútuo, porque todos os participantes apresentam textos que são constantemente reescritos e reelaborados, a partir das contribuições oriundas das discussões com os demais. A Oficina Literária Afrânio Coutinho foi uma experiência pioneira nesse sentido e que produziu grandes frutos. Diversos poetas e contistas, por exemplo, ganharam muita projeção depois que a freqüentaram. E ela marcou a vida cultural do Rio de Janeiro na década de 1980.

AFRÂNIO COUTINHO
O meu pai exerceu uma influência constante em minha vida, sobretudo pelo exemplo de grande intelectual, erudito, mas ao mesmo tempo simples, sem sofisticações, de extraordinário pensador, sempre inquieto, indagando sobre tudo, e pelo seu caráter de pioneirismo que o levou a construir coisas como a Faculdade de Letras da UFRJ, com seus cursos de pós-graduação, modelares durante tanto tempo, e uma obra crítica e ensaística sólida, que se ergueu contra a crítica puramente impressionista, introduzindo uma perspectiva mais científica na abordagem do fenômeno literário. Ele foi sem dúvida o introdutor do New Criticism no Brasil, mas o tipo de crítica que ele aqui desenvolveu diferiu também do New Criticism na medida em que nunca deixou de lado a importância do contexto. Dentre suas diversas obras, A Literatura no Brasil tem-se destacado pelo seu cunho de monumentalidade. É uma obra de história literária coletiva que ele idealizou e coordenou, tendo escrito inclusive muitos de seus capítulos, a maioria dos quais foi reunida em outro volume, publicado sob o título de Introdução à Literatura no Brasil. É uma obra em seis volumes, que abrange toda a produção literária canônica brasileira, desde suas primeiras manifestações até o período de sua produção (2ª metade do século 20), e que foi amplamente reeditada, achando-se já na 6ª edição, atualizada. Minha participação na obra restringe-se apenas às últimas edições, que eu ajudei a rever e atualizar, e para as quais contribuí também com um capítulo sobre o Pós-Modernismo.

LITERATURA BRASILEIRA
Acho que a literatura brasileira já construiu um espaço no cenário internacional, tanto que ela é estudada com interesse nas universidades de diversas partes do mundo, como nos EUA e na Europa Ocidental. Em alguns países, como, por exemplo, a França ou os EUA, há inclusive formação em Literatura Brasileira. Na América Hispânica ela está despertando um interesse cada vez maior e está penetrando cada vez mais os currículos universitários. No que diz respeito ao caráter estético-literário das obras, acho que a nossa produção não deixa nada a dever com relação às grandes literaturas do Ocidente. O que dificultou durante muito tempo o conhecimento de autores brasileiros no exterior foi a barreira idiomática, mas isso está sendo superado graças ao número cada vez maior de traduções que se têm feito de obras de nossa literatura. E essa quantidade de traduções demonstra, por sua vez, melhor do que qualquer outro aspecto, o interesse que há por tais obras.

PÓS-MODERNISMO
O que vem sendo designado de Pós-Modernismo no meio acadêmico atual é um movimento surgido nos Estados Unidos na década de 1960 como reação aos excessos do Modernismo anglo-saxão e das correntes teórico-críticas imanentistas, que haviam dominado o meio intelectual e artístico na década precedente. Surgiu com figuras como John Barth e Thomas Pynchon, no campo da literatura, e Andy Warhol na esfera das artes plásticas, e teve como uma de suas principais preocupações a crítica às chamadas “grandes narrativas da modernidade”, para empregar a expressão de Lyotard, um de seus mais destacados teóricos. O Pós-Modernismo cresceu e se espalhou bastante nas décadas seguintes, estendendo-se a outras partes do mundo e aos mais variados setores do conhecimento, e associando-se às lutas políticas que se vinham então desenvolvendo por parte dos grupos minoritários. Na literatura, ele foi amplamente marcado pela auto-referencialidade das obras e pela preocupação com a contextualização histórica, como reação à supervalorização do caráter autotélico do texto defendido pela estética anterior e pelos adeptos das correntes imanentistas. Na América Latina, a discussão sobre o pós-moderno chegou na década de 1980, dividindo a crítica entre os que aceitavam a designação e os que a consideravam mais uma importação forânea, pouco compatível com o nosso contexto. Deixando de lado as divergências e polêmicas que se desencadearam a partir daí, fato é que o termo hoje vem sendo aceito pela crítica acadêmica para designar, sobretudo, um tipo de produção que se diferencia da modernista em alguns aspectos significativos, dentre os quais a presença constante da mídia, a auto-referencialidade citada, os experimentalismos flagrantes e a necessidade premente de reler obras anteriores com o olhar do presente.

FUTURO DA LITERATURA
Eu não acredito que o mundo audiovisual venha a acabar com o livro ou com o prazer da leitura. São coisas diferentes que não me parecem incompatíveis. Ao contrário, acho até que as formas de expressão audiovisual podem contribuir para o interesse pelo livro, como é o caso dos filmes ou das novelas de televisão baseadas em obras literárias que têm contribuído bastante para a venda dessas obras. Não sou pessimista quanto ao futuro do livro.

* Luiz Carlos Monteiro é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon, Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.

Parabéns ao portuga

ANTONIO LOBO ANTUNES É O VENCEDOR DO PRÊMIO CAMÕES
LISBOA, 15 mar (AFP) - O Prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa, foi concedido na quarta-feira no Brasil ao português Antonio Lobo Antunes, informa o ministério da Cultura de Portugal.
Antonio Lobo Antunes, um dos escritores de língua portuguesa mais lidos e traduzidos no mundo, é uma das principais figuras da literatura de seu país.
Lobo Antunes pertence a uma família da grande burguesia portuguesa. Nasceu em 1942. Estudou Medicina e depois se especializou em psiquiatria. Trabalhou em um hospital de Lisboa antes de dedicar-se exclusivamente a escrever, a partir de 1985.
O serviço militar, que cumpriu em Angola de 1971 a 1973 durante as guerras coloniais portuguesas na África, inspirou vários romances.
Entre outros livros é autor de Memórias de Elefante, Os Cus de Judas , Conhecimento do Inferno, Boa Tarde Às Coisas Aqui Embaixo e O Manual dos Inquisidores.
O Prêmio Camões, que vale 100.000 euros, foi creado em 1988 por Portugal e Brasil para distinguir os autores de língua portuguesa que contribuem para o enriquecimento do patrimônio cultural deste idioma.

terça-feira, março 06, 2007

Por um país menos ordinário.

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Dom Ivo Lorscheiter (7/12/1927 - 05/03/2007)

As matriarcas (6)

Sobre a porta da loja lia-se a placa talhada na madeira: Oficina do Gegê. Como a porta estava aberta, fui entrando. Era um galpão de aproximadamente uns vinte metros quadrados sem qualquer organização. Havia pneus, câmaras de ar, remendos por toda a loja; pedaços de bicicleta – raios, pedais, selim, guidão – espalhados no chão. Era difícil caminhar por ali.

Já que não havia ninguém para atender, resolvi bater palmas – um velho hábito do interior – para pedir ajuda.

- Ô de casa!Nenhuma resposta.

- Ô de casa. Tentei novamente, mais forte dessa vez.

Lá do fundo da loja alguém respondeu:

- É já.

Em alguns segundos, surge uma figura simpática e bonachona. Entrou sorrindo largo, dentes branquíssimos, cara redonda. Não me restaram dúvidas. Só podia ser o pai de Tiziu, afinal, eram os mesmos olhos brilhantes.

- Bom dia, moça.

- Bom dia, Sr. Geraldo. Eu sou Olívia e...

- Ah! O Tiziu me falou da senhora. A professora lá da capital.

Segurei firme o riso. Fiquei imaginando como teria sido o relato daquele moleque. Ele viu os livros que trouxe e deduziu que sou professora. O que não deve ter sido muito animador, uma vez que a escola não é assunto que lhe pareça agradável.

- Isso mesmo. Ele disse-me que o senhor poderia conseguir uma boa bicicleta pra mim.

- Eu posso, mas é de segunda mão. Não se importa?

- De forma alguma. Como não vou ficar muito tempo, talvez um mês ou dois, pensei em alugar uma.

- Alugar? Nunca fiz isso, não senhora. Eu conserto, pinto, monto, desmonto, mas alugar... é novidade. Eu posso emprestar.

- Não, Sr. Geraldo. Veja aí uma bicicleta e diga o preço. Eu compro. Quando eu for embora, deixo para o senhor arrumar uma venda, um bom negócio.

Saí de lá montada numa bicicleta vermelha, com raios brilhantes, retrovisor e uma buzina de som extravagante.

É. Bicicleta é um meio de transporte sério em São Pedro das Missões.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Vitrine (3)

O Edilson Pantoja concedeu-me o direito de publicar este seu mini-conto.
Obrigada, querido.
O Imortal

Era meio-dia e meia quando os dois chegaram. Encostaram-se no muro, próximo do largo portão. O mais velho arriou sua forma de isopor na calçada, no que foi imitado pelo mais novo. Logo a carícia no ombro marcado pelo náilon. Ficaram ali, atentos aos que entravam. E como mais de uma hora se passou desde que chegaram, dividiam um picolé. De repente o mais velho cutucou o outro.
- É aquele ali!
- Qual? Aquele?
- Sim, quem mais? Esse mesmo, de flor na orelha e jeans. O imortal. Ih! Disfarça, ele tá olhando pra cá! Quer ver se alguém lhe segue. Puxa! Demos sorte, mesmo!
- Não acredito! Tem certeza de que é esse? Eu juro que não acredito! E acho que não quero mais ver... Vamos embora?
- O quê?! Desistir agora, depois de tudo?!
- Desculpa, mas acho que tô com medo...
- Não te preocupa. Ele não faz mal a ninguém. É sabido demais para machucar alguém. Dizem que tem dois mil e quinhentos anos.
- Quem diz?
- Ah!, não lembro! Dizem por aí.
- A história da água?
- Sim. A história da água... Ele bebe a si próprio. Sempre. Por isso não morre. Olha!, tá virando a esquina que dá para o horto. Vai ser agora! Pshh! Vem, vamos lá. Vamos ver. Não vais acreditar. Eu também não acreditei quando vi a primeira vez.
- Tô tremendo. Acho que não vou conseguir olhar. Vou fechar os olhos.
- Não! Abre! Olha lá! Não falei? Ele tá se engolindo... Meu Deus!Enquanto o imortal se engolia, os meninos, perplexos, vomitavam o picolé.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

As matriarcas (5)

- Bom dia.
- Bom dia.
- A senhora gostou do quarto?
- Sim, está confortável. Obrigada.
- Se precisar de alguma coisa...
- Na verdade, preciso, sim. Quero dar uma volta pela cidade, mas primeiro preciso encontrar o Tiziu. Ele disse-me que seu pai conseguiria uma boa bicicleta para mim.
- Ah, sim! Neste horário, o moleque Tiziu deve estar no Grupo Escolar, mas a loja do Geraldo fica bem perto daqui. Venha, eu mostro pra senhora.
De fato, a loja era bem perto. Do outro lado da praça, para ser mais precisa. Parece que tudo de relevante para a cidade ficava na praça da Matriz. Igreja, coreto, hotel, uma sorveteria e a loja do Sr. Geraldo.
Lembro-me perfeitamente das missas de domingo na Matriz. Eram longas, demoradas demais mesmo. Causavam sonolência nos fiéis. No entanto, era o dia mais movimentado e esperado da semana. Mamãe punha-me laços no cabelo. Vovó Totonha usava seu colar de pérolas – presente de casamento – e vestido de linho branco muito bem engomado. A bisa, como era muito gorda, estava sempre de chambre de algodão e um coque trançado. Tia Margarida, muito alta, pernas longilíneas, gostava de saias plissadas e de perfume. Ela passava tanto que eu ficava enjoada, mal conseguia tomar café da manhã, mas nunca a repreendi, nunca pedi que abandonasse tal prazer, afinal eles eram tão poucos.
Depois da missa começava o melhor: pipoca, algodão doce, bandinha tocando, as crianças correndo livres pela praça. Na época de quermesse, tia Margarida vendia seu famoso licor de jenipapo e vovó Totonha levava seus deliciosos beijus. Eu voltava para casa com dor de barriga.
Tia margarida, antes de ficar doente, dava aulas no Grupo. As crianças adoravam-na. Faziam fila na barraca para provar do seu licor, que era muito doce e tinha quase nada de álcool. Eu sei porque experimentava em casa. Ela dizia “a prova final é a Olívia quem dá”.
- D. Olívia. D. Olívia.
- Tiziu! Eu procurava mesmo por você.
- É?
- É. Estava indo à loja do seu pai alugar uma bicicleta, mas me diga, você não deveria estar na aula, mocinho?
- Eu tava, mas é que... é que...
- Mas é que você está cabulando aula.
- Não conta nada para o meu pai, por favor.
- Não conto se você der meia volta.
O bico habitual surgiu em seu rosto.
- Esse bico de novo, não! Volte para a aula e mais tarde convido você para um passeio de bicicleta e ainda contrato seus serviços de guia. O que acha? Vai querer?
O olhinho dele brilhou. O bico sumiu.
- E a dona paga? Quanto?
- Pago, claro que pago. Combinamos isso depois. Agora volte já para a escola.

domingo, fevereiro 04, 2007

Um olhar sobre o abismo

A estrutura abismal – mise en abyme – nas artes plásticas, no cinema e na literatura
Por Eduardo Cesar Maia*

Uma obra dentro da obra, a ficção dentro da ficção: a célebre cena do drama shakespeariano em que Hamlet pede para que uma companhia teatral encene diante da corte o assassinato do seu pai, o rei Hamlet, a fim de desmascarar os culpados, observando a reação deles à peça, é um exemplo clássico e bastante citado de mise en abyme.

“Relato interno”, “duplicação interior”, “composição em abismo”, “construção em abismo”, “estrutura em abismo”, “narração em primeiro e segundo graus”. Todas essas denominações se referem, em português, a uma técnica narrativa, inspirada originalmente em procedimentos encontrados nas artes plásticas (pintura) e que, posteriormente e com as adaptações necessárias à especificidade de cada forma de arte, chegou à literatura e ao cinema. Tal técnica consiste em colocar uma história dentro da história, como um enclave – uma narração secundária que de algum modo se desenvolve a partir da ficção original.

No ano de 1891, o escritor e ensaísta francês André Gide utilizou e teorizou sobre o termo mise en abyme em seus Diários. Era a primeira vez que, em literatura, a nomenclatura era empregada – anteriormente tinha sido utilizada no estudo dos brasões (heráldica); o abyme (abismo) era uma reprodução em miniatura, no centro do escudo, da sua própria forma total, o que dava uma sensação de repetição infinita do mesmo. Os escritores do nouveau roman utilizaram com freqüência o procedimento, que se tornou quase uma marca do movimento.

Os jogos de espelhos dentro da narrativa, para o leitor ou espectador mais atento, permitem alternar os momentos de realidade da vida com os da realidade da obra de arte: uma recriação da experiência da vida real imiscuída à experiência criativa e estética. É importante ter em mente que o reflexo do fragmento incluído não possui sempre o mesmo grau de analogia com a obra que o inclui, variando de acordo com a interação que o artista quer estabelecer entre os níveis da narrativa.

Para Lucien Dällenbach, principal teórico deste conceito, mise en abyme é “todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a obra que o contém”, funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui. Autores como Shakespeare, Borges, Kafka ou o próprio Gide utilizaram essa estrutura para colocar em xeque o próprio conceito de ficção e, por conseguinte, a própria definição de real. Alguns estudiosos acreditam que essa forma metanarrativa gera uma sensação de maior ficção (como se o leitor fosse ainda mais atraído para o jogo da criação), porém, outros autores pensam que o recurso alerta o público-leitor para a “irrealidade” da trama.
Há, ainda hoje, muitas discussões sobre a utilização do termo mise en abyme. Não existe uma definição rigorosa para o termo e por isso muitas vezes ele é tomado de forma simplista e aplicado a qualquer forma metanarrativa: “quando a ficção vive na ficção”, na definição de Borges. Contudo, na acepção de Gide, é necessário que a estrutura em abismo guarde a característica de reflexividade, quer dizer, o fragmento colocado deve manter uma relação especular com original, refletindo por semelhança ou mesmo por contraste.

*Jornalista e editor da Continente Multicultural.

sábado, fevereiro 03, 2007

As matriarcas (4)

Estar de volta a São Pedro da Missões trazia-me antigas recordações. Não a mim exatamente, mas à Olívia da minha infância, a menina que testemunhou diversas histórias sem entendê-las muito bem.
Havia mais do que as lembranças de vestidos e passeios, das mãos hábeis de vovó Totonha e de sua força. Havia também a “loucura” de tia Margarida, a fragilidade das figuras masculinas – vovô Nico, tio Tatá e o meu próprio pai.
Ah, tinha também D. Lola, minha bisa! O ano que morei em São Pedro foi o primeiro e último do nosso convívio. Eu lembro-me tão bem de seus cabelos de nuvem – branquinhos e longos, muito longos. Eu passava a tarde a penteá-los e depois os trançava. Ela dormia na cadeira de balanço enquanto eu fiava suas madeixas. Bisa Lola estava quase sempre dormindo, rezando ou comendo. Quando morreu, pesava mais de cem quilos e tinha uns noventa anos.
Certo dia, vovó Totonha pediu que eu a acordasse para lanchar. Chamei e ela não respondeu. Brinquei nas suas tranças e ela lá, imóvel. Cutuquei e seu corpo estava gelado. Não demorei a perceber que o sono que dormia não era somente profundo, mas eterno. Foi então que descobri que a morte é fria e silenciosa.
Gritei por mamãe e vovó. Pedi que acudissem. Até tia Margarida veio ver o motivo de tanto barulho. Ao perceber o que acontecia ficou trêmula num cantinho da sala, repetindo sem parar, numa voz débil e baixa: “deixem a mamãe dormir”.
Vovô não estava em casa. Mamãe e vovó carregaram a bisa até o quarto. Foi grande a confusão. Mamãe não sabia o que fazer primeiro e numa rapidez incrível, deu o remédio de tia Margarida e depois fez com que deitasse; puxou minha mão e disse-me para subir na bicicleta e trazer ajuda.
Vovó Totonha não verteu lágrima, ficou firme o tempo todo. Com a ajuda de mamãe deu banho e vestiu a mortalha na bisa, puxou a reza, encabeçou o cortejo até o cemitério. Mais atrás, as mulheres carpideiras seguiam os homens. Foram necessários seis deles para carregar o caixão.
Depois de tudo, três coisas nunca saíram da minha memória: o cheiro de lavanda na casa, Tia Margarida na chuva e claro, a primeira vez que vi Vovó Totonha chorar.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Homenagem ao maestro

Ele foi ecologista antes das questões ambientais estarem na agenda mundial.
Para você Tom, muito mais que músico.

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Brasil: Um país lindo e com nome de árvore. O Pau-Brasil é hoje uma raridade. O Brasil era um paraíso, um país mateiro, grande Nação Florestal. Floresta com onça, anta, macuco, madeiras preciosas que nem foram utilizadas mas queimadas, as queimadas que começavam em Minas e iam até as praias do Espírito Santo. Queimar; fogo, sempre fogo na fabricação demente, insana, do deserto. Depois vinha a chuva e carregava os restos e vinha o sol e cozinhava o chão. Ao lado a voçoroca, o buracão profundo. Insensatos. A superfície da terra virou uma moringa, uma telha.
Amanhece no interior do Boing Jumbo 747 da Varig. Lá embaixo Minas, Zona da Mata. Não tem mais mata. Estamos chegando... cadê a Floresta Atlântica? E a terra despencando morro abaixo. Um compatriota, sentado ao meu lado diz: Os americanos já destruíram suas matas, seus índios; nós temos os mesmos direitos... Meu Deus, o que que os índios pensarão disto, o que as árvores pensarão disto? Chico Mendes falou na TV americana em bom português: vão me matar, não mandem flores, deixem as flores vivas na floresta.
Com legendas, em inglês.

Tom Jobim.

terça-feira, janeiro 23, 2007

As matriarcas (3)

Maria Antônia da Anunciação. D. Antônia. Vó Totonha. Mulher forte e homem da casa. Levava a família na rédea curta. Sempre solicitada nas horas de aflições. Criou sete filhos e alguns irmãos. Trabalhou feito louca para que nunca faltasse o necessário. Rigorosa na educação. Temente a Deus. Suas feições duras escondiam um bondoso coração. Com a chegada dos netos, o franzido da testa atenuou-se.
Ensinou-me a fazer contas. Toda a tarde tomava-me a tabuada com direito à prova dos nove. Ralhava quando me via contar nos dedos, coisa que ainda hoje faço. Ela esmerou-se, mas sempre fui péssima em matemática, não tenho a menor afinidade com os números.
Coisa que eu gostava era vê-la costurar. Fazia coisas lindas. Lembro-me de um vestido de casamento todo de organza. Sonhei com ele por muitas noites, imaginando-me naqueles saiotes rodados, flutuantes. Ele tinha flores aplicadas que ela mesma fez. Recortava os moldes, passava goma no tecido e depois metia-lhe o ferro quente para moldar as pétalas. Eu olhava tudo aquilo maravilhada, com olhos de admiração e cobiça. Um dia teria um vestido como aquele, cheio de flores e laços.
Vovó Totonha sempre fez minhas roupas. Só comecei a usar roupas de lojas no colegial, quando minha mãe comprou meu primeiro jeans. De resto, tudo era feito por vovó. As outras meninas morriam de inveja porque minhas roupas eram únicas. Nunca corri o risco de ver alguém com o mesmo modelo. Não sabia eu que a exclusividade das minhas peças não era um capricho ou vaidade, mas contenção de despesas. Melhor assim, ao invés de carregar o trauma da pobrezinha, desfilei com brejeirice o prêt-a-porter de vovó Totonha.
Ela também me ensinou a bordar, fazer crochê, capas de almofada, trabalhar com retalhos... de todas essas atividades manuais, a única habilidade que me restou foi manejar a caneta e isso também devo a ela que alternava a lição da tabuada com as aulas de caligrafia. Eu adorava desenhar as letras na pauta, vê-las transformando-se em palavras redondinhas sobre o papel.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

As matriarcas (2)

- Desfaz esse bico, Tiziu! Anda, diga, o que você faz em São Pedro?
- Eu ajudo meu pai.
- E o que seu pai faz?
- Ele é ferreiro. Conserta as carroças e bicicletas de todo o povoado.
- Parece divertido.
Ele deu de ombros.
- E a escola?
- O que tem?
- Como o que tem? Você estuda, não estuda, Tiziu?
- Estudo, mas não gosto muito. Eu gosto mesmo é de correr por aí no meu cavalo.
- Uma coisa não impede a outra
Mudou de assunto:
- A dona é parente do Nhô Agenor?
- Não.
- Então o que veio fazer aqui?
- Uma pesquisa.
- Não entendi.
- Quero saber sobre algumas pessoas que viveram aqui.
- A dona é da polícia?
Não pude evitar o riso. Sua pergunta continha tanta excitação e aventura.
- Não, Tiziu. Eu conto histórias e elas viram livros.
- Ah! – exclamou todo frustrado.
Minha vez de mudar de assunto:
- Tiziu, será que seu pai me aluga uma bicicleta? Acho que vou precisar de uma.
- Claro. Depois eu levo a senhora lá na oficina para escolher uma bem bonita.
- Ótimo.
- Chegamos.
A pensão do Agenor era um casarão estilo colonial, antigo, mas bem conservado. Móveis rústicos, toalhas de linho, portas pesadas, assoalho brilhando e um cheiro forte de óleo de peroba.
- Vou pegar suas malas.
- Obrigada.
Agora que eu já recuara no tempo, deveria ir até o fim. Sabia que não se tratava de uma história qualquer.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

As matriarcas (1)

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O trem finalmente pára na estação. A velha maria-fumaça gemeu sobre os trilhos por todo o percurso. Trezentos quilômetros de ranger de ossos.
Desço e o chefe da estação grita as boas-vindas. Ele ainda se veste como os antigos chef de gare do final do século XIX. Sua roupa não tem um único vinco, o quepe está impecável em sua cabeça, mas a estação está abandonada, tudo é só pó, paredes rachadas precisando de tinta. São Pedro das Missões parou no tempo. Todas as coisas têm cheiro de passado.
- Por favor, como faço para chegar até a cidade? Poderia me conseguir um táxi?
O chefe sorriu:
- Em São Pedro não temos táxi ou ônibus. Mas posso conseguir uma charrete.
Uma charrete!! Meu Deus, o povoado ainda usa charretes. Depois de trezentos quilômetros trepidando num trem ainda terei de agüentar uma boa meia hora numa carroça.
- Pois que seja.
- A dona não é daqui, vê-se logo. O que a traz a esse fim de mundo?
- Meu ofício.
Saquei da bolsa minha cadernetinha de anotações. Chico do táxi. Chico, segundo relatos da vovó, era o único do povoado que tinha carro. Um velho Ford amarelo que ele usava para prestar socorro aos moradores. Nunca cobrava pelos serviços.
- o que aconteceu com o Chico do táxi?
O homem arregalou os olhos como se tivesse visto uma assombração. Será que disse algo errado?
- O Chico morreu, dona. Faz três anos.
- Lamento muito. Deixe que eu me apresente. Sou Olívia, neta de Totonha, bisneta de D. Lola.
Pensei que o homem fosse morrer na minha frente. Ficou paralisado com uma estátua de sal.
- Minha avó contou-me muitas histórias daqui.
- Prazer, D. Olívia. Desculpe o espanto, mas tem tanto tempo.
- Eu sei. Estive aqui uma única vez. Eu tinha sete anos na época. Retive algumas coisas na memória e pelo que vejo, não mudou muito. Achei que fosse ter um impacto, mas sinto-me como a menina de sete anos.
- É, as coisas não mudaram muito mesmo. Vou chamar um moleque para levá-la até a cidade. A senhora deve está cansada.
- Estou mesmo. Diga-me, a pensão do Agenor ainda existe?
- Existe, sim.
- Tiziu, ó Tiziu vem cá, menino.
Tiziu era um garoto negrinho como a noite, mas tinha olhos enormes e um sorriso tão branco e largo que espantava qualquer medo ou receio. Porque devo confessar, estava receosa com os fantasmas que encontraria.
- Olá Tiziu. Eu sou Olívia. Poderia me deixar na pensão do Agenor?
- Posso, sim, dona. Tenho o cavalo mais rápido e valente daqui.
- Então, vamos.
- Tiziu, não vá em disparada. Não apronte nenhuma com a moça.
Ele amuou e murmurou um “tá bem” a contragosto. Agradeci ao chefe da estação. Quando a charrete ia adiantada, ele gritou:
- Esqueci de dizer, sou mestre Antônio.
Acenei com a mão e respondi.
- Eu sei.

Um poema que me marcou...

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"Em legítima defesa
Sei hoje que ninguém antes de ti
Morreu profundamente para mim
...
Os outros estão mortos porque o estão
Só tu morreste tanto que não tens ressurreição
Pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
Onde antes te encontrava e te posso encontrar
E ver-te vou como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e
Vives sempre mais."

in Volume II - Ruy Belo

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Feliz Aniversário!!!!

No último dia 7, o espaço Sincronicidade fez seu primeiro ano de vida.
Que venham muitos outros, Vítor.

sábado, janeiro 06, 2007

De volta à programação "quase" normal

Filosofia barata (1)

- E se tudo não passar de uma grande ilusão? Se estivermos todos mergulhados tão profundamente no sono que passamos a acreditar que isto é real?
- Como assim?
- Esquece. É mais um dos meus delírios, mais uma das minhas tentativas de colocar lógica, alguma razoabilidade na vida.
- És doida.
- Eu sou – riu-se.
- Essa paz de que falas, que almejas fica cada dia mais distante, não vês? Nunca a terás se quiseres controlar tudo, entender tudo, explicar tudo. Há coisas que não se explicam, são os mistérios insondáveis da alma, da vida.
- Estás a dizer-me que somos títeres? Um bando de levianos?
- Não, estou a dizer que somos diferentes e temos padrões éticos e morais conflitantes. Há quem ache banal coisas que consideras importante. E o que vias fazer? Passar a vida em dor ou aceitar que toda essa gente não é par para ti, mas pode ser para outros?
- Sou obtusa, incontestavelmente – debochou.
- Sabes que é isto que te salva da insanidade? Teu humor ácido, tua ironia, teus deboches.
- Cada um defende-se como pode.
- É quando não te levas tão a sério que posso ver tuas asas.
- Não tenho intenção de escondê-las, mas sim de usá-las sem medo ou restrição. Mas há tantos muros...
- Sempre haverá, mas tens a opção de voar alto, acima deles.
- Então compreendestes, finalmente, o meu dilema.
- Compreendi?
- Voar acima deles instalará tal distância que o convívio tornar-se-á impossível e ficar próxima limita-me a envergadura.
- Alguns dilemas são cárceres, labirintos sem saída ou, no máximo, de uma saída só: matar ou morrer. Outros, porém, são multifacetados; abrigam muitos caminhos, promovem a busca do equilíbrio, entendes? Podes traçar um plano de vôo onde tuas asas toquem as duas extremidades.
Ela riu.
- Do que ris?
- Dessa conversa, da tua amizade, do diálogo em espiral...
- Explica-me.
- E sou eu quem gosta de explicações!
- Minha culpa, minha máxima culpa.
- O riso vem do prazer de ter alguém confrontando sem guerras, do cuidado em confortar e buscar – juntos e de modo inclusivo – alternativas possíveis, do movimento quase cênico em apresentar idéias, como se bancássemos o advogado do diabo um do outro.
- Tudo filosofia barata regada a bom vinho.
- In vino veritas.