quarta-feira, agosto 31, 2005

Profissão de fé

Do ideal e da Glória

Que busca o escritor? O verdadeiro escritor, isto é: o que faz da palavra escrita sua razão de viver. Pois, como tudo, e do mesmo modo que existe, por exemplo, o mau sacerdote, também o escritor, tem os seus macacos. Os que imitam os gestos do escritor, publicando livros, discutindo sobre Joyce, dando entrevistas, e não são escritores. Estes buscam tão-somente o nome nos jornais, mais tarde as sinecuras, os postos bem pagos, as condecorações, tal ou qual prestígio social e, naturalmente, a Academia. Tais personagens não contam e não importa o que buscam: são segregados pelo mesmo chão que produz todas as outras espécies de embusteiros.

O que o escritor deseja é realizar e entregar, aos seus semelhantes, principalmente aos que falam a sua língua, obras às quais hajam consagrado o melhor de si mesmos. Trabalhar submisso a restrições, sob encomenda, é necessário em outros ofícios. No seu, a encomenda e a restrição correspondem exatamente à morte do ofício. A liberdade é seu clima.

A liberdade? De que natureza? Todas. A começar pela liberdade interior. Isto é, pelo arrefecimento, em seu íntimo, de ambições alheias à literatura e que possam desviá-lo, perdê-lo.
Essa liberdade, que, com maior ou menor esforço, pode ser alcançada em condições adversas, não basta. Uma série de fatores outros é exigida para que o ato de escrever, o ofício de escrever alcance a plenitude.
(Osman Lins. Do ideal e da glória - problemas inculturais brasileiros)

segunda-feira, agosto 22, 2005

"Amores serão sempre amáveis"

V., minha V...

Recebi seu presente. Tão delicadas as matryoshkas, querida. Não sei dizer-te se gostei mais delas ou de tua carta que li suspirando como quem lamenta o não vivido ou tem saudade do que não foi.

Eu sei que você enfrentaria todos os tormentos para deliciar-se, ainda que por uma única vez, com os frutos rubros e selvagens. Até já pensei, sorrindo sozinha, que você, tal como Eva, não hesitaria em comer da maçã mesmo que isso significasse ser banida do Paraíso.

Ah, minha V., não desistas de mim! Porque lá no fundo, eu também gostaria de poder, mas eu tenho tantos medos... por enquanto, saber da existência desse lugar tão colorido já é um grande avanço, saber que tenho para onde ir quando eu conseguir romper minhas amarras dá-me um alento enorme, mas V., aprendi a ter raízes profundas e de tanto convivermos, afeiçoei-me a elas. Eu sei quão difícil deve ser para você aceitar esse meu lado, que pode parecer passividade, mas não é, minha querida. Acredite, não é.

Eu tenho dificuldade de me desapegar e eu tomei apego até pelo que faz sangrar. Lembra que minha mãe, na sua bruta ingenuidade, nos dizia que o ser humano acostuma até com o que não presta? É, V., a gente também se acostuma às nossas próprias ruínas, às paredes caiadas, à velha e confortável poltrona de tecido puído. O baú de antiguidades também faz parte de mim.

Outras coisas também fazem parte de mim: orgulho exagerado, dificuldade em admitir um fracasso e uma boa dose de covardia, mas de tudo isso, o que mais me incomoda, querida, é saber que fracassei, que minha love story virou filme de terror, que todo o amor que tenho não é suficiente, não basta... “o amor tudo pode” é uma máxima frustrada, minha cara.

Uma hora eu vou aprender a transformar esse amor que sobra, que é resto em sementes. É preciso saber desistir, V. Deixar livre para que o que não floresceu em terras minhas, floresça em jardins outros.

Beijos,

A.

quarta-feira, agosto 17, 2005

Dos encontros

Hoje, o Glossolalias faz um ano de existência.

Meu Deus, esse blog tem exatamente um ano de palavras. Se eu pudesse encadeá-las uma após outra, qual seria o tamanho do percurso já feito?

O que escrevo tem algum valor? Faz alguma diferença? Serve para alguma coisa ou alguém?

No fundo, eu escrevo para mim, porque é vital à minha sobrevivência. Nem me lembro quando escrever tornou-se tão essencial. Parece-me que nasci assim, caneta e papel nas mãos. Às vezes é um presente, outras um fardo. Dar sentido a tudo que vaga pelo pensamento é a única maneira que encontrei de estabelecer alguma serenidade com meu interior tão caótico.

Escrevo para me justificar pessoa, para conquistar uma identidade que vai além do nome e cpf, algo que me relate, me delate. E quando eu escrevo não tenho necessidade de falar, tenho uma predisposição natural de ficar calada e isso me fez aceitar o silêncio e ser mais compreensiva com os sentidos das coisas e com a vaguidão das palavras e de seus significados que tento apreender ferozmente.

É preciso escrever assim, puro,sem truques. Meu texto é o que tenho e nele aprendo a viver, a amar, a fazer amigos, é minha realidade. É meu testemunho ainda que muitas vezes ele deponha contra mim. Depois que está pronto, ele vai viver independente, vai ter uma individualidade da qual não mais participo. Seguirá sozinho, fará seus (des)caminhos e eu? Vou gestar outros textos – filhos pródigos que jamais retornam.

De tempos em tempos, aportam nos cais, encontram pessoas que os acolhem, acrescentando-lhe novos sentidos e depois voltam a seguir viagem.

Na mágica da vida, acabo esbarrando com essas pessoas e é quando tenho notícia deles.

Confessar-me em público deu-me essa nova dimensão do texto, deu-me alguma generosidade de reconhecer que são meus sem que o pronome possessivo seja, de fato, uma posse, uma prisão.

Agradeço a todos vocês que participam e nos acolhem em seus cais.

terça-feira, agosto 16, 2005

Andei por aí perseguindo estrelas como quem caça borboletas... como se fosse possível apanhar nas mãos o brilho de quem já se apagou ou o vento sutil que o bater de asas proporciona.

Esbarrei nos impedimentos que nos separam – o espaço infinito e o balé das horas.

Tu sorrias, descrente, das minhas buscas.

Procurei gravar na areia toda a fome de mundo que eu sinto, toda essa urgência que motiva minhas entranhas, mas como demorastes, as espumas desmancharam os desenhos. Eles pareciam tão vívidos, mas já agora não resta sequer provas de sua existência.

Esperei pelo teu gesto...

O sol sangrou a tarde com seu aceno final. A noite trouxe a lua para fazer-me companhia. Logo mais a aurora veio avisar que já era tempo de despertar.

Esperei pela tua palavra...

Deixei bilhetes nos bolsos de tua roupa, olhei fixamente nos olhos teus, coloquei música, ensaiei dançar.

Não houve gesto, sequer palavra.

Hoje desfilo longe de teus olhos. Mudei a direção dos meus passos. Segui o mar que chamava pelo meu nome em sua concha. Existe um apelo em sua voz que é impossível ignorar. Não sei se é o movimento das ondas ou a força das marés... só sei que é um sussurro que lambe minhas pernas cheias de sal. E eu gosto de sua língua percorrendo minha pele.

Desejei inúmeras vezes que imitasses o mar, esperei pela arrebentação das tuas ondas para fertilizar meus sonhos, coloquei bóias indicando o caminho para que não te perdesses, para que não nos perdêssemos... mas nem o farol pode nos iluminar.

Hoje, da outra margem, observo teus movimentos e sou eu quem sorri.

Persegues estrelas como quem caça borboletas, como se fosse possível, como se fosse possível.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Quase

Há uma longa espera
No breve espaço em que
A mão antecede o gesto
E a boca anuncia o beijo.

Afago este intervalo amoroso,
Oculto profundos desejos.
Já no instante seguinte,
Transmuto.

Não faço pactos com a solidão.
Sigo na direção do que é meu.
Ainda que no fim sejamos
Só a noite escura e mais eu.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Matryoshka

A., minha querida, hoje compartilharei contigo um segredo de infância. Faço isso porque entendi ser a melhor maneira de responder tua carta tão vertiginosa e mágica. Acho que você finalmente está abrindo a primeira camada rumo ao seu centro.

Quando pequena, meu avô deu-me um presente num embrulho tosco, mal ajambrado. Notei que ele mesmo fizera o pacote com suas mãos enormes e desajeitadas. Antes, porém, de tomá-lo para mim, disse-me as seguintes palavras: "tens nas mãos a metáfora da essência humana. Se entenderes o segredo, entenderás o amor, que também responde pelo nome de vida".

Não entendi direito o que quis dizer, como não entendia muitas coisas que ele dizia. Vovô sempre falava cifrado, cheio de mistérios. Não era à toa que chamavam-no de excêntrico. Vivia entre aqueles livros enormes e pesados, colecionava miudezas, ficava dias sem sair de casa resolvendo enigmas ou criando palíndromos.

Sempre me diverti com suas esquisitices, A. Fui crescendo e ficando cada vez mais maravilhada com aquele velho. Somente hoje, querida, eu entendo que ele não era nem esquisito nem excêntrico. Acho que foi a pessoa mais lúcida que conheci.

Ah, o presente. Era uma legítima matryoshka, A. Herança de um parente russo. Devia ter uns 25 cm e dentro dela, havia outras seis iguaizinhas e menores.

Perguntas se lembro do jardim de Amboise… como eu o esqueceria, A, como? Foi em Amboise que entendi as palavras ditas por vovô. A primeira boneca, a maior, foi aberta diante daquele jardim de delícias. Lá eu tomei consciência que muitas de mim me habitavam.

Consegue me compreender, A? Abrir sua primeira matryoshka lhe proporcionou ver todo esse colorido que é a expressão da felicidade que li há pouco. Não sei o que você fará com essa descoberta, querida. Esta é uma decisão sua, solitária. A única coisa que posso lhe dizer é que abrir as bonecas seguintes significa estar diante de um outro espetáculo, uma efeméride! Mas não se iluda, a cada novo passo para dentro é uma dor, uma batalha entre quem você de fato é e as imagens distorcidas pelo espelho dos outros.

Amar – ou viver – é como brincar com as bonequinhas russas – sempre tem outra e mais outra e mais outra e é sempre a mesma bonequinha. Redescobrir-se é voltar à gênese, à primeira bonequinha que deu feição a tantas outras As que convivem em você.

E quando alcançamos o centro, ainda não é o fim. O percurso de volta à boneca maior, também tem seus tormentos.

Eu enfrentaria qualquer tormento pelos frutos rubros e selvagens, A! E você?
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